O pre¢o das coisas sem pre¢o David Le Breton
Tradução Alexandre Zarias
O coronavírus derrotou provisoriamente o neoliberalismo. Paradoxalmente, ele tornou necessária a ajuda do Estado às populações mais afetadas pela crise sanitária. Os serviços de saúde pública revelaram-se um grande apoio na sustentação do laço social e na manutenção das atividades fundantes da vida cotidiana. Estamos num período de suspensão e é difícil saber como os Estados e a economia tirarão disso alguma lição. A crise sanitária lembra a estreita interdependência de nossas sociedades, a impossibilidade de fechar as fronteiras. Nem mesmo as fronteiras biológicas entre os componentes de inúmeros mundos vivos, entre o animal e o humano. A poluição e o aquecimento climático com seus distúrbios nos lembram disso cotidianamente. O surgimento do coronavírus configura mais uma nova ameaça. Além disso, paradoxalmente, ao reduzir o tráfego automotor e aéreo, ao parar inúmeras atividades poluidoras, o vírus fornece uma espécie de respiro ecológico ao planeta e, notadamente, ao reino animal. Após anos de uma real indiferença às reivindicações sociais, esta pandemia nos lembra da necessidade antropológica de compartilhar. Nós somos interdependentes para o melhor e para o pior. Restabelecer o humanismo social violentamente atacado no mundo todo por um capitalismo triunfante e cínico é um imperativo para relançar o gosto pela vida, proteger a diversidade ecológica do planeta e apoiar os mais vulneráveis. “O dinheiro de alguns jamais fez a alegria de outros” dizia Pierre Dac, máxima que ninguém jamais contradisse. Meu objetivo será mais discreto a fim de permanecer dentro dos limites do possível em relação à imperfeição ontológica do mundo. Diz respeito à existência, por vezes segura e frágil, no fio da navalha, fadada em parte à hesitação. Cada dia
revela seu lote desigual de eventos esperados e surpresas. A manhã ignora o que a noite reserva. A condição afetiva e social jamais é dada de uma vez por todas. Ela impõe um debate permanente com os outros, com os eventos, correndo-se o risco de ferir-se. A existência não é traçada na calma evidência de seu resultado como se fosse um fio estendido em linha reta sobre os obstáculos do terreno. Ela é antes as sinuosidades do caminho, suas ambivalências. Ela é capaz de meter-se em caminhos nada previstos. A individualização do laço social, a personalização dos significados e dos valores, induz ao afastamento em relação aos outros, com as proteções que podem oferecer. Entretanto, um mundo sem risco seria um mundo sem perigo, sem asperezas e entregue ao tédio. Trata-se de uma hipótese impensável, pois a partir do momento que um ser vivo passa a existir, ele é lançado nas incertezas de seu meio. Com mais razão o ser humano, a quem as circunstâncias impõem inúmeras escolhas cujas consequências pertencem sempre ao futuro. Se os outros não são necessariamente o inferno pensado por Sartre, eles ao menos introduzem inelutavelmente o imprevisto. A projeção serena de longa duração, com a segurança de que nada jamais mudará, de onde toda supresa está excluída, suscita a indiferença, pois faltam os obstáculos que dão ao indivíduo a oportunidade de medir-se à própria existência. Sentir-se vivo implica às vezes experimentar a emoção do real. A contrapartida possível da segurança é o enfado. Inversamente, viver em perigo, se ele se impõe contra a vontade do indivíduo, raramente caracteriza uma condição feliz, investida de paixão, e acaba engendrando o medo, a ansiedade diante da provável irrupção do pior.
A pandemia lembra que a existência individual oscila entre a vulnerabilidade e a segurança, risco e prudência. Porque a existência nunca é dada antecipadamente em seu desenvolvimento. O gosto pela vida a acompanha e lembra o sabor de tudo. A resposta à relativa precariedade da vida consiste justamente nesse apego a um mundo no qual o prazer é a medida. Somente tem preço o que pode ser perdido, e a vida nunca é dada de uma vez por todas tal qual uma totalidade encerrada em si mesma. Além disso, a segurança sufoca a descoberta de uma existência que está sempre parcialmente roubada e que se torna consciente de si apenas por meio de uma troca às vezes inesperada com o mundo. O perigo inerente à vida, sem dúvida, consiste em entrar no jogo sem nunca procurar inventar sua relação com o mundo nem sua relação com os outros. Assim, nem a segurança nem o risco são modos de autorrealização e de criação de si. O gosto de viver envolve uma dialética entre risco e segurança, entre a capacidade de se questionar, de se surpreender, de se inventar, e de permanecer fiel ao essencial de seus valores ou de suas estruturas identitárias. Pelo fato de termos a possibilidade de perdê-la, a existência é digna de valor. A experiência do confinamento quebrou uma certa despreocupação com o passar dos dias, recordando brutalmente não só a precariedade da existência, mas também a do instante. Uma certa banalidade envolvia nossos comportamentos, que hoje reencontram sua dimensão sagrada: tomar um café ao ar livre, caminhar num parque ou num bosque, encontrar amigos, ir ao teatro ou ao cinema, ou mesmo sair simplesmente de casa sem hora para voltar, sem dever satisfação a ninguém. O fato de sair de um lugar para outro era tão óbvio que já não era visto como um privilégio. A crise sanitária é, nesse sentido, um memento
mori, um lembrete em escala planetária de nossa incompletude e de uma fragilidade que esquecemos o tempo todo. Ela restabelece uma escala de valor ocultada por nossas rotinas. Somente tem preço o que nos pode ser tirado. O confinamento nos lembra brutalmente e na nostalgia o preço das coisas sem preço, essas atividades anódinas do cotidiano efetuadas sem pensar, a tal ponto fluem espontaneamente, mas cuja súbita privação lhes dá um valor infinito. Eis a conta que ninguém deve esquecer em seus relacionamentos com os outros e com o mundo. Publicado em Études - Revue de Culture Contemporaine, em maio de 2020 [https://www.revue-etudes.com/article/ le-prix-des-choses-sans-prix-david-le-breton-22617]
David Le Breton é professor de Sociologia e Antropologia na Universidade de Estrasburgo, França. É especialista em estudos do corpo, tendo publicado inúmeras obras sobre o tema, várias delas traduzidas para o português. Recentemente, lançou Rostos: ensaio de antropologia (Vozes, 2019).