não consigo respirar Raoul Peck
Tradução Ana Catharina Santos Silva
Esta manhã, quando acordei, eu já estava destroçado. Tenho tido muitas manhãs como esta. E cada uma dessas manhãs deixa uma marca. Marcas que se acumulam. E então vêm aqueles pesadelos adormecidos que voltam com cada explosão... O que está acontecendo nos Estados Unidos neste momento está me deixando enojado. Mas não é da América que eu quero falar. Eu quero falar sobre a França. Por que magia extraordinária a França poderia ficar fora deste grande desempacotamento? Porque hoje de manhã, quando acordei, comecei a chorar. Incontrolavelmente, chegando a ficar sem fôlego. Algo tinha acabado de se romper. Eu tinha acabado de perceber que minha história com a França tinha acabado de chegar ao fim. Este país que me acolheu há mais de cinquenta anos, que me acompanhou ao longo da minha vida profissional, que me deu tremendas recompensas, responsabilidades difíceis, realizações individuais reais e às vezes até coletivas. Este país com o qual eu sempre tive uma relação sutil entre desconfiança desiludida e confiança realista, entre tolerância construtiva e descrença consternada. Um país no qual, no entanto, eu nunca medi minhas palavras. Minha concepção deste país tinha acabado de se liquefazer. Demasiado silêncio, ignorância, desprezo pelo outro, egoísmo e, sobretudo, muita negação tinham superado essa “construção”, que era em última análise puramente teórica, que eu pensava dominar. Sim, a França nega a si mesma. Pois a França ainda se considera tão gloriosa, tão serena, tão valente como no passado que criou para si. Há alguns dias, o historiador Marcel Gauchet escreveu no jornal Le Monde: “A França se considera o centro do jogo e os franceses vivem em grande parte desta idéia”. O infeliz Valéry Giscard d’Estaing ousou uma vez dizer, num momento de sinceridade mal orientada: “A França é uma
potência média”. Foi um alarde! No entanto, foi profético. Desde então, ninguém se atreveu a ir nessa direção. Nosso país tem um problema com sua autoimagem e com uma apreciação realista de sua posição no mundo. Nossa França (ainda me posso permitir?) não consegue largar mão de sua glória passada, de fato, oh, tão heroica. Ela, que acendeu revoluções em todo o mundo. Ela que permanece, apesar de tudo isso, o símbolo dos direitos humanos. Mas o império se rebelou e o dominador teve que ceder. E a manutenção da miragem começou a custar a todos. Incapaz de dar respostas construtivas a esta nova realidade, apavorada por uma decadência que já não consegue mais esconder, intoxicada pelos gritos da sirene chorosa de alguns filósofos que se compadecem de um possível “fim de civilização”, ou mesmo do máximo pesadelo (!), o “desaparecimento do homem branco” (sic! Juro! Na televisão francesa). Só temos que fazer o esforço de entender que simplesmente chegamos ao fim de um legado demasiado pesado de injustiça, negação e lucro, construído sobre a miséria dos outros. A França está em negação porque se recusa a aceitar que perdeu seu lugar e seu império predominante. Também perdeu seu título simbólico como nação de direitos humanos (as sentenças proferidas pela Corte Europeia de Direitos Humanos são testemunho disso). Um lugar - é preciso dizer - que a “escória” da época, faminta, abandonada e ignorada, terá imposto pelo fogo e pelo sangue ao tomar a Bastilha e depois, no momento certo, ao parar o rei em fuga numa rotunda de coletes amarelos em Varenne. Nós preferimos esquecer essa parte. São sempre os miseráveis que começam a construir a História! Só então é que é recuperada - como sempre! -, pelo novo poder, a nova burguesia, ou mesmo a velha dinastia, depois de ter mudado o nome do partido, para “colocar a
economia de volta nos trilhos” (slogan-chave para entender o capitalismo). Moro na França há mais de cinquenta anos. Há mais de cinquenta anos eu venho antecipando esta fratura. Há mais de cinquenta anos, oscilando conforme o momento entre testemunha, observador ou ator, venho observando, estupefato, os ultrajes, as palavras racistas, os gestos racistas, as decisões racistas, as leis racistas, sem que ninguém queime os Champs-Élysées ou, pelo menos, o Café de Flore, ao invés do Fouquet’s para variar (nota aos trolls: isto é uma mera ilustração). Em um filme que dirigi em 2000 (!), Le Profit et Rien d’Autre (Canal Arte), fiz a pergunta retórica: “Por que eu faço filmes?, à qual eu mesmo respondi: “Porque é muito mais decente do que queimar carros”. Alguns amigos pensaram que era piada. A concentração da raiva que se acumula a cada dia no coração daqueles que “não se parecem com você”, daqueles que olham para você de fora através da janela embaçada, é imensurável. É importante notar com toda transparência que estou escrevendo tudo isso a partir da posição de um homem negro que é absolutamente privilegiado em todos os sentidos neste país. Consegue imaginar só por um momento como os outros se sentem? A França está em negação e seus filhos já não têm mais tempo. Seus filhos “adúlteros” não querem mais esperar. Suas crianças pretas, brancas, amarelas, arco-íris estão inquietas. “Os nativos estão inquietos”, diria o colonizador. Eles não têm a vida toda pela frente. Eles podem ver que você não fez nada que valesse a pena nos últimos sessenta anos, nada mais do que administrar a herança de uma maneira confortável. Eles já viram muita desgraça se amontoar na frente deles. E viram em algum lugar que o “responsável” não fez nada, que o “responsável” não se sentiu “culpado”, e talvez até pior, que o “responsável” não seria
sequer o “verdadeiro” responsável, mas sim seus executores. Seus filhos entenderam que é o 1% mais rico que decide - e eles nem precisam levantar um dedo mindinho para fazer isso, porque a máquina funciona muito bem sozinha. Os políticos zumbis, subservientes aos poderosos, nada mais são do que pequenos capitães tentando tranquilizar as pessoas de bem da primeira e segunda classes do Titanic sobre o fato de que dominam bem a terceira classe e de que não haverá tumultos - promete-se enquanto o navio afunda cada vez mais rápido no mar frio. O que tudo isso tem a ver com o racismo? Tenham paciência: ter um pouco de “contexto” ajuda a chegar ao ponto. Desde a crise do petróleo dos anos 70, o mundo entrou em um novo ciclo capitalista. Isto tem colocado em questão o equilíbrio de poder existente. Os antigos impérios estão perdendo sua exclusividade e se recusam a assumir que a glória é (ultra)passada e que a idéia de onipotência deve ser abandonada. Assim, as consequências são passadas para os outros. A maioria. Decide-se fazer “reformas” nos baixos setores, esmiuçar as conquistas “muito caras”, e inventa-se um novo eufemismo: “racionalizar”. A proteção social é desmantelada, os hospitais são remunerados por prestação de serviços, as escolas são “desossadas”, privatiza-se a qualquer custo e as joias do reino são vendidas, os salários são congelados, as aposentadorias são saqueadas, os mais fracos são dessocializados e os menos “eficientes” são realocados. Enquanto isso, os ganhos do capital financeiro aumentam exponencialmente e estão concentrados ainda mais nas mãos de poucos. Tanto que eles não sabem mais onde esconder seu dinheiro, diante de políticos e parlamentares atordoados que só pensam em sobreviver à próxima eleição.
Estes jovens têm razão em se erguer. Eles estão certos em se manifestar, podem até estar certos em quebrar tudo (pronto, falei!). Pois o Estado profundo é sem cabeça (pensante) e sem braços (ativos). O Estado está paralisado e também desmembrado. Aí vem o tempo dos aprendizes de feiticeiro, dos oportunistas, dos populistas. Foi dito à multidão que o Estado não pode fazer tudo, que o Estado é pobre, que é necessário manter/relançar/preservar/empurrar/ levantar (escolha o termo) o crescimento. Como os lucros seguem intactos, os únicos parâmetros restantes foram salários, pensões e serviços. Tivemos que “apertar o cinto” enquanto outros (corretores, comerciantes, parlamentares, ministros, presidentes, empresários, chefes do CAC, grandes perfumistas, grandes estilistas, reis... e até mesmo rainhas e princesas) estavam se empanturrando no andar de cima. Uns tinham que ser “compreensivos” enquanto outros escondiam sua renda na Bolsa de Valores, em Luxemburgo, Panamá e em milhares de outros fundos ilícitos. O que modestamente é chamado de otimização fiscal tornou-se um ramo legítimo de qualquer empresa de contabilidade que se respeite. Hoje, trilhões de dólares de capital estão flutuando nessas redes; dinheiro que se tornou fictício e cujo propósito não é mais claro. Mas as pessoas não são estúpidas. Eles veem bem que quando a crise se torna perigosa para o capital, centenas de bilhões aparecem do nada para salvar os bancos (2008) ou, mais curiosamente, a Catedral de Notre Dame. Eles veem que o impossível se torna possível quando os lucros estão em perigo (eles não falam de “lucros”, é claro, mas da “economia”). Os profissionais da saúde vêm protestando há anos sobre como nossas vidas estão em perigo. Foram repreendidos e acusados de serem alarmista e “preguiçosos” (!).
As “pessoas” são boas em quebrar a retórica falsa. Quando se trata de bancos, fabricantes de automóveis, indústria farmacêutica, bolsas de valores, especuladores, tudo de repente se torna possível: abandono de princípios, eliminação de proteções fiscais, ambientais, médicas, desregulamentação em abundância, mudanças aceleradas de taxas, eliminação ou alteração de normas de segurança, votações expressas no parlamento, medidas de emergência, lei marcial e até mesmo “deixar o déficit rolar”. “A economia deve ser reanimada! “, eles gritam. Mas qual delas? O Papa João Paulo II, durante uma visita ao “meu país”, Haiti, em março de 1983, diante da ditadura de Jean-Claude Duvalier, declarou: “As coisas devem mudar aqui. “Entendendo perfeitamente a mensagem, os estudantes saíram às ruas. Sob risco da vida (que alguns deles perderam!), expulsaram o ditador que, curiosamente, foi salvo por seus amigos americanos e resgatado por um governo francês que foi pressionado - dizem que por razões humanitárias. Tudo pelo bem da soberania. Estamos cheios de bons sentimentos para os nossos cúmplices, mas com quase nenhum para aqueles que enfrentam o deserto, a guerra e o Mediterrâneo, a fim de conseguir um pouco de paz e sobrevivência. Você pode achar que eu estou misturando as coisas. E o racismo em tudo isso? Estou chegando lá. Eu só quero mostrar como tudo isso está conectado, e que não é apenas uma questão de “odiar” o “outro”. Tudo está conectado. Estou apenas ligando os pontos. Pois, veja bem, o racismo brutal, feio e malévolo não acontece do nada. É parte de uma história bem orquestrada. Uma história que começa no século XI, quando a Europa (católica) vai em uma cruzada ao Oriente para exterminar judeus e muçulmanos (já então!); depois até o Ocidente, para dizimar os povos indígenas americanos, e em seguida até o Sul, para amputar mais de 20 milhões de habitantes
do continente africano de e criar a maior fraude humana que possa existir e que nós, pudicamente, chamamos de “comércio triangular” - um triângulo da morte que construirá literalmente Nantes, Bordeaux, La Rochelle, Saint-Malo, Le Havre, e assim por diante. Esta fenomenal acumulação de riqueza vai inaugurar definitivamente o sistema capitalista moderno tal como o conhecemos hoje. Sim, veja bem, tudo está ligado. É a mesma história. Há apenas uma, infelizmente contada por aqueles que saíram dela ricos, e mais raramente narrada do ponto de vista daqueles que pagaram o preço. Os policiais que mutilaram o ânus de Theo L. provavelmente não conhecem os detalhes dessa “grande história” mas, intuitivamente, entenderam que tinham que bater bem forte. Os policiais que sufocaram Adama Traoré não sabem realmente de onde vem a França, mas têm uma vaga sensação, em algum lugar em seus corações, de que estão entre os “vencedores”, então eles dão socos. Os policiais que caçaram como cervos dois adolescentes, Bouna Traoré (15 anos) e Zyed Benna (17 anos), que, paralisados pelo medo, morressem eletrocutados dentro de um transformador elétrico, não têm idéia das ramificações da “grande” história com seu rito de caça suburbano. Que nada os detenha: “Por Deus, ser um dos vencedores! Isso é tudo que importa! “. Eles suspeitam vagamente estar trabalhando para aqueles que esconderam dinheiro nas Ilhas Virgens, mas não têm certeza. Na verdade, se formos minimamente honestos, é possível ver de onde vem essa longa cadeia de histórias aparentemente dispersas. Sabe-se quem se beneficia disso, quem serve como bucha de canhão e quem são “os trabalhadores da segunda linha”, e aqueles de todas as outras linhas mais abaixo na hierarquia. Aprofundando-se com um pouco mais de honestidade, fica claro que ser racista não é realmente odiar negros, odiar árabes, não gostar
de chineses, ter medo da “escória” suburbana. Sabe-se de tudo isso, é claro; vive-se esta realidade. Mas também pode-se ver que, tomados um a um, eles são como você, esses corajosos árabes e pretos. Especialmente quando eles ganham medalhas azul/branca/vermelha, nos fazem rir no palco, na televisão, no cinema e choram quando cantam spiritual, blues, soul e até mesmo rap “tão bem”. Tudo isto é sabido. A questão agora é o que você vai fazer com isso. Pense bem antes de responder. Porque os que estão chegando não são mais tão pacientes. Ou tão pacíficos. Quando as “declarações” inflamatórias vêm do topo do estado, a ferida é apenas mais profunda. Eu tenho carregado muitas destas feridas especificamente francesas há algum tempo. E não esqueci nenhuma delas: os grotescos ultrajes de toda a família Le Pen e associados, talvez previsíveis, mas ainda doloridos; os gritos de Charles Pasqua; o silêncio de Mitterrand; os “cheiros” de Chirac; os “deslizes” de Jospin; os insultos de Sarkozy; os “desdentados” de François Hollande; as preciosas vagueações de Macron. Você pode imaginar como isso é interpretado pelos subalternos? Do ministério ao parlamento, às prefeituras, às delegacias? As palavras explodem em mil pedaços letais quando caem no chão. Foi aqui, na França, que eu tive vontade de dizer estas palavras. Porque a este país dediquei uma grande parte da minha energia, do meu trabalho. Não me entenda mal, isto não é um debate, nem um fórum, nem a abertura de qualquer tipo de diálogo. Não tenho nenhum diálogo para iniciar. Este tempo já passou. Eu não estou mais disponível. Pare de uma vez por todas de pedir às vítimas que resolvam seus problemas. A França contribuiu para a construção da pessoa que eu sou. Através dos meus compromissos neste e para este país, tenho tentado devolver o que ele
me deu. Acho que não mostrei nenhuma ingratidão, me parece. Apesar da cegueira dessa elite, e mais particularmente do mundo cultural e político que frequentei. Perdoe-me de antemão, mas eu não vejo como dizer essas coisas, a não ser brutalmente. Não vejo como podemos lidar com a preguiça intelectual, a negação, a incapacidade de ter empatia, sem colocar a questão sem rodeios. Estou cansado de educar, de ser paciente, de ser otimista, quando me encontro diante de um racismo degradante (consciente ou inconsciente). Estou cansado de ser pedagógico; estou cansado de reter minha resposta brutal diante de discursos supostamente engraçados, de mais uma enésima microagressão disfarçada de uma “boa fé” infantil. Eu não quero mais lidar com o desconforto causado por momentos de estupidez. Estou cansado de ser aquele que DEVE fazer o esforço de entender, o esforço de explicar, o esforço de ser magnânimo diante da sua “inocência”. Sim, a França tem me dado muito como indivíduo. Mas ela tirou tudo do meu coletivo. Quantas vezes, na França, não tive que responder a um jornalista ou a um espectador bem intencionado que meu filme I Am Not Your Negro não era um filme sobre os Estados Unidos? Pude ver como era tranquilizante para as pessoas o fato de aquilo acontecer lá, bem longe, entre os horríveis americanos, racistas resolutamente grosseiros, sem educação ou maneiras. Que este tipo de abuso possa ocorrer na França é inimaginável. Eu podia ver nos olhos deles que eu tinha que tranquilizá-los, que eu tinha que confirmar que AQUELA era a América, NÃO a França. Às vezes, por cortesia ou cansaço, eu ficava quieto. Desisti de explicar, pela enésima vez, que esta era também a realidade francesa, todos os dias, sistematicamente. Tão brutal quanto vulgar. Mas não é uma questão de dosagem. O racismo light também é racismo. Dói tanto quanto.
Especialmente quando persiste inocentemente e se acumula. O racista que ignora a si mesmo é racista da mesma forma. Mesmo quando escondido atrás do bom paternalismo, ele permanece igualmente brutal e eficaz. Gostaria de deixar claro, entretanto, que quando falo de racismo na França, não estou falando do Sr. Zemmour, do Sr. Ménard, de Marine et cia., que são fáceis de identificar e que estão aí para dizer em voz alta o que os outros dizem em particular e para servir como uma válvula de escape para a sociedade. Isso seria muito fácil. Eles servem perfeitamente para esconder a feiura e o silêncio generalizado da maioria... Algumas pessoas, mesmo na esquerda francesa, são mestres do sublimado artifício racista, numa linguagem coberta de simpatia culpada, o que é igualmente desconcertante: “Não seja paranoico, você vê o mal em todo lugar, seja paciente, perdoe-o, ele não entende, ele está com raiva, acalme-se, nós te amamos muito, você sabe, mas você deveria ser mais grato, eu não precisava te ajudar, você poderia sorrir, você poderia agradecer, e afinal, não é tão ruim assim, você vai superar isso, pois você é inteligente, você conhece essas pessoas, eles são apenas crianças grandes, você tem que entendê-los”, etc, etc, etc. E isto, o tempo todo, o tempo todo... A França está em negação. James Baldwin diz que a América deseja que Birmingham estivesse em Marte. Os franceses, por outro lado, teriam gostado que fosse apenas nos Estados Unidos. Um dia, há muito tempo, escutei com um ouvido distraído um dos amigos da minha filha contar uma história engraçadinha sobre um incidente com a polícia. Do alto de seus 14 anos, ele contou como foi mantido em uma delegacia enquanto um policial jogava roleta russa com sua arma apontada para sua têmpora de menino. Ele contou a história rindo. Mas eu podia ver nos seus olhos de menino que isso
deixaria uma marca. Com certeza, o policial não via uma criança, mas um “delinquente”, na melhor das hipóteses. Vinte anos depois, eu ainda me pergunto o que terá acontecido com aquele menino. É fácil estar do lado certo. Que privilégio poder julgar os outros. Poder dizer o quanto “os refugiados exageram”, como os sem-teto “poderiam fazer um esforço”, que há “muitos estrangeiros” e que o outro tem um nome “ruim”. Deve até ser agradável ter o poder de dizer “o que quiser” sem qualquer censura. Toda a minha vida, sempre tive que ter cuidado com o que digo, como o digo, a quem o digo. Eu sei o preço desta tal “liberdade de expressão” com a qual nós aqui tão assustadoramente nos divertimos. Eu nunca a dei por certa e garantida. Diante do cinismo prevalecente, ninguém mais arrisca sua vida por uma causa, exceto por alguns anarquistas de outra época. Democracia é paz na Europa e guerra alhures confortavelmente instalado em um bairro seguro, varrido diariamente por agentes de limpeza “estrangeiros”, enquanto o resto do mundo geme. Você realmente ignora o preço do seu bem-estar? Ou você apenas finge que não vê? Racismo? Apenas parte da topografia. Porque está tudo conectado. A busca de superlucros que inevitavelmente esmagam outro em outro lugar, a destruição do planeta, a exploração dos mais fracos, o ódio do outro, o consumo excessivo, qualquer que seja o preço (mais uma vez pago por outros), tudo isso, à medida que o espelho é quebrado, provoca negligência e indiferença. “Até agora tudo bem”, você diz para si mesmo, enquanto o mundo desaba, andar por andar, até o chão. A França, portanto, está em negação. E está na hora de parar. Não amanhã, mas hoje. Que cada cidadão assuma sua parte do fardo e deixe de assistir à distância. Como aqueles colunistas
silenciosos que veem uma jovem jornalista negra (Hapsatou Sy) ser insultada e humilhada publicamente, como se não tivessem nada de humano a dizer sobre o assunto e que a “negra” era a melhor “especialista” no assunto. Eles assistem, circunspectos, incapazes de solidariedade, incapazes de empatia, incapazes até de decência, a um linchamento público na televisão francesa. “God gave Noah the rainbow sign, No more water, the fire next time” (“Deus deu a Noé o sinal do arco-íris. Não haverá mais água, mas fogo da próxima vez !”) O escritor James Baldwin disse tudo isso há mais de cinquenta anos! O mesmo tempo que eu passei na França. E são as mesmas pessoas que continuam pagando! O coronavírus tornou visíveis algumas dessas verdades. Mas nós estamos longe da resolução. Os órfãos da República estão tomando as ruas, aproveitando a onda que está devastando os Estados Unidos. Enquanto outra jovem, Assa Traoré, busca justiça há mais de quatro anos pelo assassinato, por policiais, de seu irmão Adama. “Não consigo respirar! “Não consigo respirar!”, também gritou Adama. Os policiais eram franceses, assim como o mecanismo criado para reprimir a verdade. Os conspiradores locais não têm nada a aprender com seus colegas americanos. Nunca acreditei na “virgindade” da República, apesar de saber que teoricamente era capaz de grandeza. Depende sempre da sinceridade, da coragem e da visão dos homens e mulheres que a servem. Mas no momento eles estão paralisados. Finalmente, como saímos desta situação? O Estado? É falho. Os partidos? Em guerra uns com os outros, com cada vez menos convicções. Inaudíveis. Exaustos. Sindicatos? Em dificuldade há 50 anos, lutam para encontrar um bom caminho. Funcionários eleitos? Alguns deles conseguem. Eles estão lutando. Mas eles estão isolados. Os
prefeitos e os “líderes comunitários”? Talvez nossa única esperança. Porque eles, pelo menos, são obrigados a enfrentar as pessoas num nível humano no dia-a-dia. Eles estão no mundo real, na vida, na morte, nos nascimentos, na desgraça, nas festas, nos funerais. Nos bons e maus momentos, eles não têm outra escolha senão estar presentes. Pai, mãe, confessor e cuidador, tudo de uma só vez. Eles sabem. Você tem que começar desde o início. Coloque tudo em cima da mesa, reconstrua tudo. Nenhuma instituição deve ser deixada de lado. Este é o problema de todo cidadão, de toda instituição, incluindo a imprensa, de toda diretoria, de todo sindicato, de toda organização política, em todos os lugares. Esta obra deve ser feita porque cabe a você resolver este problema, não aos negros, nem aos árabes, nem às mulheres, nem aos homossexuais, nem às pessoas com deficiência, nem aos desempregados. Nós poderemos nos juntar a você no devido tempo. Uma discussão local, regional e depois nacional, em total independência de poder. E possível organizar uma assembleia geral sem ter que queimar a Bastilha? Seria este o sonho impossível de um cidadão? A República vai tolerar o seu questionamento? « And here we are, at the center of the arc, trapped in the gaudiest, most valuable, and most improbable water wheel the world has ever seen. Everything now, we must assume, is in our hands [ ]. If we [ ] do not falter in our duty now, we may be able [ ] to end the racial nightmare, and achieve our country, and change the history of the world. If we do not now dare everything, the fulfillment of that prophecy, re-created from the Bible in song by a slave, is upon us : God gave Noah the rainbow sign, No more water, the fire next time ! »
“E aqui estamos nós, no centro da arca, presos no moinho d’água mais gaudioso, mais valioso e mais improvável que o mundo já viu”. Tudo agora, devemos assumir, está em nossas mãos [...]. Se nós [...] não vacilarmos em nosso dever agora, podemos ser capazes [...] de acabar com o pesadelo racial, e alcançar nosso país, e mudar a história do mundo. Se não ousarmos agora, o cumprimento dessa profecia, recriada da Bíblia em cântico por um escravo, cairá sobre nós: Deus deu a Noé o sinal do arco-íris. Não haverá mais água, mas fogo da próxima vez! » Esta manhã, quando me levantei... chorei. Eu pensava que outro mundo era possível, sem que fosse necessário incendiar tudo. Agora eu já não tenho tanta certeza disso. 9 de junho de 2020 Raoul Peck, nascido no Haiti, dirigiu o documentário I Am Not Your Negro, indicado ao Oscar em 2017. Foi ministro da cultura do Haiti de 1995 a 1997. Dirigiu 12 filmes, entre eles O Jovem Karl Marx. Dirigiu igualmente Lumumba, sobre a vida de Patrice Lumumba e sua atuação no processo de independência da República Democrática do Congo.