Pandemia Crítica 103 - Justiça viral e transformação vital

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Justi¢a viral e transforma¢ão vital Marcio Costa


Para Gayana.

Violência e visão Deleuze insistia que o pensamento não consiste em uma atividade natural, em uma faculdade subjetiva naturalmente dada, mas sim em uma violência1. Pensamos em virtude da violência de um encontro, de um signo que nos força a pensar. No ano de 2020 o signo que nos força a pensar é a COVID-19 e seu agente, o coronavírus. O encontro violento da humanidade com o vírus tem um ar catastrófico que torna ainda mais tangível o odor maligno de fim de mundo que estávamos sentindo há alguns anos – mais ainda para quem vive no Brasil. Dado o golpe que o vírus nos submeteu nesse ano, não há como não sermos forçados a pensar, sentindo-nos violentados por essa doença, que já contaminou milhões em todo o planeta, matando centenas de milhares, forçando a parada do tempo capitalístico, o confinamento de bilhões de humanos e a interrupção do crescimento econômico. O grande desafio é construir um pensamento que esteja à altura desse acontecimento. Mas é possível construir um pensamento em poucas linhas e tão próximos do evento que ainda está em curso? Provavelmente, não. Mas podemos ensaiar um caminho. Podemos tomar o coronavírus como um analisador, 1 “Nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazêlo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca. (...) a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento. As significações explícitas e convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como aparece encoberto e implícito num signo exterior.” Gilles Deleuze. Proust e os signos. – 2ª ed. – Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, p. 14-15; igualmente: –(...) o pensamento só pensa coagido e forçado, em presença daquilo que “dá a pensar”, daquilo que existe para ser pensado – e o que existe para ser pensado é do mesmo modo o impensável ou o não-pensado, isto é, o fato perpétuo que nós “não pensamos ainda” (segundo a forma pura do tempo)”. Gilles Deleuze. Diferença e repetição. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Graal, 2006, p. 210.


como diria Guattari2, ou seja, um acontecimento que coloca em análise suas condições de aparecimento, fazendo com que o efeito retroaja sobre as suas causas, evidenciando o processo de sua efetuação3. Não seria isso o que Deleuze sugeria ao propor que, dada uma efetuação, busquemos a sua contraefetuação, ou separar dos corpos que se misturam o acontecimento incorporal que os atravessa4? Pensamos que sim e, desse modo, no tom de urgência que a situação exige – não apenas da urgência viral, mas da urgência da vida que resiste –, ensaiamos algumas linhas de visão, onde um acontecimento pode ser pensado. Para pensar a crise do coronavírus, é novamente Deleuze que nos oferece um exemplo sugestivo, que pode nos auxiliar a conceber esse desafio, ao comentar sobre o surgimento do cinema neo-realista italiano, cujo gesto inaugural foi Roma, cidade aberta de Roberto Rossellini. Nesse filme vemos a resistência dos italianos diante da ocupação nazista na capital em ruínas. Deleuze afirma a partir desse filme que diante de um mundo em escombros, perante acontecimentos fortes demais, não podemos reagir habitualmente. Isso gera a quebra de nossa recognição, de nosso esquema sensório-motor, onde só podemos ver e ouvir sem 2 Félix Guattari. A Transversalidade. Em: Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. – São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 88105. 3 Heliana de Barros Conde Rodrigues. A Psicologia Social como especialidade: paradoxos do mundo Psi. Psicol. Soc. [online]. 2005, vol.17, n.1, pp.83-88. 4 “Porque todo acontecimento é do tipo da peste, da guerra, do ferimento e da morte? Bastaria apenas dizer que há mais acontecimentos infelizes que felizes? Não, pois é da própria estrutura do acontecimento. Em todo acontecimento existe realmente o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis aí, o momento chegou (...). Mas há, de outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente, porque ele é livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro (...) sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que é preciso chamar de contra-efetuação”. Gilles Deleuze. Vigésima primeira série: do acontecimento. Em: Lógica do sentido – São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 154.


reagir e, a partir disso, associar as situações óticas e sonoras puras a toda uma virtualidade, um circuito de lembranças que induz o surgimento de uma pura visão.5 Uma visão que não provém de nossa atualidade, mas de uma virtualidade cuja violência intempestiva pode vir a abalar nossa percepção habitual, permitindo ver e ouvir um mundo por vir. O eu e a morte O coronavírus, retomando uma imagem eficaz, ainda que sombria, de Christian Dunker, é uma espécie de coroa de espinhos para o narcisismo global6. Se milhões até o ano passado exibiam em suas redes sociais digitais o seu sucesso, glamour, amigos, eventos, enfim, seu eu superinflado, hoje, as mesmas plataformas, que produziram nos últimos anos o crescimento exponencial do imaginário narcísico, estão garantindo uma mínima sobrevivência para um eu corporal que se evadiu do mundo e só sobrevive como imagem digital. Todavia, agora, não mais exibimos apenas nossa vaidade, nossa superfície tão brilhante quanto opaca de um narcisismo pretensamente soberano, mas sim nossa verdade, o quanto estamos sozinhos e unidos – solitários e solidários, na bela expressão de Deleuze7 – diante dos limites de nosso agenciamento social, o capitalismo. Vivemos todos, de maneiras distintas, a dor de cabeça global. Mas a cabeça de quem dói? E de que maneiras? A coroa de espinhos atinge todos da mesma maneira? Há uma lista dos afetados que não para de crescer e se diferenciar: pobres sacrificados por projetos neoliberais, profissionais de saúde sem equipamentos e expostos à morte, populações minoritárias sanitariamente abandonadas, 5 Gilles Deleuze. Para além da imagem-movimento. Em: A Imagem-tempo (Cinema 2). – São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 9-35. 6 Christian Dunker. A coroa de espinhos. Em: https://artebrasileiros. com.br/cultura/coroa-de-espinhos-christian-dunker-peste-coronavirussaude-mental/; acessado em: 01/05/2020, 23:32. 7 Gilles Deleuze. Bartleby, ou a fórmula. Em: Crítica e clínica. – São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 80-103.


empreendedores empobrecidos, financistas em crise de abstinência, políticos se sentindo aprisionados pelo discurso da ciência, pesquisadores e universidades com poucos recursos... Há muitas dores de cabeça, tão diferentes quanto os papéis que tais agentes desempenham na sociedade. Há sobretudo aqueles que sempre coroaram de dor a vida de muitos, tais como os agentes do Mercado, tão insensíveis à dor alheia quanto adoradores do dinheiro. Outro tipo similar são os políticos oportunistas, que migram da esquerda para o centro, do centro para a direita, ou da direita para a extrema-direita, no balanço das oscilações de opiniões eleitorais e das oportunidades que as crises econômico-políticas oferecem. Nos últimos anos, e mais ainda agora, não faltou “sangue nas ruas” para os investidores. Pode-se dizer que esses oportunistas – cujos exemplos mais notórios são o atual Ministro da Economia e o presidente da República do Brasil – constituem verdadeiros sócios do coronavírus. E em cada país, estado, município ou vizinhança podemos encontrar muitos outros auxiliares da disseminação da Pandemia, que não é apenas virótica, mas igualmente a propagação de palavras-de-ordem, cujos efeitos, ao fim e ao cabo, são os mesmos: destruição e morte. O medo, a doença, a dor, a morte, o pânico diante do vírus, que força a mudança do nosso modo de produção de bens, serviços e subjetividades, são espinhos na carne da humanidade sofredora, nesse início de século XXI. Como foi antes a dita “gripe espanhola” para a combalida sociedade ocidental pós-primeira guerra mundial, é uma dor de cabeça e sofrimento intensos, mas que podem ser superados como uma doença qualquer – ainda que sua escala seja global. “Fique em casa” e “vai passar” são os clichês midiáticos que nos repetem inúmeras vezes como mantras diários para ficarmos calmos, pois voltaremos para a vida normal dentro em breve. Mas será que queremos voltar para a vida normal?


Sem dúvida a maioria não quer viver confinada ou aprisionada, mas será que não poderíamos voltar para um mundo diferente? Será que essa pausa não nos força a uma mudança interna, a uma verdadeira invenção, caso não caiamos nas teias midiáticas e do senso comum que nos pede calma para que tudo passe e volte ao normal? Será que a inação do corpo intensifica uma ação mental que só um vírus pode nos obrigar nesse momento? Por fim, já tomados por um instante fugaz de lucidez, diante dos profetas da boa vida capitalística, podemos nos questionar: que vida é essa que nos apegamos? Por que não desejar a morte disso que chamamos de vida normal? Justiça viral e transformação vital O vírus traz sua justiça. A destruição das florestas e dos ecossistemas e a mercantilização industrial da carne animal traz consigo zoonoses que são catastróficas para a humanidade, tal como o coronavírus. Cavalgando no comércio e turismo global, nas asas dos aviões, o corona viralizou em toda parte, ameaçando a vida humana e as condições de vida da humanidade atual, a forçando a interromper sua história. De modo que essa Pandemia, apesar de não ser a primeira nem a última peste que enfrentamos, traz consigo uma nova mensagem e uma justiça singular: a de que suas causas são o modo de produção global, cujo destino é justamente parar essa cultura e reorientá-la. De maneira breve, fugidia, curta, uma peste passageira e que retornará, mas é nesse interregno cortante que poderá passar uma faísca intuitiva que, fraca como toda fagulha, permita passar uma visão adiante. Uma centelha que pode se conflagrar destrutivamente, fazendo o fogo arder e se apagar rapidamente, numa linha de pura abolição e morte8, ou uma luz que possa durar e 8 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Micropolítica e segmentaridade. Em: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012, p. 91-125.


se elaborar no tempo, lucidamente, permitindo uma transformação vital por meio de uma mutação do tempo, a emergência de um novo pensamento. Se o vírus concerne à vida como sua hospedeira, a vida na ameaça da morte que o vírus lhe impõe, pode, todavia, transformar sua conduta, para não morrer. Se o ano de 2020 parece ter o novo coronavírus como protagonista, no ano de 2019 tivemos outra personagem, desta vez portadora da mensagem da vida, que viralizou à sua maneira, singularmente: a jovem ativista Greta Thunbergh – que, para preservar a atmosfera, prefere atravessar oceanos de barco. Imbuída da coragem da verdade, começando solitariamente uma greve escolar pelo clima, que em poucos meses obteve a adesão de milhares de crianças e adolescentes e a atenção mundial, Greta nos conclamava a abrir os olhos para as florestas incendiadas do planeta, para o caminho inelutável da sexta extinção em massa das formas de vida terrestres9 e para o aquecimento global antrópico e suas consequências climáticas catastróficas10. O encontro de Thunbergh e Trump evidenciou, do lado esquerdo, o chamado do futuro e as exigências urgentes para a mudança de nossa vida, e, do lado direito, os vícios do passado, que torna a humanidade, que criou uma nova era geológica, o Antropoceno, o verdadeiro vírus para todas as outras formas de vida na Terra. Não escutamos Greta ou se a escutamos, continuamos a viver no mundo de Donald, como se não houvesse amanhã. E não haverá, dentro de alguns anos. O coronavírus veio para que nos enxerguemos, afinal, como o 9 “(...) um relatório publicado pela WWF (World Wildlife Fund, em inglês), em parceria com a Sociedade Zoológica de Londres, apontou ainda que, nos últimos 40 anos, 52% da população de animais vertebrados na Terra desapareceu”. Daniele Klebis. Antropoceno, Capitaloceno, Cthulhuceno: o que caracteriza uma nova época?”. Em: http://climacom. mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-capitaloceno-cthulhuceno-o-quecaracteriza-uma-nova-epoca/; acessado em: 01/05/2020, 23:48. 10 Para aprofundar filosoficamente e antropologicamente sobre esse problema: Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? – ensaio sobre os medos e os fins. – Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2014.


vírus mais letal da Terra. Ao forçar a parar nossas atividades produtivas, a justiça viral reduz a marcha de destruição. Ele tira o nosso ar, nos mata de sufoco, mas dá algum fôlego para a combalida vida no planeta, limpando a atmosfera dos venenos de nosso modo de produção. O adjetivo viral, que se disseminou pelo mundo virtual no início do século XXI, implica a disseminação de uma informação de forma padronizada, um clichê, que se autorreproduz de maneira massificada. O viral, no sentido biológico, é a repetição de uma codificação biológica (RNA) que explora a vida celular, obrigando-a a reproduzi-lo mecanicamente até matá-la para, assim, disseminar-se e contaminar todas as outras células. É a luta entre o retorno do mesmo (vírus) e a retorno da diferença (vida). A contemporaneidade viraliza sua própria individualização e massificação em clichês. Se o capitalismo é supostamente a produção de novidade por meio de objetos, ele precisa acima de tudo viralizar informações que nos parecem novas na aparência, mas são apenas velhos clichês que exploram a vida há milênios – destruição ambiental; fundamentalismo religioso; patriarcalismo-misoginia-lgbtfobia; racismo e segregações étnicas e culturais; antropocentrismoespecismo etc. O capitalismo apenas intensifica a marcha viral de destruição da espécie humana. Todavia, se o capitalismo transformou o devir da História em viralização, a vida, que resiste apesar do capitalismo, pode pôr um limite à viralização-massificação. Pode impor uma reorientação à produção desejante e social. Nesse sentido, a vida que resiste em nós e entre nós, pode transformar-se e colocar um limite ao vírus, não apenas ao coronavírus como risco de morte dos humanos, mas a toda produção massificada da morte que explora, enfraquece e mata os humanos e todas as formas de vida no planeta. O vírus da


coroa, afinal, pode vir a nos mostrar o real, não como soberania ou realeza, mas o real da vida – que, vivida na sua intensidade, não seria uma realeza monárquica, mas sim a vida tal como ela se expressa na Natureza ou no meio ambiente nãohumano, em sua anarquia coroada. Não será isso que as formas de vida podem nos ensinar, que o humano é tão rei da criação quanto todas as outras formas de vida? A anarquia coroada é uma forma de ética, segundo Deleuze, que implica outra espécie de seleção e hierarquia, não mais fundada em formas, padrões ou clichês, mas em modos de vida em sua inventividade, cujo único critério é ir ao limite do que cada um pode11. Nesse sentido, o frágil, complexo e preciso equilíbrio ecológico planetário evidencia uma megamáquina anárquica e coroada pela vida em todas as suas formas, em equilíbrio instável e criativo. Por isso, nenhum humano pode se considerar, por si ou pelos outros, rei e centro soberano do mundo, porque todos os vivos são soberanos pelas suas diferenças. Mudanças... A mudança sempre advém e o imprevisível nos espreita. Os eventos podem mudar para pior, e os sinais são pouco esperançosos para o futuro próximo. Então? Esperar pela próxima peste, ou por uma nova guerra ou pelo novíssimo apocalipse ambiental? Se apocalipse é revelação, não precisamos destruir tudo para que o vilão da história se revele, pois, os agentes virais de exploração e destruição da vida já se revelaram. E aqueles que ainda se disfarçam com boas intenções – empresários e políticos, sobretudo – cada vez mais se manifestam como agentes da morte e destruição, defensores dos velhos ideais virais. Estes ideais são estruturas históricas, discursivas e sociais, encarnadas na nossa vida pela linguagem, pelas instituições e pelos nossos 11 Gilles Deleuze. Diferença e repetição, p. 67-69.


hábitos. São acontecimentos incorporais, ideias e valores que exploram a vida, segundo uma codificação reiterativa e destrutiva. Será que podemos ir além de um modo de produção social e desejante fascista, ou seja, assassino e suicidário?12 Não precisamos temer, ao que parece, uma guerra mundial, mas sim a intensificação do que já vivemos, um estado de exceção mundial, onde o coronavírus apenas evidencia de maneira nua e crua a biopolítica e necropolítica em que vivemos. A biopolítica aponta para quais vidas são administráveis e preserváveis, para explorar a força da vida para a produção de bens, serviços e consumos – mesmo aceitando a morte de muitos, mesmo as produzindo13. A necropolitica é o desdobramento lógico da biopolítica, onde se gerencia a morte dos considerados improdutivos e perigosos, escolhendo corpos e populações que serão matáveis14. Nesse sentido, as medidas de exceção durante a Pandemia, necessárias do ponto de vista sanitário e biopolítico, podem ser, por outro lado, uma larga experimentação necropolítica de um campo de concentração tão ubíquo, planetário e virtualizante que jamais podíamos imaginar. Um experimento casual, mas adequado a uma sociedade de controle como a que nós vivemos.15 Monitorados por celulares individuais, por câmeras coletivas e programável por meio de ferramentas de Big Data – cada casa tornada cela monástica diáfana ao olho do poder e cada centímetro da cidade vigiado como uma prisão a céu aberto –, a sociedade de controle se torna o destino molecular da bio-necropolítica. 12 Peter Pál Pelbart. Estamos em guerra. – São Paulo: n-1, maio de 2017. Vladimir Saflate. Bem vindo ao estado suicidário. Em: https://n1edicoes.org/004, acessado em 02/05/2020, 00:08. 13 Michel Foucault. Direito de morte e poder sobre a vida. Em: História da sexualidade I: a vontade de saber. – Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 145-170. 14 Achille Mbembe. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. – São Paulo: n-1 edições, 2018. 15 Gilles Deleuze. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Em: Conversações. – 3ª ed. – São Paulo: Editora 34, 2013, p. 223-230.


Por isso o coronavírus é um analisador da política contemporânea. Segundo Guattari e sua esquizoanálise, ampliando o sentido inaugurado pela psicanálise, quem faz a análise não é o analista, mas o acontecimento analisador – tal como as formações do inconsciente, lapsos, chistes, sonhos, atos falhos e sintomas, que forçam o eu a se pensar como sujeito ou como agente e não apenas paciente. O analisador coronavírus nos força a pensar de outra maneira e nos responsabilizar pela vida. Ele é um acontecimento que põe em análise um modo de produção e reprodução da vida e da morte no capitalismo avançado. Assim, não adianta administrar o vírus, seja o corona ou o capitalismo moderno. É necessário eliminá-lo, ou então, reorientá-lo, colocar a produção, o trabalho e as margens de lucro no seu devido lugar – assim como deixar os animais e seus vírus naturais em paz, no máximo estudando seus funcionamentos com o mínimo de interação. Será, então, necessário que a vida como valor absoluto limite as pretensões ilimitadas do Capital. A vida se corrige eliminando os vírus de suas células, como um corpo saudável constantemente elimina células cancerosas dos seus órgãos antes que se tornem tumores. O pensamento seleciona aquilo que torna a vida mais fraca ou mais forte, aquilo que impede ou promove que se vá ao limite do que se pode. A justiça viral contemporânea pode acordar a vida, despertá-la do seu torpor, para transformar sua conduta e eliminar diversos outros vírus aloplásticos, incorporais, que nos infectaram como clichês e palavras-de-ordem. Nesse sentido, mais do que matar os corpos, o coronavírus, tomado por nós como acontecimento analisador da nossa vida, poderia eliminar o corpo sem órgãos do Capital. Segundo Deleuze e Guattari, toda sociedade com suas máquinas técnicas, sociais e desejantes (pois tudo o que uma sociedade produz


é desejado pelos seus sujeitos) se assentam em um limite da produção, que seria o corpo sem órgãos (CsO)16. O CsO é ao mesmo tempo superfície de registro onde as máquinas se inscrevem e o limite da produção desejante, que desarranja as peças de máquinas. A produção de objetos de desejo no capitalismo, seus inúmeros órgãos, que nos estratificam como um organismo, se assentam nesse corpo, o Capital como CsO, o limite imanente da nossa produção social e desejante. O Capital nos oferece o sentido para nossas ações de produção, mas igualmente nos desarranja como ideal inalcançável, nos deixando na falta e na dívida, pois é o limite sempre deixado mais adiante. Enquanto o Capital se expande e fica ainda mais distante no ritmo do crescimento econômico, mais a Terra se encurta, bem como nossos movimentos. Quanto mais o Capital se dissemina e cresce, mais a vida é enfraquecida, mais os sujeitos humanos e não-humanos são destruídos, e o meio ambiente, ecológico e político, se torna ainda mais tóxico. Por isso, no limite do capitalismo, um novo corpo sem órgãos nos espera – mas este tem de ser construído. Se não o Capital, qual CsO nos espera para ser inventado? Seria o Social? Seria o Comum? Independente do nome, parece que a vida, que se coloca como limite da expansão do Capital, pode oferecer um caminho outro. Mas o Capital não morrerá enquanto não soubermos inventar, efetivamente, um novo corpo sem órgãos, desejante e social, que vá além do limite do capitalismo e do seu poder soberano como sentido e fim da história. Porque o verdadeiro fim da história, ou seja, da finalidade de contar histórias para dar um sentido para a vida, é a invenção de um corpo sem órgãos, o corpo que dá sentido aos órgãos enquanto desejo. 16 Gilles Deleuze e Félix Guattari. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. – São Paulo: Ed. 34, 2010.


A filosofia que vem e o povo por vir Agamben, que perseguiu em toda a sua obra a filosofia que vem, dizia que o gesto final da filosofia de Foucault e Deleuze, o seu “testamento”, foi tratar da vida, para além do eu e do mortalismo, para além da transcendência, ou seja, da separação e da soberania17. O eu e a morte são transcendências que, como ilusões inevitáveis da percepção18, nos enganam sobre a finalidade da vida. A ilusão não é o que não existe, mas sim o que limita a percepção. A morte é sempre do eu, aliás, o que faz com que a morte e o eu se tornem transcendências complementares. Diante da crise da vida na Terra no início do século XXI, poderíamos pensar que a saída se encontre no eu, na massa de indivíduos ou na morte de um eu ou de uma massa. A psicologia das massas descrita por Freud, com suas identificações verticais com líderes e suas identificações horizontais na imagem do outro eu19, não nos salvará de nossa crise planetária, ao contrário, ela é a causadora do problema com suas ilusões antropocêntricas. A vida traçará no meio dessa dupla ilusão os meios de escapar de um conflito lógico e político sem solução. Então Agamben tem razão ao afirmar que uma das características constitutivas da filosofia que vem é a vida em sua imanência absoluta. Se uma sociedade não se define pelas suas contradições, mas sim pelas suas linhas de fuga que determinam os vetores de mudança de uma sociedade20, talvez devêssemos olhar e ouvir a transformação vital que nos vem das crianças e sua greve escolar. Talvez olhando para Greta e as crianças – que estão livres da escola 17 Giorgio Agamben. A imanência absoluta. Em: A potência do pensamento: ensaios e conferências. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 331-357. 18 Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia? – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 67-70. 19 Sigmund Freud. Psicologia das massas e análise do eu. Em: Obras completas. Vol. 15 – São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 13-113. 20 Gilles Deleuze. Desejo e prazer. Em: Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-1995). – São Paulo: Ed. 34, 2016, p. 132-133.


disciplinar e proibidos de brincar na rua vigiada biopoliticamente –, observando os inúmeros bebês que nasceram em casa durante essa Pandemia distantes dos Hospitais, nos atentando para a vida em sua fragilidade, possamos ver que a passagem da vida se transmite de maneira precária, porém sólida e contínua. Para que a vida nova possa vingar, ela precisa de um mundo real, livre, vivo e não tóxico. A verdadeira novidade ou a subjetivação é o cérebro, dirá Deleuze no fim de sua obra21. Enquanto interface ou imagem atual, quais imagens de mundo e histórias estamos transmitindo para o cérebro daqueles que nos sucederão? Uma criança, uma cidade, uma floresta, um planeta... O fim ou finalidade da vida não é a morte, mas outra vida. Não somos o destino, não somos o fim. Somos apenas uma passagem, um presente que passa, cujo sentido é o futuro. O presente deve morrer para que novo possa nascer, não sem antes ensinar aos jovens suas mais valiosas lições evolutivas, aquilo que dolorosamente foi aprendido e que constitui nosso passado, nossa memória, aquilo que em nós resiste. O povo por vir, mas já aqui, nos ensinará os caminhos de um mundo outro 21 “Mais do que processos de subjetivação, se poderia falar principalmente de novos tipos de acontecimentos: acontecimentos que não se explicam pelos estados de coisa que os suscitam, ou nos quais eles tornam a cair. Eles se elevam por um instante, e é este momento que é importante, é a oportunidade que é preciso agarrar. Ou se poderia falar simplesmente do cérebro; o cérebro é precisamente este limite de um movimento contínuo reversível entre um Dentro e um Fora, esta membrana entre os dois. Novas trilhas cerebrais, novas maneiras de pensar não se explicam pela microcirurgia; ao contrário, é a ciência que deve se esforçar em descobrir o que pode ter havido no cérebro para que se chegasse a pensar de tal e qual maneira. Subjetivação, acontecimento ou cérebro, parece-me que é um pouco a mesma coisa. Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaço-tempos, mesmo de superfície e volume reduzidos. (...) Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”. Controle e devir (entrevista a Toni Negri). Em: Conversações. Sobre o cérebro em Deleuze, ver igualmente: Imagemtempo, cap. 8 (“Cinema, corpo, cérebro e pensamento.”), p. 246, onde ele diz: “Não há menos pensamento no corpo do que choque e violência no cérebro”. Ver também: Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia?, p. 257-279 (“conclusão: do caos ao cérebro”).


que não vemos, tão habituados que somos aos nossos clichês recognitivos: “Já se chamou a atenção para o papel da criança no neo-realismo (...) é que, no mundo adulto, a criança é afetada por uma certa impotência motora, mas que aumenta a sua aptidão a ver e a ouvir”22. Marcio Costa é Psicanalista. Bacharel e Especialista em Filosofia. Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Social (UERJ). Pós-doutorado em Psicologia Clínica (PUC-SP) e Pós-doutorando em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Professor da graduação e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

22 Gilles Deleuze. A imagem-tempo. – São Paulo: Brasiliense, 2007 – (Cinema 2), p. 12.


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