Maria Cristina Franco Ferraz
24/03/2020, Rio de Janeiro, Brasil. Tudo o que li e pensei até agora parece soar datado, insuficiente para dar minimamente conta do presente. Um presente aterrador para o mundo, mas especialmente trágico em um país como o nosso, em que práticas violentamente desiguais são há séculos naturalizadas. Cinismo e desfaçatez de poderosos: agradecimento a empresários que, em São Paulo, farão a gentileza de não desempregar seus funcionários. Sem dúvida também prevendo levas de miseráveis finalmente invadindo suas propriedades, seus bunkers de acúmulo desenfreado. Detentos produzirão milhares de máscaras – certamente não para sua própria proteção. Algumas reflexões, textos e conceitos, entretanto, saltam por sobre essa sensação de defasagem entre a reflexão e o momento presente. Por exemplo, e de um modo evidente, declínio de bios (vida politicamente qualificada) em favor de zoe (vida no sentido mais elementar, vida nua), apontado há décadas por Giorgio Agamben. Em quarentena, nosso bios em luta para se levantar sobre o domínio do medo, da esfera da vida nua. Mas também os temores vividos pela dimensão do próprio bios, nossa vida política, por conta da tragédia em diversos países e, no nosso, com consequências ainda mais devastadoras. Como estratégia efetiva de proteção antivirótica, isolamento, fechamento em casa. Abertura via comunicações tecnologicamente mediadas: celulares, computadores, aplicativos de reuniões e encontros virtuais. Lembro de Jonathan Crary: para o autor, essas tecnologias não são apenas compatíveis com a separação entre corpos; são dispositivos de isolamento. Império do modelo do indivíduo globalizando-se. Evidentemente, pode-se dizer o contrário: que a mediação tecnológica está exatamente aproximando, favorecendo contatos
(mas que espécie de contato, com que implicações?) neste regime de exceção. Certamente, mas o fazem no interior de uma lógica do isolamento individual, agora instalada em um grau inédito. Há também as janelas e sacadas das cidades, que ganham funções intensificadas. Em panelaços, cantos, vozes e gritos noturnos como os que teciam certa manhã de outros tempos, prometida e realizada em um poema de João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã;/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro; de um outro galo/que apanhe o grito de um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/os fios de sol de seus gritos de galo/para que a manhã, desde uma teia tênue/se vá tecendo, entre todos os galos.” A própria sintaxe, como as Moiras, tece, enrola e corta a fiação linear das frases. Elipses, saltos, cortes interceptam a expectativa previsível. O fio de um verso vaza para o seguinte, compondo e realizando a manhã. Gritos não humanos em aberto, que invadem e extravasam os limites que os continham. Arma-se, assim, uma teia – construção delicada, tênue. Que ritmos cruzados surgirão de nossas janelas sedentas, noturnas? Também aqui no meu prédio, uma avó do décimo andar grita para o neto, que a vê do pátio, palavrinhas de carinho em geral apenas ditas em tom baixo e íntimo. Ainda não sabemos que manhãs e noites saberemos inventar. Pois estamos em vias de nos tornarmos outros. Em que sentido ou direção? Talvez já se possam vislumbrar certas inclinações. Por exemplo, acirramento do medo do outro como fonte de perigosos contágios; o território do corpo próprio ampliado para um perímetro de cerca de 2, no mínimo 1 metro. E isso mesmo em uma cultura de contato,
proximidade e mistura de corpos como a nossa. O horror aos fluidos sempre e inevitavelmente trocados, comunicados entre viventes. Fechamento dos poros dessa interface entre dentro e fora que, como nos mostrou José Gil, é nossa pele. A pele, o maior meio de comunicação, membrana de trocas e passagens. Nossa profundidade superficial. Fechamento grave, com implicações incomensuráveis, inclusive em termos eróticos. Na cultura grega antiga, Eros era filho de Poros (expediente, saída para situações embaraçosas) e Penia (pobreza). Poros fechados, Eros curtocircuitado. Corpos que se temem de modo inaudito, que devem se afastar de contatos, sob risco de morte. Fechamento da pele, fortalecimento das armaduras e carapaças, ainda mais tenazes, endurecidas, impermeáveis. Reforço da pele teflon, escorregadia, em que nada gruda ou penetra. Teflon: esse material sintético, emblemático tanto de um alto grau de impermeabilidade quanto da aversão a trocas e atritos. Ao mesmo tempo, quem sabe, uma explosão de abraços e encontros quando voltarmos às ruas, quando pudermos exclamar “chega de saudades”. Quando pudermos realizar, na prática, a conhecida sequência dos antigos versos de Tom “pois há menos peixinhos a nadar do mar”. Agora nos vemos todos à mercê de outro vivente, imperceptível. À mercê de forças do mundo: revolta de Gaia (Isabelle Stengers), resposta de Biogeia (Michel Serres) à empáfia detecada, desde Nietzsche, nessa mosquinha que se arvora em centro do universo, do mundo, reinando sobre a vida? Talvez abram-se brechas mais largas para a emergência do extemporâneo. Em nossas práticas, peles, corpos. Coletivamente. Por ora, sobressai um afeto, além do medo paralisante: uma imensa saudade do mundo.
26/03/2020, Rio de Janeiro, Brasil Uma lembrança filosófica aflora e insiste: em Matéria e memória, de 1896, Bergson pensou toda a matéria como um conjunto interligado e interdependente de imagens, instigante conceito relacional que dá conta de tudo o que existe, de toda a matéria. Essas imagens afetam-se umas às outras, agem umas sobre as outras. Nosso corpo é uma imagem especial, pois é um centro de ação e de indeterminação, capaz de hesitar, capaz tanto de suspender respostas automáticas quanto de ensaiar novos movimentos. Ação, portanto, real de tudo sobre tudo: o que se torna evidente na situação pandêmica. Bergson também salientou que a percepção (ligada à ação, à atenção à vida, e não ao conhecimento) permite afastar o que nos destruiria, mantendo-o à distância de nosso corpo. Abre-se então a chance de driblar a ação real do que o infectaria ou destruiria: a percepção intercepta a ação real que nos atingiria, abrindo o campo da ação possível. Já que não percebemos o vírus, a ação possível passa a ser o isolamento, o afastamento entre os corpos. Comprovando que estamos todos interligados, nós, humanos, e todo o universo. Nossa ação possível (nossa liberdade) limita-se, por ora, a práticas de afastamento e de confinamento. O espectro em aberto da ação possível, nosso grau de liberdade, está de certo modo limitado, acuado. Sem dúvida, o horizonte de percepção, medida da ação possível, precisa expandir-se em gestos inventivos. Coloca-se de modo urgente diante de nós uma problemática ética desdobrada por Nietzsche e Deleuze: como estar à altura desse acontecimento? Como exercer neste caso o que Nietzsche chamou de amor fati, afirmação do que nos acontece? Nem resignação nem ressentimento ou amargor: amor, afirmação. Como podemos nos tornar dignos desse acontecimento pandêmico? Gestar novas formas de dignidade?