o compartilhamento de cuidado em tempos de pandemia Isolamento social com crian¢as Nicole Xavier Meireles
Existe um provérbio africano que, não à toa, se repete constantemente nas buscas sobre educação e cuidados com filhos: “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”. Não sei dizer ao certo de onde ele vem, mas digo com certeza de que este é um mantra que ecoa na minha cabeça desde o nascimento do meu filho. A rede de apoio – expressão usada para se referir a essa “aldeia” – são todas as pessoas que dividem com os pais a criação de uma criança: tios, tias, avós, avôs, primos, primas, amigas, amigos, para além de instituições básicas como a escola e os espaços de saúde. Toda essa rede é composta por indivíduos que compartilham conosco funções essenciais de cuidado com as crianças – para o bem-estar psíquico delas e do nosso (pais e mães). Tudo isso parece bem lindo na teoria, porém, quando pensamos na prática, as coisas não funcionam bem assim. Para começar, dentro de casa, já podemos perceber - com qualquer pesquisa feita no grupo de amigas-mães – que nem nesse espaço existe esse compartilhamento de cuidados como premissa básica. A realidade brasileira é de mais de 5 milhões de crianças que não possuem nem o nome dos pais na certidão de nascimento, que dirá cumprindo suas tarefas como 50% responsável por uma criança. As mulheres, na nossa sociedade, são brutalmente sobrecarregadas dos trabalhos domésticos e cuidados das crianças, mesmo em casas que existem homens presentes. Só a partir disso, já podemos perceber que essa ideia africana de aldeia já se mostra completamente contrária ao que vivemos por aqui. Ainda assim, para dar conta de todos os afazeres, mais os cuidados com a cria e a casa, muitas mulheres – essencialmente – se juntam, criam coletivos de cuidados, levam as crianças para casa de uma, quando a outra está no trabalho. Também acreditamos que podemos contar com um apoio
institucional – quando há vagas suficientes – das escolas, creches, equipes de saúde. Além daquele cuidado clássico transgeracional, das avós que cuidam das filhas que cuidam das netas – vejam só, sempre entre mulheres. E daí, nos deparamos com uma pandemia. No isolamento social, quem cuida das crianças? Fico pensando nas mulheres com filhos bebês nesse momento, que não possuem absolutamente ninguém no seu entorno para lhe ajudar nessa tarefa do cuidado integral com o filho ainda tão pequeno e tão dependente. Imagino que tenham muitas mulheres que vivem isso mesmo sem pandemia, mas isso não torna essa solidão algo trivial (inclusive, precisamos falar mais sobre isso). Para além do cuidado com seu bebê, ainda tem a casa, a comida, muitas vezes um home-office, suas próprias necessidades pessoais e, claro, as informações apocalípticas que vem do mundo lá fora. Será que nesse cenário é possível criar uma criança de uma forma relativamente saudável? E para as famílias, que já tem crianças um pouco maiores - mas que demandam o tempo inteiro atenção, carinho, cuidado, para além das necessidades fisiológicas básicas - como arrumar tempo e disposição para despertar nosso potencial criativo para estimular a criança a não se afundar em frente a uma TV o dia inteiro (ou celular, ou tablete - insira aqui a tela que quiser)? É bem verdade que nós, adultos – que somos teoricamente cientes dos nossos próprios sentimentos, que temos um mínimo de discernimento do que é cada coisa que a gente sente dentro da gente (ou não tem e procuramos terapia para isso) -, já estamos bem surtados com tudo que está acontecendo. Vocês conseguem imaginar como está a cabeça das crianças? Do nada, chegou um vírus que eles custam a entender o que é, que pode estar em qualquer
lugar ou em qualquer pessoa. Por isso, eles não podem mais ir para escola, nem na praça, nem no parquinho, nem na casa de ninguém. Também não podem receber nenhuma visita em casa. Vovó, proibido. Bisa então, nem pensar. É um misto de quero-brincar-com-outra-pessoa-semser-você com um pânico imenso desse outro que vem potencialmente cheio de vírus. É a própria crise de ansiedade, misturada com um medo gigante e uma tristeza profunda que vem do luto das ausências das pessoas queridas que não podem estar perto agora - isso sem nem falar das famílias que estão vivendo o luto da perda real de entes amados que não podem sequer fazer uma despedida digna. Ansiedade, medo e tristeza geram crises de choro, irritabilidade, muita dor e muita insegurança. As crianças não estão bem. E nós adultos também não. Não conseguimos ainda mensurar o impacto psíquico disso tudo em nós, muito menos nas crianças. Mas de uma coisa é certa: precisamos ter a noção de que isso está acontecendo. É preciso que lembremos que brincar com a criança vai muito além do imitar a voz do lobo mau na brincadeira ou correr para jogar bola. Ou inventar a melhor brincadeira do ano. Brincar é estar junto, é trocar sentimentos de afeto. É saber a hora de ficar quietinha juntinho da criança e a hora de deixá-la correr enlouquecidamente pela sala. Precisamos escolher nossas batalhas e afrouxar um pouco nossos limites. As crianças, nesse momento, não têm ninguém além de nós para compartilhar felicidades, dores e frustrações. Precisamos encontrar brechas para que a relação entre nós e eles seja possível – porque não resta nenhuma outra opção, nem pra gente, nem pra eles nesse momento. Devemos lembrar também que nós existimos - nossas dores, medos e tristezas também estão aí e também precisam ser contemplados. Na equação da troca de afetos também estamos lá. A gente não pode se doar 100% para o outro e não deixar nada para nós mesmas.
Eu sei que não é simples, é muito difícil chegar em um equilíbrio. Mas para se aproximar dele, todos os elementos da equação precisam ceder. E isso precisa ser conversado e combinado. Entre adultos e crianças. Conversar, olhar no olho. Liberar a TV por um tempo sem culpa, chamar a criança para compartilhar as tarefas da casa, atribuir responsabilidades compatíveis com a idade de cada um, tentar encontrar momentos de lazer entre todos. Enfim, não gostaria de me alongar mais porque nós, mães, nem temos tanto tempo para ler textos muito longos. Fico aqui com esse desabafo em forma de texto para lhes dizer que não está fácil por aqui também. Sigo na tentativa de criar estratégias para um convívio minimamente harmonioso dentro de casa, no qual possamos curtir mais momentos de prazer do que momentos de estresse. Um dia de cada vez. Nicole Xavier Meireles é psicóloga formada pela UFRJ, pós-graduada em Terapia através do movimento pela Faculdade Angel Vianna, e mestranda (com limite estourado de prazo de entrega de dissertação) em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, no eixo de família e casal. É mãe do Tom, de 4 anos, psicóloga clínica no Espaço Colaborativo Semear e uma das diretoras da ONG Casa da Árvore – um espaço dedicado à saúde psíquica de crianças e famílias.