Um mundo em suspensão: des-globaliza¢ão e reinven¢ão John Rajchman
Tradução Luiza Proença
A planejada exposição Résistance, junto à sua correspondente conversa “inacabada” momentaneamente deslocada a uma residência privada no East Village, na verdade nunca aconteceu. Agora, ela está suspensa, parte de uma interrupção mais geral do mundo globalizado da arte (e do mundo universitário a ele relacionado) de que então fazia parte e no qual a pandemia global deixou rastros. Talvez ela nunca aconteça. Logo, como suas amplas questões sobre “exposição e resistência” poderiam ser reformuladas nessas circunstâncias? De que forma essas mesmas questões estão agora “em suspensão”? Enquanto eu escrevo (junho de 2020), há muita incerteza, muito debate. Ninguém sabe exatamente como a pandemia terminará, quais efeitos produzirá na economia e na política, a que tipo de nova “mobilização” ela levará, qual papel a arte e as instituições artísticas podem desempenhar nesses processos. Nós ainda estamos no meio, de uma só vez, em vários lugares e maneiras. Seguem-se algumas considerações posteriores realizadas nessa pausa estranha, em que revejo esse projeto. Por se tratar de uma reencenação, no mundo da arte, de uma proposta obscura que Lyotard deixara incompleta, pode-se dizer que o projeto tinha um aspecto arquivístico. Mas talvez, agora, essa mesma reencenação em um estilo “curacionista” pareça um arquivo de um tempo anterior, em que uma discussão tão extensa em andamento, apoiada por uma fundação privada, aconselhada por “curadores globais” familiares, ainda parecia possível – uma espécie de grande canção do cisne de uma louca época passada. Percebe-se, pelo menos, que o jogo deve ser praticado de novas maneiras, em relação a novas forças expostas, liberadas e aprofundadas de uma vez pela pandemia – forças de “desglobalização”, populismo, nacionalismo, divisão irreconciliável, desigualdade alimentadas pela manipulação das mídias sociais –, exigindo novas
formas de resistência, novas maneiras de trabalhar em conjunto. Ao mesmo tempo, somos confrontados com restrições globais maciças aos movimentos de todos os bens e pessoas, que agora enfrentam os orçamentos e os objetivos das instituições artísticas mundiais – não apenas em Nova York ou Paris, com seus grandes públicos “globais”, mas também em feiras de arte, não só de Bolonha, mas da própria Basileia, e, é claro, nas bienais (e a “bienalização” do mundo). Repentinamente privada do turismo global que ajudou a estimular sua venerável bienal, Veneza talvez encontre um novo papel. Livre do espetáculo familiar do mundo da arte internacional que aterrissa a cada dois anos com seus iates, telefones celulares e cobertura midiática, talvez Veneza possa novamente se tornar parte de uma ampla reinvenção da Europa como zona e exposição de arte. Por sua vez, os museus de Nova York, privados de seus públicos globais e seus projetos globalizantes, estão tentando repensar seus objetivos – particularmente em relação à China. A própria China, com seu mundo artístico paralelo e novas riquezas, parece estar mudando, afastando-se de um momento anterior de engajamento com os Estados Unidos, impulsionada por forças geopolíticas maiores desencadeadas com a ajuda da pandemia. A “re-abertura” em fases do mundo da arte tornou-se, em suma, um momento de reinvenção, de reformulação, diante de novas forças imprevistas, com meios restritos e com dispositivos “virtuais” e formatos de discussão delas originados. Como as aspirações transnacionais na conversa itinerante sobre a exposição Résistance podem ser reformuladas e representadas nessas novas circunstâncias imprevistas? Como podemos agora combater (e então resistir) às forças “des-globalizadoras” e nacionalizadoras que a pandemia despertou? Em resumo, como seria a apresentação de “résistance”
no nosso mundo da arte global durante essa transição incerta e tensa? Se olharmos para o velho mundo parisiense de Beaubourg nos anos 1980, descobrimos que Lyotard já estava lidando com questões parecidas. Atualmente, nós nos perguntamos sobre o efeito da exposição, discussão, educação via zoom e da fadiga que as acompanham. Mas a questão das “novas tecnologias” já estava no centro da exposição Les Immatériaux, de Lyotard, a maior de sua história, que inspirou posteriormente Daniel Birnbaum (hoje ele próprio no ramo da arte digital) a ver nela uma espécie de precursor “curacionista” e que motivou, já naquela época, Philippe Parreno a inventar novas maneiras de fazer e exibir arte. A questão foi colocada de uma nova forma, sugerida em seu título. A ideia de Lyotard era que as “novas tecnologias” haviam induzido uma “desordem”, algo completamente diferente da velha ideia cartesiana de apresentar objetos aos sujeitos. Foi essa nova condição que a exposição buscou então dramatizar com vários dioramas na frente dos quais os visitantes passavam, equipados com fones de ouvido, como se estivessem ouvindo rádio enquanto dirigem por um alastramento urbano de Los Angeles. Encorajados, assim, a perambular por uma desordem tão “imaterial”, os visitantes começariam a se perguntar: quem somos nós no meio de tudo isso – e quem ainda podemos nos tornar? Tal era, em 1985, o estado das coisas que as tecnologias da informação estavam ajudando a introduzir e que Lyotard esperava tornar visível. É claro que, hoje em dia, no mundo globalizado da internet, dos smartphones, da vigilância, das mídias sociais, dos algoritmos de “big data” em que todos nós habitamos, isso parece bastante antiquado; nossa mídia atual, ou “condição” tecnológica, não é mais o que era em Paris, vários anos antes da invenção da “world wide web” e tudo o que decorreu dela. No entanto, é instrutivo
que as “novas tecnologias” da época não foram vistas como próteses ou substitutos de atividades pré-existentes, mas sim em termos de arranjos mais amplos de pessoas e coisas, exigindo novas invenções, novas maneiras de pensar junto – uma questão de “ce qui nous arrive” (“o que está acontecendo conosco”), Lyotard poderia ter dito. A “novidade” das novas tecnologias, em outras palavras, é a maneira como elas quebram hábitos antigos, colocando novas questões. É isso que as conecta ao tipo de “incomensurabilidades” maquínicas no campo de visão que Lyotard analisou em Les Transformateurs Duchamp, geralmente com o tipo de “dissenso” que ele estava tentando introduzir no coração do julgamento estético. Nesse momento de negócios e fadiga via zoom, é útil ter isso em mente. Talvez as “novas mídias” nunca sejam apenas substitutas de atividades anteriores (como exposição ou ensino), mas parte de transformações maiores, colocando novas questões, de que artistas e intelectuais participam. Como, então, as onipresentes plataformas virtuais de agora podem ser usadas de novas maneiras, livres dos ditames das empresas de mídia e de hábitos institucionais arraigados? Como elas podem ser adotadas de novas formas “resistentes” ou “inventivas”, dedicadas a modos “transnacionais” mais amplos de pensar e pensar junto – e, assim, ao que está acontecendo conosco agora, em nossa suspensão causada pelo Covid? Há um segundo aspecto das (pre)ocupações de Lyotard daquele momento que é útil recordar: como tais “momentos” de disrupção técnica ou midiática aparecem em momentos maiores de resistência e reinvenção. A questão de tal resistência percorre todo o itinerário de Lyotard, começando após a Guerra, com o grupo Socialisme ou Barbarie, pontuado pelos “eventos” de 1968. Na época de Les Immateriaux, a questão foi formulada na última seção de Le Differend sobre o “sensus communis” em
Kant. Lyotard aproveitou muito das passagens de O conflito das faculdades nas quais Kant fala de um “entusiasmo” pela Revolução, independentemente do seu resultado final, notado nos sinais sensuais ou “estéticos” que ela oferece para um novo futuro. Mas, de que maneira, então, tal “entusiasmo” pode aparecer como resistência e reinvenção nos movimentos “estéticos” de hoje? Em que sentido a resistência é hoje uma questão de “sensibilidades em comum” em um “momento” novo ou disruptivo em nossas relações conosco e uns com os outros, nas maneiras como governamos a nós mesmos e os outros – no que está acontecendo com a gente? De várias maneiras, Le Différend formulou a questão da resistência em um contexto de Guerra Fria e pós-guerra que seria revertido pelos “eventos” de 1989, em Berlim (e também em Pequim), que inaugurariam um novo mundo de globalização do trabalho e das riquezas, que logo transformariam o mundo da arte. Nesta nova condição “neoliberal” global, a questão da resistência tornou-se menos uma questão de Vanguarda e Revolução, e mais de cidadania ativa, atravessando fronteiras e territórios, fora de determinados regimes e sistemas econômicos, exigindo novos modos democráticos delineados de algum modo por agrupamentos e manifestações públicas “sem líderes” – no Occupy, depois no Black Lives Matter, nos Estados Unidos, e também, de forma marcante, com Black Lives no Sudão ou para uma nova geração na própria Argel, por exemplo. Já começando com o Movimento Verde iraniano, as “novas tecnologias” foram mobilizadas em tal “resistência”; smartphones e mídias sociais seriam empregados para realizar grandes manifestações públicas em muitos lugares e regimes, geralmente contra desigualdades e corrupção. Como no marcante caso de Hong Kong, o vírus suspendeu essas atividades juntamente com sua energia, seus afetos, seus “entusiasmos”.
Parece que, enquanto ocorriam as intermináveis conversas “curacionistas” sobre o significado de “resistência” no final da vida de Lyotard, do lado de fora da residência no East Village na qual elas aconteciam, havia a manifestação de um “movimento de mulheres” popular nas ruas de Nova York, logo depois da eleição de Trump, após a qual haveria surpreendentemente pouco desse tipo de “resistência” nos Estados Unidos. Mas enquanto escrevo isso, há novamente um movimento nas ruas de Nova York, desta vez com uma ressonância muito maior – o movimento George Floyd. Será que um dia veremos nele um primeiro movimento “pósCovid”, em que as pessoas voltaram às ruas após seu longo lockdown? Será que ele capturará um novo sentimento de “entusiasmo”, como antes, na época e geração de Lyotard, em 1968, mas agora para um momento global e a geração correspondente, muito mais “precários”? Certamente, é cedo demais para dizer se esse novo entusiasmo será o início de um novo movimento mundial de “resistência e reinvenção” ou se, em vez disso, incitará forças reativas do tipo que já vemos, por exemplo, na Hungria, Turquia ou Brasil. O vírus expôs as fraquezas de todas as sociedades que tem assolado – desigualdades econômicas e raciais, limitações das cadeias globais de produção, sistemas de saúde inadequados; já começou a redesenhar o mapa geopolítico das instituições de ordem e desordem mundiais; e, é claro, ainda não acabou, pois agora olhamos para o que está acontecendo na América Latina ou na África, assim como em Pequim ou Berlim. O vírus, portanto, revirou muitos hábitos e suposições. Talvez seja por isso que, neste momento de suspensão do mundo da arte, estamos perguntando novamente, assim como Lyotard parecia estar no final de sua vida, o que é “resistência”. Quem somos nós nisso tudo? Qual papel as sensibilidades em comum e, portanto, a arte e as instituições
artísticas podem desempenhar nisso? Em outras palavras, dado o que está acontecendo conosco agora, como podemos nos re-inventar – e como, no processo, podemos combater as forças crescentes da des-globalização? Esse texto de John Rajchman é a tradução do “Posfácio” ao seu ensaio intitulado Lyotard’s “Résistance” Today, a ser publicado em Double Trouble in Exhibiting the Contemporary: Art Fairs and Shows, editado por Cristina Baldacci, Clarissa Ricci e Angela Vettese (Milão: Scalpendi, 2020). Foi generosamente cedido pelo autor e pelas editoras para a série “pandemia crítica”.
John Rajchman é filósofo.