Pandemia Crítica 104 - Sobre o cooperacionismo: um fim à praga econômica

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sobre o cooperacionismo: um fim à praga econômica Bernard E. Harcourt

Tradução Pedro Rogerio Borges de Carvalho


Mais de 30 milhões de estadunidenses submeteram pedidos de auxílio-desemprego como resultado da devastação econômica causada pela pandemia de coronavírus, elevando o desemprego ao maior nível desde a Grande Depressão. Apesar disso, as bolsas de valores dos Estados Unidos tiveram em abril seu melhor mês desde 1987;1 após um choque inicial, as bolsas se valorizaram de forma estável, subindo mais de 30% desde suas quedas no final de março. A maior parte dos economistas mostraram-se confusos2 e ofereceram explicações diárias irrealistas. Mesmo Paul Krugman teve pouco a dizer, sugerindo que “Investidores estão comprando ações em parte porque não têm para onde ir.”3 Não é de se admirar que os mercados tenham desafiado o colapso econômico. Para os mercados, não há nada como uma boa crise quando as pessoas certas estão no poder. Philip Mirowski escreveu de modo revelador sobre isso durante o último desastre – a crise financeira de 2008 – sob o título “Nunca desperdice uma crise séria.”4 Agora, também, a lógica fáustica sobre por quê investidores institucionais colocaram suas apostas no mercado não nos escapa. Em primeiro lugar, Donald Trump e os senadores republicanos expressaram com clareza solar que irão proteger as grandes empresas independentemente de quão ruins as coisas fiquem.5 Ao fortalecer as maiores empresas agora, os 1 New York Times, U.S. Stocks Have Their Best Month Since 1987. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/30/business/stockmarket-today-coronavirus.html#link-23f83d60. 2 New York Times, Everything Is Awful. So Why Is the Stock Market Booming? Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/10/upshot/ virus-stock-market-booming.html. 3 New York Times, Crashing Economy, Rising Stocks: What’s Going On? Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/30/opinion/economystock-market-coronavirus.html 4 Livro disponível em: https://www.versobooks.com/books/1613-neverlet-a-serious-crisis-go-to-waste. 5 New York Times, The Bad News Won’t Stop, but Markets Keep Rising. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/29/business/stockmarkets.html.


bailouts as ajudarão a eliminar seus competidores menores e facilitar práticas monopolísticas posteriormente. Após a pandemia, as grandes corporações estarão prontas para colher lucros predatórios, enquanto a maioria das pequenas empresas e negócios familiares estarão fora de atividade. Em segundo lugar, as cláusulas de caducidade sobre as restrições do bailout permitirão que acionistas e gestores se enriqueçam quando a recuperação econômica eventualmente acontecer, novamente sem precisar criar reservas porque sabem que receberão bailouts na próxima vez também. Como detalha Tim Wu, esses bailouts recorrentes permitiram que gestores ricos saqueassem em bons tempos – por meio de buybacks ­ de ações e remunerações exorbitantes de executivos – e fossem resgatados em tempos ruins.6 Isso, também, aumenta o valor de mercado enquanto cria capital para os ricos. Em terceiro lugar, Trump enfraqueceu qualquer momentum em direção a serviços universais de saúde ao prometer exceções financeiras para despesas de saúde relacionadas ao coronavírus. Essas isenções relativas ao COVID-19 protegerão os Republicanos contra repercussões negativas nas eleições de novembro de 2020. Depois que tudo houver terminado, os menos afortunados continuarão a ser assolados por cânceres comuns e doenças relacionas a pobreza7 sem qualquer cobertura, para o benefício das seguradoras privadas e de empresas e contribuintes mais ricos. Em quarto lugar, a pandemia está dizimando as populações mais vulneráveis de maneira desproporcional: idosos, pessoas de baixa renda, 6 New York Times, Don’t Feel Sorry for the Airlines. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/03/16/opinion/airlines-bailout.html. 7 The New Yorker, A Preventable Cancer Is on the Rise in Alabama. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2020/04/06/apreventable-cancer-is-on-the-rise-in-alabama.


não segurados, encarcerados e pessoas de cor. O desequilíbrio racial é exorbitante:8 a taxa de mortalidade do coronavírus para afro-americanos é quase três vezes maior que a mortalidade de brancos.9 As taxas de infecção da população carcerária também são aterradoras.10 As populações em risco são desproporcionalmente mais velhas e pobres, também no Medicare e Madicaid. Alguns se referem a isso como “o abate do rebanho”.11 Investidores de mercado podem esperar que a securidade social será um empecilho menor para a economia no futuro. Em quinto lugar, os Republicanos têm sido capazes de manter em segredo as bonanças tributárias em bailouts para milionários. Uma disposição legal nesse sentido suspende a limitação na quantia de deduções de receitas não comerciais que proprietários de negócios estabelecidos como entidades pass-through podem alegar como modo de reduzir sua tributação. O corpo congressional apartidário, a Comissão Mista sobre Tributação, estima que isso beneficiará desproporcionalmente cerca de 43.000 contribuintes no estrato tributário mais alto (mais de um milhão de dólares de renda), que receberão um lucro médio de 1,63 milhões de dólares por depositante.12 8 The Washington Post, The covid-19 racial disparities could be even worse than we think. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/ opinions/2020/04/23/covid-19-racial-disparities-could-be-even-worsethan-we-think/. 9 APM Research Lab, THE COLOR OF CORONAVIRUS: COVID-19 DEATHS BY RACE AND ETHNICITY IN THE U.S. Disponível em: https://www.apmresearchlab.org/covid/deaths-by-race. 10 Columbia Law School, COVID-19 Response Projects. Disponível em: https://cccct.law.columbia.edu/content/covid-19-response-projects. 11 Napa Valley Register, Controversial post leads to calls for Antioch commissioner’s removal. Disponível em: https://napavalleyregister.com/ news/state-and-regional/controversial-post-leads-to-calls-for-antiochcommissioners-removal/article_926f1e0f-3762-5e42-a992-4e85cf206eed.html. 12 Sheldon Whitehouse, WHITEHOUSE, DOGGETT RELEASE NEW ANALYSIS SHOWING GOP TAX PROVISIONS IN CARES ACT OVERWHELMINGLY BENEFIT MILLION-DOLLAR-PLUS EARNERS. Disponível em: https://www.whitehouse. senate.gov/news/release/whitehouse-doggett-release-new-analysisshowing-gop-tax-provisions-in-cares-act-overwhelmingly-benefit-milliondollar-plus-earners.


Os mercados se tornaram o espelho de uma verdade horrível. Michel Foucault observou de modo presciente,13 em 1979, que mercados são as pedras de toque da verdade em tempos neoliberais. E a terrível verdade que eles hoje revelam é que a pandemia é uma mina de ouro para grandes empresas, investidores institucionais, e os mais ricos. Eu ouvi uma vez um magnata imobiliário de Nova Iorque falar sobre a apropriação de terras nos Adirondacks na década de 1930 e comentar “A Grande Depressão foi ótima, não?!” Investidores institucionais deve se sentir do mesmo modo sobre a pandemia de COVID-19. Tristemente, dificilmente se poderia esperar muita diferença em um governo democrata, especialmente um que é igualmente devotado a Wall Street e a doadores ricos. Os últimos dois – os de Bill Clinton e Barack Obama – abraçaram avidamente políticas neoliberais tais como o trabalho para os desempregados e a assistência social para a elite empresarial. Os bailouts de Hank Paulson e Timothy Geithner de 2008 foram o modelo para os de hoje. O único caminho para avançar - além de uma próxima administração democrática - é uma genuína transformação jurídica que substitua o nosso atual regime empresarial por empresas cooperativas, mutualistas e sem fins lucrativos. Os muitos de nós que criam, inventam, produzem, trabalham e servem os outros precisam deslocar os poucos que extraem e acumulam capital e colocar em prática um novo cooperativismo que favoreça a distribuição equitativa e sustentável do crescimento econômico e a criação de riqueza. A estrutura jurídica que permite que a forma societária - a que Katharina Pistor chama com precisão de “o código do capital”14 – seja revogada 13 Bernard E. Harcourt, INTRODUCING THE BIRTH OF BIOPOLITICS. Disponível em: http://blogs.law.columbia.edu/foucault1313/2016/01/23/ introducing-the-birth-of-biopolitics/. 14 Livro disponível em: https://press.princeton.edu/books/ hardcover/9780691178974/the-code-of-capital.


e substituída por um novo quadro econômico que faz circular a riqueza gerada pela produção e pelo consumo. Estas formas jurídicas alternativas, que existem há séculos e que hoje nos rodeiam, incluem as cooperativas de produção, as cooperativas de crédito bancário, as cooperativas de habitação, as mutualidades para segurar e as organizações sem fins lucrativos para obras beneficentes e aprendizagem. Esta é também a única forma de enfrentar frontalmente a crise climática global. A lógica, os princípios e os valores dos acordos cooperativos podem servir para desacelerar nossa sociedade baseada em consumo a todos os custos. O objetivo da empresa cooperativa não é maximizar a extração de capital, mas sim apoiar e manter todos os participantes na empresa e distribuir bemestar, o que inclui e depende de um meio ambiente saudável. Ao substituir a lógica da extração de capital - a lógica extrativa como Saskia Sassen o chama15 – por um ethos de distribuição equitativa, podemos preparar-nos para enfrentar a crise climática após o fim da pandemia. Em retrospectiva, o termo capitalismo foi sempre um nome incorreto, cunhado paradoxalmente pelos seus críticos no século XIX. O termo sugere enganosamente que o capital funciona inerentemente de certas formas, tem um certo DNA e é regido por leis econômicas. Mas isso é uma ilusão.16 O capital é apenas um artefato moldado pelo Direito e pela política. O seu código é inteiramente criado pelo homem. E, como Thomas Piketty17 e outros demonstram, a atual concentração de capital e as crescentes desigualdades de riqueza não passam 15 Saskia Sassen on extractive logics and geographies of expulsion. Disponível em: https://undisciplinedenvironments.org/2017/08/09/ saskia-sassen-on-extractive-logics-and-geographies-of-expulsion/ 16 Bernard E. Harcourt, The Illusion of Free Markets. Livro disponível em: https://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674066168. 17 Thomas Piketty, Capital in the Twenty-First Century. Livro disponível em: https://www.hup.harvard.edu/catalog. php?isbn=9780674430006.


hoje de uma escolha política, não o produto de leis do capital. Na verdade, não vivemos hoje em um sistema em que o capital dita nossas circunstâncias econômicas. Em vez disso, vivemos sob a tirania daquilo a que eu chamaria “dirigismo do torneio”: uma espécie de esporte de gladiadores dirigido pelo Estado, em que os nossos líderes políticos concedem espólios aos ricos a fim de serem reeleitos (e, cada vez mais, para autofinanciarem as suas próprias campanhas políticas). Precisamos de deslocar este dirigismo do torneio com um quadro jurídico e político que favoreça a cooperação e colaboração entre aqueles que criam, inventam, produzem, trabalham, trabalham e servem os outros. Em vez de empresas que extraem capital para os poucos acionistas e gestores, precisamos de cooperativas, mutualidades e organizações sem fins lucrativos que distribuam amplamente a riqueza que criam a todos na empresa compartilhada; e nos precaver continuamente contra as grandes disparidades salariais que agora caracterizam o nosso dirigismo de gladiadores. Será a única forma de domar o nosso obsceno e destrutivo consumismo.18 Não basta aumentar os impostos progressivos sobre a riqueza dos bilionários e investir mais em hospitais e escolas públicas, como sugeriu recentemente Piketty.19 Isso não vai alterar fundamentalmente a lógica e as tentações faustianas. Em vez disso, e urgentemente, é hora de substituir o nosso sistema de dirigismo de torneio por um novo cooperacionismo. Ainda há muitos de nós neste país que estão encantados com o mito do individualismo americano - a ideia de que podemos fazer tudo sozinhos, 18 Joshua Clover, The Rise and Fall of Biopolitics: A Response to Bruno Latour. Disponível em: https://critinq.wordpress.com/2020/03/29/ the-rise-and-fall-of-biopolitics-a-response-to-bruno-latour/. 19 Democracy Now, Economist Thomas Piketty: Coronavirus Pandemic Has Exposed the “Violence of Social Inequality”. Disponível em: https:// www.democracynow.org/2020/4/30/thomas_piketty.


inventar, criar e construir coisas por nós próprios e colher todos os benefícios. Está profundamente enraizado no imaginário público, ligado à imagem do pioneiro do garimpeiro de ouro e às brilhantes recompensas do trabalho solitário e árduo. A ideologia é subjacente à forma empresarial e à lógica da extração de capital. Mas, na sua maior parte, conseguimos inventar, criar e produzir por meio do apoio mútuo, do trabalho em conjunto e da colaboração. São estas formas de cooperação que devem sustentar uma economia pós-pandemia. Esta pandemia e este colapso econômico não devem nos impedir de trabalharmos juntos para nos colocarmos em melhor posição para lidarmos com a outra crise - a mudança climática - que ainda paira no horizonte. Pelo contrário, estes tempos exigem uma revolução jurídica, política e econômica para anunciar uma nova época de cooperativismo. Isto vai exigir vontade política. Ela não virá de nossos líderes políticos, tão vinculados às contribuições corporativas. Ela terá que vir de todos nós unidos. Publicado originalmente como “On Cooperationism: An End to the Economic Plague”, https://critinq. wordpress.com/2020/05/05/on-cooperationism-an-end-tothe-economic-plague/, 5 de maio de 2020.

Bernard E. Harcourt é Professor de Direito e Ciências Políticas na University of Columbia, em Nova Iorque, e Diretor de Estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. É autor de The Illusion of Free Markets (2011) e The Counterrevolution (2018), e do seu próximo livro Critique & Praxis (2020).


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