"E daí? Todo mundo morre" A morte depois da pandemia e a banalidade da necropolítica Hilan Bensusan
A história da morte A morte também tem uma história. Ela já foi o fim de todo jogo, já foi algo sagrado e intocável, o preâmbulo da redenção, o interdito, o motor da guerras e das conquistas, uma arma poderosa de ameaça e de subjugação. A partir de algum momento nessa história, a morte tomou a vida como refém, como escrevia Georges Bataille, e a transformou em mera sobrevida. Ou seja, passou a importar apenas que haja sobrevida. Assim, a premissa é a de que, para basta uma persistência, basta uma sobrevivência. A morte é um objeto de adiamento que jamais se confunde com um completo exorcismo – ela se torna o espectro de todos os espectros e configura a ordem política na forma da soberania de um corpo político, que adia a morte de quem a ele pertence. Tal presença política da morte faz com que a sua história se torne o motor de qualquer história. Ou antes, que toda história se torne uma versão da história da morte. A pandemia na qual estamos vivendo é a consolidação de uma nova era na história da morte: a era da necropolítica preponderante. Nela, como em outros momentos, a morte se torna explicitamente parte da atividade e do jogo político – parte do cálculo econômico, mas, sobretudo – e nisso reside a novidade –, ela se torna explicitamente parte da articulação biopolítica. O controle das populações deixa de ser limitado pelo estigma do genocídio, pela recusa ao assassinato ou pelo mero direito prima facie à sobrevida. A sociedade que controla como se vive passa, sistematicamente, a controlar também quem pode ser abandonado à própria (m-s) orte. E não apenas as instituições garantem o direito à sobrevida e adiam a morte (apenas de alguns): ela investe na dispensabilidade de muitos. As instituições abdicam de procurar adiar algumas mortes e assim, ativamente, passam a antecipá-las.
Achile Mbembe vem diagnosticando esse gradual avanço das sociedades biopolíticas de controle global em direção ao que chama de necropolítica. Mais ainda do que o manejo da vida, importa a capacidade de gerir a morte – ou de tornarse indiferente a ela e à sua antecipação ou adiamento. Mbembe entende a necropolítica a partir do devir negro do mundo, que faz com que a experiência da supremacia branca da aventura colonial seja generalizada no capitalismo tardio; os trabalhadores se tornam menos integrados, mais precários, menos imprescindíveis, mais matáveis. A necropolítica preside sobre a transformação da ordem liberal de cidadãos numa ordem servil de conscritos que podem ser requisitados e dispensados na velocidade da desterritorialização do capital. Se a experiência colonial permitiu que populações inteiras de negros e negras fossem colocados à disposição desse regime, e finalmente arranjados em Estados nacionais que funcionam como bantustões, a maioria das demais populações pode igualmente ser posta neste regime. Os mecanismos que permitiram a subjugação colonial – os instrumentos da morte – podem ser adaptados a qualquer outra circunstância para “criar mundos de morte, formas únicas e novas de existência social nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de mortos-vivos”1, escreve Mbembe. Esta empreitada, Mbembe mostra, torna toda resistência dificilmente distinta do suicídio. E de um suicídio corriqueiro, banal. O diagnóstico de Mbembe é que na era do trabalho dispensável, da soberania disponível e da servidão compulsória, sobreviver ou morrer se tornaram intercambiáveis e já quase, como no poema de Beckett, assuntos de meia-pataca. A pandemia Entra Bolsonaro, personagem da trama do devirbantustão dos povos subjugados. E coincide com a pandemia que já matou 400 mil pessoas no mundo, 1 Achile Mbembe, Necropolítica, São Paulo: n-1, 2018, p. 71.
mais de 30 mil no Brasil. Chega preponderante a era da necropolítica. Confrontado com esses números, ele declara: “E daí? Morrer é normal, todo mundo morre, mais cedo ou mais tarde. Eu lamento – o que que eu posso fazer?” Nada a fazer. E mais, ele diz que procura cuidar da economia, “também se morre de fome e desemprego”. Talvez haja uma escolha entre duas mortes – a lenta e a violenta. Talvez uma preferência pela sobrevida dos mais aptos a trabalhar. De todo modo, Bolsonaro ecoa a opção dos dirigentes nessa pandemia: manter as pessoas vivas ou a economia girando. A chefe da superintendência de seguros privados completa: “A morte de idosos melhorará nosso desempenho econômico pois reduzirá o déficit previdenciário”. Entre as variáveis previdenciárias, há o número dos que sobrevivem mais do que sobretrabalham e mais do que sobrevalem. Que não vivam mais e resolve-se o problema de balança. À era da necropolítica segue-se uma era em que se podia pretender adiar a morte de todes em um corpo político melhorando-lhes a vida. O discurso sobre a morte é que ela precisa ser temida – e as instituições a temem o suficiente para proteger aqueles que a elas se submetem. Na necropolítica, a subordinação completa às instituições não garante nem sobrevida, nem o empenho dessas instituições na sobrevida – a sobrevida se torna secundária. O problema da necropolítica, posto em termos contratualistas, é que, se renuncio à alguma liberdade ou soberania em troca de alguma segurança e minha sobrevida – minha segurança – é tratada como uma moeda de troca macroeconômica, já o contrato foi rompido e cedi a alguma liberdade ou soberania sem contrapartida. O dedo na ferida necropolítica de Mbembe é que é preciso para que a contrapartida e o contrato desapareçam do horizonte. Nunca houve contrato no empreendimento escravista – ou pós-escravista – colonial. O contrato não habita a plantation. A morte está presente apenas como intimidação, a
cada momento, a cada possibilidade de insurgência. Cada insurgência é refém da morte – mas o autosacrifício nem sempre é mais do que uma autoimolacão sem consequências. Ou então os nativos são violentos – insubordinados, desobedientes, brutos, selvagens, indomáveis – e é preciso buscar os nativos que convém alhures. Para isso, também agiu o discurso colonizante do ensandecimento como um estado médico – que olhava a morte e tinha sempre uma frase que deixava aquilo mais ou menos, como no poema de Leminski.2 Como quem diz “vítima de um aneurisma, fez um câncer, foi uma embolia”. Durante o golpe que retirou Dilma do palácio do Planalto, um homem, que ateou fogo ao próprio corpo em frente ao local, foi levado para o hospital. Talvez curado. Como entende Mbembe, é preciso criar as condições para que qualquer contrato social que dê segurança a quem se submete às instituições desapareça de cena – e seja substituída pelo binómio do emprego e da intimidação; é preciso que haja uma transição para uma era sem expectativas de segurança. As terras indígenas são proteção legal para os que nelas vivem – essa proteção desaparece e entram os garimpeiros, os traficantes de madeira e o coronavírus. Toda resistência é inútil e suicida – os residentes são tomados como primitivos, a menos que aceitem fazer negócio em condições sistematicamente desfavoráveis e rodeados por toda forma de intimidação. Não há mais proteção, não há mesmo garantia alguma, e o porte de armas, a compra de munição e o uso de violência para a defesa da propriedade fica sancionada e encorajada. Enfia-se o país na necropolítica completa. Vale notar que toda era da história (da morte) é implantada à ferro e fogo. Sem contratos sociais, não há estabilidade a não ser aquela da intocável permanência da propriedade. É ela que ganhou músculos suficientes para prescindir da soberania humana. Na era da póssoberania, a cidadania é ela mesma obsoleta e toda política se torna política da morte. 2 “O que passou, passou”.
A necropolítica militante A necropolítica é um estágio da aventura do capital na Terra. É uma aventura que se entrelaça com a transformação do que há no planeta em recurso pronto para ser requisitado e dispensado – o processo que produz a ordem servil dos conscritos. A dispensabilidade de toda coisa é o processo que faz de toda produção corporal um trabalho abstrato. Assim, ele pode ser reproduzido por quem for – es proletáries são substituíveis umes peles outres –, automatizado. A força e o viço da produção desaparecem. O trabalho abstrato separa o trabalho de quem trabalha. Precede à era da necropolítica um niilismo que se dobra diante da exceção humana. Os textos de Mbembe, entre tantos outros, deixam claro que como não há cidadania e nem contrato e nem garantia e nem sacralidade da vida do lado de baixo do Equador (e em grandes áreas mesmo acima dele), também não há exceção humana. A exceção, portanto, é talvez a exceção branca – ou a exceção moderna ou, ainda, a exceção rica. Deixada de lado a exceção – o que faz o devir negro do mundo – o niilismo se generaliza por toda parte. Ou seja, não há soberania que impeça que tudo e todes se tornem um dispositivo, um recurso à disposição e sob comando - e em que os comandos podem ser exercidos por quem puxar as alavancas. O niilismo coincide com o momento em que tudo pode ser reproduzido, já que a potência das coisas foi extraída e sua inteligibilidade, capturada. A necropolítica, como regime global, é a chegada do niilismo à maior parte da humanidade. Tudo e todes podem ser substituídos e dispensados, já que nada fazem senão seguirem comandos abstratos. O proletariado se torna um precariado, quando, ao invés de formar uma máquina produtiva cada vez mais poderosa, termina refém de sua substituibilidade: o que é internacional é seu caráter descartável. Martin Heidegger, que via no ocidente, que perseguia o conhecimento a qualquer custo, o
bastião do niilismo, entendeu que a banalização da morte a transforma em um mero desaparecimento. Antevendo a necropolítica do niilismo, Heidegger descreve campos de aniquilação à disposição para a fabricação de cadáveres.3 Cadáveres sem funeral, sem rosto, sem velório, sem liturgia – a produção anônima de cadáveres. Cadáveres tratados como um output económico negativo, que precisa ser ocultado, ou rebalanceado – e rapidamente. Assim é a morte no meio da pandemia. A era da banalização da morte é a era em que um número sem precedentes de espécies de vida – humana e não-humana – desaparece a cada ano. Há uma insensibilidade acelerada acerca da morte; se ela se tornasse algum divisor de águas, ela faria parar tudo, como em um ritual fúnebre. Ela não deixaria as populações indiferentes ao entorno, que é um cemitério geral; à sua vizinhança, que é um abatedouro cósmico. A insensibilidade, junto com o exorcismo de toda garantia e segurança que provenham do empenho que produz cidadania, é insumo para a necropolítica escancarada. Com uma quantidade de insumos suficiente, a nova era política da história da morte chega arrebatadora. Bolsonaro é o nome do acontecimento da necropolítica triunfante no Brasil. Oriundo das formas de poder como controle – as igrejas, o agro-negócio e sobretudo as milícias cada vez mais indistintas das polícias – ele aparece para combater os resíduos de cidadania com direitos, e de soberania compartilhada. Oriundo dos agentes necrocratas brasileiros – mandantes dos assassinatos e mandatários dos salvocondutos históricos de um Estado sempre necróide e distribuidor de cidadania para poucos – ele aparece como a fusão do Estado e da máfia, como tem analisado recentemente Paulo Arantes. Coincidido com a pandemia, ele traz a necropolítica da periferia para o centro, da cozinha para a sala, da margem para o holofote. Não precisa mais 3 Ver a conferência de Bremen entitulada “Die Gefahr”.
do discurso pela vida ou da ênfase em alguma garantia, bastam ameaças e odes ao armamento. Outro termo de Mbembe: a necropolítica é um brutalismo. Uma campanha eleitoral e uma campanha de apoio simbolizada por uma arminha feita com as mãos: a necropolítica eleitoral. Talvez os fascismos tenham sido a variante metropolitana do experimento necropolítico colonial então em curso. O Brasil, que não foi concebido como país para ser muito mais que um bantustão, agora tem a chance de se encontrar com seu passado colonial – escravocrata, genocida de populações precedentes, centrado na supremacia da exceção branca – na sua forma mais brutal: a necropolítica nua e crua. Não é preciso mais fingir que a plantation é uma república. Ainda que a máfia sempre deva favores, dever favores não estabelece soberania, apenas reforça o poder brutal de quem pode intimidar. Parece que o que está em jogo é mais visceral do que o fascismo: “e daí? Todo mundo morre” é a palavra de ordem para a implantação de uma necropolítica militante. O combate Como combater o niilismo militante na forma de necropolítica instituída? Pode ser insuficiente lutar pelo retorno (ou melhor, pela instituição) das garantias e seguranças de um contrato social – pela democracia em sua mais alta intensidade, que pudesse abolir as máfias e as células há muito necrosadas do Estado. O germe da necropolítica brasileira seja talvez mais disseminado ainda – ele está na impossibilidade de sua soberania, na impossibilidade de um(a fábula de) contrato social em uma sociedade que surgiu da colonização. A comunidade é anátema do colonial. A necropolítica brasileira tem raízes originárias – como o que é colonial tem pacto com o que é niilista. Talvez então a virada seja outra: a anástrofe de algum porvir alternativo na história da morte. Ou seja, fazer um futuro outro colidir com o presente de que a necropolítica se apodera. Talvez não baste sequer procurar reverter a obsolescência niilista
da soberania em favor de uma autonomia que a vida colonial nunca endossou. Talvez o combate seja a escrita de outro capítulo na história da morte. Um capítulo que possa ser indiferente aos poderes de vida e morte que vêm de longe – de um desterrado capital – e que configuram o medo e a inveja que dão forma a um bantustão. Aqui a geontologia de Elizabeth Povinelli pode ajudar.4 Ela apresenta – e recomenda – uma indiferença às tramas do imaginário carbônico balizado sobre a suposta distinção saliente entre o vivo e o morto, entre o orgânico e o inerte, entre o animado e o inativo. Ela enuncia figuras que sofrem o impacto desse imaginário e que ao mesmo tempo o problematizam – o deserto, no mínimo da paisagem orgânica; o vírus, no mínimo da vida e o animista, no máximo da expansão do que tem agência. Essas figuras perturbam o imaginário carbônico e, apesar das aparências, terminam por confirmá-lo e agir dentro de seu campo. Povinelli descreve rochas, morros e enseadas que, na luta de um grupo (dissidente) de aborígenes australianes – Karrabing - impelem o rompimento com a distância entre o vivo e o nãovivo. Independente dos detalhes desta luta pela sensibilidade não-branca e não-colonial, sua recomendação talvez aponte para um outro futuro na história da morte. Um futuro onde ela perca o protagonismo sobre qualquer sensibilidade. Nesse futuro, a atenção que alguma coisa receberia não dependeria dela estar viva ou morta, dela ser inerte ou animada, dela poder ser refém da morte ou alheia a ela. Um futuro deflacionário para a morte onde o que importa é indiferente a ela – e talvez a possibilidade de uma história futura que não seja uma história da morte. E se a geontologia pode ajudar a combater a necropolítica triunfante – essa paisagem de poder tributária do imaginário carbônico tardio – é porque há um porvir na ideia de que a importância do que fazemos e da 4 Elizabeth Povinelli, Geontologies – A requiem to late liberalism, Durham: Duke University Press, 2016.
atenção que dispensamos às coisas é indiferente às ameaças de morte. Ao invés de seguirmos às voltas com figuras do espectro da morte como a soberania, talvez tenhamos que buscar aquilo que vale independente de uma aniquilação premente ou ameaçada. O niilismo, afinal, é ele mesmo uma personagem do imaginário carbônico. Em todo caso, imaginar uma pós-necropolítica é urgente. Depois da pandemia – se esse tempo de fato surgir – a necropolítica não vai desaparecer imediatamente, já que ela não germinou apenas com o coronavírus. Mas talvez haja a oportunidade de concentrarmo-nos naquilo que importa, apesar das tramas de vida e morte. A necropolítica triunfante talvez sirva para deixar explícitas a irrelevância, para o poder, dos assuntos de meia pataca de vida e morte. Porém trata-se de inventar processos, procedimentos, projetos e programas que sejam indiferentes ao terror cínico da necropolítica – começar alguma coisa que não possa ser obstruída. Começar a ter um sonho premonitório com aquilo que não estremece diante de uma arminha na mão. Hilan Bensusan faz filosofia, performance, ensina na Universidade de Brasília onde investiga se há possibilidades para pós-niilismos futuros. (hilanbensusan.net)