coexistência e co-imunismo Sam Mickey
Tradução Isabel Lopes
O existencialismo é um recurso renovável. Hoje, os insights do existencialismo estão sendo renovados em um contexto ecológico de coexistência planetária, dando origem ao coexistencialismo. Isso é exemplificado no trabalho do filósofo alemão contemporâneo Peter Sloterdijk, que descreve a coexistência não em termos de uma teoria metafísica da realidade, mas em termos de uma teoria da co-imunidade. A Imunologia é generalizada para dar conta não somente das dinâmicas dos sistemas biológicos, mas de todo tipo de sistema, incluindo sistemas simbólicos, conceituais e sociais de grande escala, que ele descreve como “esferas” (ver a trilogia Spheres: Bubbles, Globes and Foams [Esferas: Bolhas, Globos e Espumas]1). A Imunologia Geral é a Esferologia Geral. Seus questionamentos variam de microesferas de intimidade interpessoal (bolhas) a macroesferas da coexistência coletiva (globos). A Imunologia Geral estuda as esferas mais apropriadas para fazer prosperar a coexistência planetária, diferenciando esferas saudáveis e instâncias de esferas patológicas, que são indicativas da falha em cultivar ou manter a intimidade e a solidariedade. A tarefa de participar dos esforços da coexistência planetária não pode escapar dos imperativos imunológicos da esferologia. Cada esfera, não importa quão inclusiva, precisa desenhar certos limites: inclusões e exclusões, intrusões e extrusões, amigos e desconhecidos, forças e fraquezas. Falhar na produção ou manutenção desses limites é deixar de habitar um espaço íntimo, o que, em última instância, representa uma falha em coexistir - uma falha em encontrar um espaço operacional seguro para a humanidade: uma estufa global. Uma estufa 1 Peter Sloterdijk, Esferas I: Bolhas. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
planetária não pode ser construída nem pelo individualismo nem pelo coletivismo. Ela precisa ser criada sobre intimidades multipolares capazes de permanecerem expostas, capazes de exposição contínua ao exterior. Em outras palavras, isso requer estruturas macroesféricas imunes capazes de exposição infinita, “imunizações globais: coimunismo”, uma co-imunidade planetária em que os únicos estranhos que não são bem-vindos são aqueles que exploram estranhos. A história do próprio que é apreendida em uma escala muito pequena e do estrangeiro que é tratado muito mal chega ao fim no momento em que nasce uma estrutura global de co-imunidade, com uma respeitosa inclusão de culturas individuais, interesses particulares e solidariedades locais. Essa estrutura assumiria dimensões planetárias no momento em que a Terra, estendida por redes e construída por espumas, fosse concebida como própria, e o excesso explorador anteriormente dominante como estrangeiro. (Sloterdijk, You Must Change Your Life, trad. W. Hoban [Polity Press], p. 451f)2.
Obviamente, a tarefa de determinar quem é explorador e quem não é cheia de profunda ambiguidade e indecidibilidade. Não é tão fácil quanto dizer sim às hortas comunitárias e não ao consumismo voraz. A construção de uma co-imunidade planetária requer prática, especialmente no atual cenário geológico, o Antropoceno, em que o destino da Terra é tão interligado ao da humanidade. O Antropoceno é uma era da “antropotecnia”, uma era de exercícios para os humanos aprenderem a coexistir com os habitantes de uma única Terra, 2 Peter Sloterdijk, Tens de mudar tua vida. Lisboa: Relógio d´Água, 2018.
exercícios no sentido de “regras monásticas” ou “ascetismos cooperativos universais” praticados diariamente para cultivar “os bons hábitos de sobrevivência compartilhada” (452). A imunologia geral, portanto, coincide com uma teoria das variedades da prática antropotécnica, “Ascetologia geral”, que fornece uma compreensão dos exercícios necessários para se tornar intimamente vulnerável nas escalas microesférica e macrosférica (110). Este é o coração do antropoceno, pulsando com práticas microesféricas e macrosféricas de intersubjetividade cordial, práticas antropotécnicas de co-imunidade. Um co-imunismo planetário não se refere à escolha entre partidos liberais, progressistas, socialdemocratas ou conservadores. Trata-se um treino conjunto para tornar concreta a universalidade da intimidade. Esse treinamento requer algumas das categorias celebradas pela direita (exclusiva, auto preferencial, seletiva, protecionista) e pela esquerda (inclusiva, preferencial em relação ao estrangeiro, livre de impostos). Ao invés de se aliar à esquerda ou à direita como são atualmente compreendidas, o coimunismo exige o desenvolvimento de exercícios que facilitem relações intimamente vulneráveis com o exterior e o estrangeiro, exercícios que enfrentam a aporia da coexistência: o transplante do exterior para as camadas internas mais profundas. Ao invés de pessoas comuns da esquerda e da direita, o que se exige é o cultivo da excelência (virtude), excedendo os limites da política partidária comum. O que é necessário é uma cultura de criativos, desenvolvendo exercícios microesféricos e macrosféricos que transformam o sistema imunológico oferecido pelas filosofias e religiões do mundo, abrindo-os para as lutas da coexistência planetária. O que é necessário é a razão imunitária em escala global. A razão imunitária global é sobre a luta pela coexistência
permanecendo exposto, tornando-se vulnerável em intimidades multipolares. A composição de uma coimunidade global implica a abertura radical do ser-com, e isso requer prática. Praticar não é apenas aprender uma habilidade específica, mas, em um sentido mais geral, é sobre humanos projetando e se transformando. Em termos de uma ascetologia geral, askesis (“exercício”) é fundamental para a existência humana, de modo que ela se molda no espaço curvo das esferas, e a intimidade desse espaço permite que seus pensamentos, sentimentos e ações reflitam sobre o sujeito, alterando ainda mais seu pensamento, sentimento e ação, de modo que possa e deva participar do projeto de sua própria subjetividade. Em outras palavras, a existência humana é seu próprio projeto de desenho esferológico ou imunológico. Você poderia dizer que isso envolve uma integração pós-secular de exercícios religiosos e seculares e regimes de treinamento. No entanto, Sloterdijk argumenta que essa askesis generalizada desfaz a distinção entre o que é religioso e o que não é. A meditação zen e a oração católica não diferem em espécie da investigação científica, da agricultura, da família ou do futebol. Todos são regimes de treinamento. Cada um, com certeza, é diferente, mas não há uma grande divisão religioso/secular. Cada regime de treinamento oferece diferentes possibilidades para indivíduos e grupos se projetarem, se transformarem, intensificarem as capacidades de agir e ser agido. A condição humana no Antropoceno exige exercícios em escala planetária, uma vez que a condição dos humanos em qualquer lugar está enredada na malha das condições dos humanos e nãohumanos ao redor do planeta, forçando os humanos a permanecerem em um “campo de sobrecarga de enormes probabilidades”, no qual “devo estimar os efeitos de minhas ações na ecologia da sociedade global
“e” devo me transformar em um fakir [ascético] da convivência com todos e tudo, e reduzir minha pegada ambiental ao rastro de uma pena” (448f). Emergências ecológicas, como mudanças climáticas e pandemias virais, empurram a antropotécnica ao seu limite, forçando o desenvolvimento de uma estrutura global de co-imunidade, um co-imunismo que afasta as espumas do individualismo e da política partidária, a fim de proteger a intimidade constitutiva da coexistência planetária. Os ascetismos cooperativos devem ser compostos agora ou nunca, praticados em exercícios diários em prol de nossa sobrevivência compartilhada. Sam Mickey é pesquisador na área de humanidades ambientais, com foco em ética e ontologia dos não-humanos. Leciona na Universidade de São Francisco. O texto acima é parte de seu livro Coexistentialism and the Unbearable Intimacy of Ecological Emergency (Lanham, MD: Lexington Books, 2016), cuja reprodução acima foi gentilmente autorizada pelo autor.