Pandemia Crítica 101 - Afro-anarquismo, malandragem e preguiça

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Afro-anarquismo, malandragem e pregui¢a Renato Noguera


O filósofo martinicano Frantz Fanon insiste que nós não devemos procurar as alternativas para as crises na cultura do colonizador, se quisermos sair de todo colapso iminente, precisamos “Inventar, temos de descobrir. Se queremos corresponder à expectativa de nossos povos, temos de procurar noutra parte, não na Europa”1. Seguindo a mesma linha, temos as declarações da pensadora Mãe Stella de Oxóssi que disse, a respeito do mundo do candomblé, “Na nossa cultura, não se faz nada sem se tomar conhecimento de que existem os ancestrais e os orixás mais velhos”2. E do pensador Ailton Krenak que argumenta no livro O lugar onde a terra descansa que precisamos pisar devagar na terra, toda pisada deve imitar um voo, ser leve e suave. A orientação da ancestralidade é importante, porque possui olhares mais longos e sobrevoa nossos passos, ancestrais e orixás funcionam como o Global Positioning System (GPS -Sistema de Posicionamento Global). Isto é, um guia que nos ajuda a chegar ao nosso destino. Vale dizer que o destino não nasce pronto, ele é aberto e compartilhado. Por isso, sem ajuda nos perdemos. Nós não enxergamos muito bem o caminho enquanto caminhamos. O caminhar precisa ser devagar para enxergar o que pisamos. Afinal, em gente não se pisa. Tal como diz a canção imortalizada na voz de Dona Ivone Lara: “Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ Mas eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou/ Pra pisar nesse chão devagarinho.”3. O projeto neoliberal é um caminhar furioso que segue fazendo a fagocitose de tudo que está à frente, isto é, segue transformando tudo em 1 FANON, Frantz. Os Condenados da Terra.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 175. 2 OXOSSI, Mãe Stella de; VIANA, Juvany. Expressões de sabedoria: educação, vida e saberes. Nelson De Luca Pretto e Luiz Felippe Perret Serpa, organizadores. Apresentação Antonio Risério. Salvador : EDUFBA, 2002, p. 25-26. 3 LARA, D. Ivone. Alguém me avisou. Samba Rio de Janeiro, 1980.


mercadoria. É preciso entender que a vida não pode ficar à venda. A vida é uma experiência extraordinária que não pode ser submetida aos caprichos da precificação. Com isso, não estou a dizer que devemos buscar um retorno ao passado, tampouco faço coro com o filósofo JeanJacques Rousseau que pregava a tese do “bom selvagem”. Não, não podemos romantizar e nem ficar idealizando; não é hora de fantasias utópicas. Porém, não vamos inverter, aceitar como certo que o futuro do mundo será de uma sociedade global distópica com governos totalitários, Estado policial digital fiscalizando cada segundo das vidas sequestradas pelo trabalho intermitente; não podemos vender barato os sonhos de liberdade aceitando que o futuro vai aprofundar um novo modelo de escravização com confinamentos sutis e autoexploração. É possível? Sim, ainda mais depois de uma crise sanitária global que exige algumas mudanças e os interesses do Capital que não cessam de crescer. Não existem soluções mágicas, porque diante de grandes questões, as respostas não podem ser truques de cartola. Mas, podem começar de elementos simples. Existem tecnologias que podem nos ajudar a enfrentar a crise mundial, as palavras do xamã e filósofo Yanomâmi Davi Kopenawa são bem interessantes. Kopenawa critica a visão de mundo de gente branca. De acordo com o pensador Yanomami, os brancos estão fazendo o céu desabar – uma expressão que significa colocar toda a vida do planeta em risco. Não estamos aqui para fazer “futurologia”, o nosso interesse não é apostar que tudo vai piorar ou que o porvir será melhor. Não se trata de otimismo ou pessimismo, essas ideias não são boas categorias de análise. A opção entre o pessimismo e o otimismo só engana. Nós pretendemos fazer um convite (ou uma convocação se preferirem). O momento da vida no planeta passa


por riscos. Albert Camus disse algo curioso no livro A Peste, o mundo é feito de pragas e de suas vítimas. Nós sempre devemos escolher um lado. Para Camus devemos recusar o lado das pragas. É hora de uma convocação simples, um pacto pela vida. Se a escritora Conceição Evaristo já disse que vamos nos recusar a morrer, mesmo que eles tenham feito um acordo de nos matar – em referência à face letal do racismo. Logo, a bandeira contra o racismo é um convênio para celebrar a vida. O que ensinou o grande mestre Abdias do Nascimento com a tese do Quilombismo? Nós precisamos da arte de compartilhar para viver. Toda celebração precisa reunir gente. Diante da pandemia e da crise econômica, nós devemos levantar nossas vozes, nossos corpos e usarmos nossa energia para colidir com o racismo. Pode parecer estranho, mas é o combate ao racismo o início de uma mudança estrutural em todo o planeta. O antirracismo é o caminho mais curto para a democracia. Não se enganem. Falar de democracia não é investir na cultura ocidental, existem outros sotaques do regime democrático. Aqui não fazemos referência ao regime grego ou àquele sistema erguido pelo projeto burguês moderno. Nós preferimos falar da “democracia” do antigo Reino do Kongo, aquela que o historiador angolano Patrício Batsîkama discorre em seu livro Lûmbu, a Democracia no Antigo Kôngo. Uma democracia em que as vozes conseguiam se misturar, fugindo ao dilema de ser representativa ou direta. Talvez, por isso, não se trate de propor um “novo” mundo; tampouco idealizar um “velho” mundo cheio de liberdade. Pode ser o caso de transformar as cidades em aldeias, de fazer os Estados nacionais se transformarem em quilombos. Pode ser momento de experimentar as tecnologias como processos além de usá-las como ferramentas; pode ser momento de submeter os interesses do capital e


do trabalho à vida. A vida em primeiro lugar. Não é somente a vida branca de alguns, mas todas as vidas humanas. Não se trata exatamente de uma revolução socialista, ainda que Karl Marx seja indispensável para entender os processos que estamos vivendo. Nós estamos falando de afroanarquismo e de política de aldeia, uma combinação bem específica. Uma ressalva, aqui “anarquismo” não é somente aquele de Mikhail Bakunin. Nós reivindicamos a anarquia das encruzilhadas de Exu, o orixá que abre os caminhos. Exu é patrono do afro-anarquismo, a capacidade de abrir caminhos onde tudo parecia fechado e impossível. Em certa medida, a política de aldeia é um convite a viver como se todos os vivos fossem nossos parentes. Por isso, o rio Doce é chamado por Ailton Krenak e seu povo de avô. O afro-anarquismo em parceria com as políticas de aldeia dos povos originários da América é uma gestão biofílica. O que nos torna amantes da vida, colocando as pessoas acima do mercado. É um tipo de decreto que nos impede de medir uma pessoa pelo lucro que ela poderia gerar se matando. Nesse regime, a paz perpétua não é garantida por uma guerra sem fim que extermina gente, fauna, flora e escraviza os derrotados e os vencedores com conforto e sem empatia. Nós estamos a falar que o primeiro passo é submeter o Estado e reinventar o mercado, retirá-los do trono divino e fazê-los servidores de gente. Não posso dizer que essa especulação é um novo socialismo, nem um capitalismo reformado, porque quem inspira esse “Novo mundo” é Mãe Stella de Oxóssi, Lélia González, Abdias do Nascimento, Sueli Carneiro, Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Conceição Evaristo, Antônio Bispo dos Santos, Cartola, Dona Ivone Lara, dentre tantas autorias com o mesmo espírito de conversar com os rios. As orientações para implementação desse “NovoVelho Mundo” são bem simples: misturar malandragem com preguiça. A colonização criminalizou as artes


da malandragem e da preguiça. Nós precisamos reabilitar essas tecnologias divinas, elas receberam nomes estrangeiros que tentaram inverter seus sentidos. Em geral, as pessoas criadas com comida industrializada não sabem quase nada a respeito delas. A malandragem é a arte negra de crescer sem perder a infância, uma pessoa malandra é alguém que brinca depois de crescida. Quem não sabe brincar precisa colonizar a vida. A preguiça é uma tecnologia dos povos originários, uma pessoa preguiçosa é alguém que sabe a extensão da sua força e o tamanho da sua passada, trabalhando justamente o necessário para que o encanto da vida não se perca. Quem não vivencia o encanto da vida precisa colonizá-la. O que fazer diante da mutação ecológica que instalou uma pandemia, de todas as formas de opressão, da necropolítica sistêmica, da depredação ambiental e todo leque de injustiças? Uma das maneiras mais dignas de enfrentamento desse cenário está numa combinação entre malandragem e preguiça! Renato Noguera é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Infâncias (Afrosin), escritor, ensaísta, roteirista e dramaturgo. Iniciado nas artes griot pelo avô, criado no tradicional bairro de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, Noguera é autor das aventuras da Turma Nana & Nilo.


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