Pandemia Crítica 118 - Os afetos na pandemia: algumas considerações filosóficas e psicanalíticas

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os afetos na pandemia: algumas considera¢ões filosóficas e psicanalíticas Iasmim Martins


O louco tem um olhar agudo para as Loucuras da humanidade (Ferenczi) A morte, o medo, a angústia e a solidão são questões recorrentes na pandemia. Sem dúvida, diante da morte do outro, nos defrontamos com a nossa própria finitude. Somos os únicos seres capazes de refletir sobre a nossa morte (Heidegger), sendo esse um dos pontos centrais para nos diferenciar dos outros animais. No cenário atual temos sido confrontados diariamente com números de mortes cada vez mais crescentes, nos exigindo um certo trabalho de luto que não temos tido muitas possibilidades de realizar. Seja o luto da nossa vida anterior, seja o luto dos nossos mortos, entre outros. No texto Luto e Melancolia (1915/1917)1, Freud nos fala sobre o trabalho do luto, que consiste em poder perder psiquicamente o que se perdeu concretamente: o objeto de amor, a vida anterior, o país que foi deixado para trás. O objeto amado não existe mais, passando a exigir que a libido seja retirada das relações com aquele objeto; essa exigência provoca uma oposição. “Essa oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo”. De acordo com Freud: Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto 1 Cf. FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23 vols. Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol. XIV.


perdido. Cada uma das lembranças é hipercatexizada. (...) Quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido. (FREUD, 1969, p. 277).

No atual momento civilizacional somos muitas vezes impedidos da experiência do luto, seja por não termos mais condições de manter os rituais que nos possibilitavam realizar o trabalho do luto, seja pelas exigências de produtividade e performance que nos impõe certo ideal de positividade, sem deixar espaço algum para a tristeza e para o recolhimento, que também são necessários e constitutivos da experiência. A morte é não só uma das grandes questões que perpassam a nossa existência, como também um dos mais célebres problemas da filosofia. O próprio Sócrates já travava a relação entre morte e filosofia, dizendo que esta última é da ordem de um preparo para a morte (thanatou meléte). Que saída temos senão esperar e fazer arte e filosofia do que nos é inevitável? Parece ser justamente disso que os poetas e filósofos se ocupam, e que está no Fédon de Platão, em Cícero, nas Disputas tusculanas, e em Sêneca: “A morte não se mostra em todos os lugares, mas em todos os lugares ela está próxima2”, chegando até Montaigne e nos tomando como uma questão inquietante ainda hoje. No entanto, a morte e o luto não são só uma questão central para a filosofia, a psicanálise e a arte em geral, mas uma questão que enfrentamos interrogativamente ao longo da nossa existência e sobretudo nesse momento da pandemia. No cenário pandêmico no qual estamos inseridos, muitas vezes nos encontramos diante da morte e da impossibilidade de despedida dos nossos 2 SÊNECA, Lúcio Anneo. Aprendendo a Viver. Trad. De Lúcia Sá Rebello. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013, p. 47.


mortos. Para a psicanalista Maria Rita Kehl, essa impossibilidade é traumática e pode levar a processos de luto mais longos e melancólicos. Ela compara o luto dos mortos na pandemia com o luto dos mortos/desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil3. A morte é mesmo difícil de simbolizar, em determinado momento a pessoa já não está mais lá, ainda que seu corpo esteja. Ou, como no caso dos desaparecidos da ditadura e mortos pela Covid-19, muitas vezes nem do corpo é possível despedir-se. Temos acompanhado no Brasil um enorme descaso do poder público e do atual Presidente da República com os doentes e mortos da pandemia, contribuindo para que mais pessoas sejam deixadas para morrer e caracterizando um enorme desrespeito com as famílias enlutadas, além do seu desserviço habitual para com a população, sobretudo as populações mais pobres, que são mais vulneráveis e mais negligenciadas há tempos na nossa sociedade. De modo que a doença não é tão “democrática” assim, como muitos têm afirmado, tendo em vista que as condições de possibilidade para a prevenção e acesso ao tratamento não são as mesmas. Além da questão da morte e do luto mencionadas anteriormente, alguns afetos como o medo e a angústia têm sido recorrentes durante a pandemia. Medo da própria morte, e da morte de pessoas próximas; medo da contaminação e principalmente medo do futuro, ansiedade diante de tantas incertezas e da instabilidade que estamos vivenciando cotidianamente. O que nos leva a interrogar se a vida voltará ao “normal” ou sobre qual será o “novo normal”. Com isso, temos observado as mais diversas atitudes, seja de respeito ao isolamento, seja de tentativa de fuga das grandes metrópoles ou mesmo pessoas que quase desesperadamente descumprem o isolamento para tentar afirmar, ao menos para si mesmas, que 3 Entrevista para a BBC News Brasil, 8 de junho de 2020.


tudo continua como antes, que ainda se pode ir à praia, ao bar, ao shopping ou visitar a família, entre outros rituais aos quais estamos habituados. Como se dissessem para elas mesmas, que tudo permanecerá igual e que a “liberdade” de ir e vir está garantida, mesmo quando se luta contra um inimigo invisível, isto é, o vírus. O que também poderia ser interpretado como tentativa de negação do estado atual das coisas. Temos observado, na clínica psicanalítica, como esses afetos e questionamentos sobre a vida, a morte, o futuro, estão extremamente presentes agora. Acompanho a fala do psicanalista Joel Birman em sua última live pela Ebep-Rio4, na qual ele fez uma comparação entre o desamparo e o desalento. O efeito do desamparo se deve à nossa vulnerabilidade diante dessa doença desconhecida e ainda sem cura, diante das incertezas do cenário atual, que nos remete ao desamparo originário (Freud). Segundo Birman, “nós estamos vivendo uma experiência radical de desalento com o cenário da pandemia aqui no Brasil, uma experiência advinda de um sistema de dupla mensagem, na qual as pessoas não sabem se atendem ao discurso da ciência ou ao discurso da presidência da república”, tendo como efeito uma confusão mental. Por isso, mais do que uma experiência de desamparo, no nosso país, a experiência da pandemia nos leva radicalmente ao desalento. Estamos vivenciando ao mesmo tempo uma espécie de desmentido, no qual o Estado não reconhece e acolhe o sofrimento e as experiências traumáticas dos indivíduos, negando até mesmo a gravidade da pandemia. O Brasil atravessa não só uma crise sanitária, mas também política/ética e econômica. Acompanhando ainda a fala de Birman e de acordo com algumas observações clínicas, podemos afirmar que as formas de sofrimento e dor que observamos na clínica atualmente advindas da pandemia são “as 4 https://www.youtube.com/watch?v=LtEaiwmXqao


experiências de angústia (neuroses de angústia) ou síndrome do pânico (para a psiquiatria), que trazem a sensação iminente de morte, com sintomas como falta de ar, suor etc. Muitas pessoas com essas crises de angústia têm pensado que estão com sintomas do novo coronavírus, mas descobrem que são sintomas da crise.” Também, segundo o psicanalisa, observamos que a vigilância sanitária, para evitar a contaminação, gerou rituais e práticas obsessivas compulsivas em torno das práticas de higiene, para as quais fomos instruídos na tentativa de evitar a contaminação. Também mencionamos oscilação de humor, muita sensibilidade, produções psicossomáticas e produções hipocondríacas, além do aumento no consumo de álcool e drogas lícitas (medicações) ou ilícitas na tentativa de aplacar os sofrimentos. Há também um aumento nas taxas de suicídio, devido aos quadros de depressão e melancolia graves, muitas vezes ocasionados pela solidão, sensação de abandono ou ausência completa de laços sociais (idosos que vivem sozinhos, por exemplo). Sem dúvida, os pacientes que relatam a experiência da solidão diante do enfrentamento da pandemia parecem padecer de extremo sofrimento. Eles tiveram suas vidas não só modificadas, mas encontram-se longe das pessoas com as quais conviviam, sem ter a possibilidade de partilhar no dia a dia os afetos e a vivência do desalento ou somente online. Poderíamos relatar diversas dificuldades e cenários particulares de enfrentamento do momento atual, como pessoas que estão confinadas com crianças, acumulando tarefas domésticas, a educação dos filhos e o trabalho em home-office; a sobrecarga feminina ou pessoas pobres, negras, que moram em lugares precarizados e estão sem acesso ao trabalho e ao tratamento; o enfrentamento da pandemia por parte dos povos indígenas, etc. Enfim, a precarização da vida de modo geral, que assume fortes contornos no cenário


pandêmico. Mas nos atentemos nesse trecho aos afetos relacionados à experiência da solidão, que parecem dizer respeito à uma sensação de esvaziamento e abandono. Partindo do pressuposto de que não se pode fugir do que se é e do que se está vivendo, embora possamos aprimorar-nos, talvez quem tenha a possibilidade de lidar melhor com a solidão e o ócio sejam aqueles cuja atividade de pensamento não se esgota facilmente, pois deixam menos espaço para o tédio. Enquanto a maioria das pessoas parece estar apenas ocupada em passar o tempo. Isso faz com que o ócio seja completamente destituído de valor e infrutífero; desse modo, alguns homens estão muito mais propensos ao tédio, à estagnação de suas forças do que a usufruir do ócio, por isso, procuram distrações. Desde a Antiguidade parece haver certa valorização do ócio por parte dos filósofos. Sem dúvida, o ócio (Skolé) é um tema grego que parece não ter ficado de fora das obras de Aristóteles5. Até mesmo Diógenes Laércio afirmara: “Sócrates louva o ócio como a mais bela posse6”. Todavia, na Idade Média, ele é associado à preguiça, um “pecado capital”; mais adiante, no Iluminismo e na Revolução Industrial, ele é associado à “vagabundagem”. Sua retomada como tema filosófico pode ser observada em autores críticos da Modernidade, como Schopenhauer e Nietzsche, e depois também por alguns autores contemporâneos. Na sociedade contemporânea, o ócio é mal visto e somos acorrentados por certa demanda de produtividade e distração. Seja pelo apelo excessivo ao trabalho, seja pelo apelo da indústria cultural que nos oferece diversas maneiras de distração ou pelo tempo que passamos nas redes sociais, sobretudo agora na pandemia. 5 ARISTÓTELES, Ét. A Nic. X, 7, 8, 9 apud SCHOPENHAUER, Aforismos para a sabedoria de vida, p. 43. 6 DIÓGENES apud SCHOPENHAUER. Aforismos para a sabedoria de vida, cap. II, p. 43.


No entanto, é preciso considerar que estamos vivendo momentos de dispersão, sofrimento e incerteza e que muitas vezes esses momentos de distração são necessários para garantir alguma saúde psíquica. Em resumo, a experiência do tempo e o que fazemos com ele é uma das grandes questões que temos de enfrentar ao longo do período de isolamento social. Mas podemos pensar também o ócio como resistência às demandas por produtividade, seja ele criativo ou apenas contemplativo, como um tempo para o nada fazer. É uma lástima que nem todos possam desfrutar do ócio, já que passam a maior parte do tempo trabalhando para garantir condições mínimas de sobrevivência. Pensando nas relações de trabalho e produtividade atuais, em muitas das quais cada um explora a si mesmo, tendo condições de trabalho completamente precárias, sob o véu da ideia de empreender, tendo como consequência cansaço e adoecimento, o filósofo Byung-Chul Han afirma que7: “[A Depressão] irrompe no momento em que o sujeito de desempenho não pode mais poder. Ela é o princípio de um cansaço de fazer e de poder”. Ainda, segundo o autor: “A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível. Não-mais-poderpoder leva a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão”. A partir dos postulados do filósofo podemos considerar que na sociedade atual (do desempenho) o bem-estar não é uma opção, nada mais é impossível, ainda que isso tenha um enorme custo psíquico/físico para os sujeitos. Ainda, a situação se agravou, tendo em vista os afetos e angústias das pessoas que precisam se arriscar para trabalhar no cenário atual e daquelas que tiveram que ressignificar o ambiente onde vivem e o compartilhamento do espaço para atender as demandas do trabalho em home-office, que 7 HAN, Byung- Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p. 17.


muitas vezes não é problematizado e não leva em consideração as particularidades e singularidades da vida de cada um. Observamos os discursos de desempenho e performance (Ex: Milão não para!) que levaram ao agravamento da pandemia em diversos locais, tendo como consequência a perda da saúde e a vida de milhares de pessoas. Assumindo a precariedade do cenário no qual estamos inseridos, talvez possamos pensar em alguns modos de resistência e afirmação de outros afetos, que nos ajudem a combater os afetos limitadores e limítrofes de agora, sobretudo para aqueles que não possuem certos privilégios e não têm condições de permanecer em confinamento. Como afirmou Espinosa: “Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado8”. Talvez ainda nos restem alguns espaços de manobra para atravessar os momentos mais densos da pandemia, seja através da arte, da filosofia, da psicanálise, da amizade (ainda que virtual), da contemplação da natureza ou de outras expressões terapêuticas possíveis que cada um possa acessar de maneiras distintas e que nos ajudem a extravasar o horror e o espanto que sentimos ao acompanhar esse capítulo da história da humanidade. Iasmim Martins é Mestre em Filosofia (UFRRJ). Doutoranda em Filosofia (PUC-RJ). Psicanalista (FF-RJ). Graduanda em Psicologia (UVA). Professora convidada da Especialização em Arte e Filosofia e Filosofia Contemporânea (PUC-RJ), Professora convidada no MBA (FGV).

8 SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, Proposição 7, p. 162.


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