Pandemia Crítica 012 - Crônica da psicodeflação (Parte 3)

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crônica da psicodefla¢ão Franco Bifo Berardi Tradução Beatriz Sayad 3a parte

Franco Berardi, também conhecido como “Bifo”, fundador da famosa Radio Alice em Bolonha e importante figura no movimento Autonomia Italiana, é escritor, teórico de mídia e ativista social.


15 de março No silêncio da manhã, os pombos olham para baixo intrigados, dos telhados da igreja, e parecem atônitos. Não conseguem explicar o deserto urbano. Eu também não. Leio os rascunhos de Offline de Jess Henderson, um livro que deve ser lançado em alguns meses (quer dizer, deveria, depois veremos). A palavra offline adquire um relevo filosófico: é o modo para definir a dimensão física do real em oposição, aliás, em subtração em relação à dimensão virtual. Reflito sobre o modo como está mudando a relação entre off-line e on-line durante a difusão da pandemia. E tento imaginar o depois. Nos últimos trinta anos a atividade humana mudou profundamente a sua natureza relacional, proxêmica, cognitiva: um número crescente de interações se deslocou da dimensão física, conjuntiva — na qual as trocas linguísticas são imprecisas e ambíguas (e portanto infinitamente interpretáveis), na qual a ação produtiva envolve energia física, os corpos se roçam e se tocam em um fluxo de conjunções — para a dimensão conectiva, na qual as operações linguísticas são mediadas pela máquina informática, portanto respondem a formatos digitais, a atividade produtiva é parcialmente mediada por automatismos e as pessoas interagem cada vez mais densamente sem que o seus corpos se encontrem. A existência quotidiana das populações foi cada vez mais concatenada por dispositivos eletrônicos relativos a enormes massas de dados. A persuasão foi substituída pela penetração, a psicosfera inervada pelos fluxos da infosfera. A conexão pressupõe uma exatidão glabra, sem pelos e sem poeira, uma exatidão que os vírus informáticos podem interromper,


desviar, mas que não conhece a ambiguidade dos corpos físicos nem desfruta da inexatidão como possibilidade. Ora, eis que um agente biológico se introduz no continuum social fazendo-o implodir, conduzindo-o à inatividade. A conjunção, cuja esfera foi amplamente reduzida pelas tecnologias conectivas, é a causa do contágio. Reunir-se no espaço físico se tornou o perigo absoluto, que deve ser evitado a todo custo. A conjunção deve ser ativamente impedida. Não sair de casa, não encontrar os amigos, manter a distância de dois metros, não tocar ninguém na rua... É aí que se verifica (diz a nossa experiência nessas últimas semanas) uma enorme expansão do tempo vivido on-line, não poderia ser diferente porque as relações afetivas, produtivas, educativas devem ser transferidas para a esfera na qual não se toca e não se conjuga. Não há mais nenhum social que não seja puramente conectivo. Mas, e depois? O que vai acontecer depois? E se a sobrecarga de conexões acabasse quebrando o encanto? Me explico: mais cedo ou mais tarde a epidemia desaparece (admitindo que isso aconteça, talvez, na Itália, no dia 25 de abril), não seríamos talvez levados a identificar psicologicamente a vida on-line com a doença? Será que não vai explodir um movimento espontâneo de carinho que levará uma parte considerável da população jovem a fechar as telas conectivas como lembrança de um período desgraçado e solitário? Eu não me levo muito a sério, mas penso a respeito.


16 de março A terra está se rebelando contra o mundo. A poluição diminui de maneira evidente. É o que dizem os satélites e mandam fotos da China e da Padânia totalmente diferentes das que mandavam há dois meses atrás, mas também o dizem os meus pulmões que não respiravam tão bem há dez anos — quando fui diagnosticado asmático crônico, em grande parte por causa do ar da cidade. 17 de março O colapso da bolsa de valores é tão grave e persistente que não é mais noticiado. O sistema da bolsa de valores se tornou a representação de uma realidade desaparecida: a economia da oferta e da procura estão perturbadas e permanecerão por muito tempo indiferentes à quantidade de dinheiro virtual que circula no sistema financeiro. Mas isso significa que o sistema financeiro está perdendo o controle: no passado as flutuações matemáticas determinavam a quantidade de riqueza que cada um poderia ter. Agora não determinam mais nada. Ora, a riqueza não depende mais do dinheiro que dispomos, mas daquilo que pertence à nossa vida mental. Temos que raciocinar sobre esta suspensão do funcionamento do dinheiro, porque talvez seja esta a chave para sairmos do modo capitalista: romper definitivamente a relação entre trabalho, dinheiro e acesso às fontes. Afirmar uma concepção diferente da riqueza: ela não é a quantidade de equivalente monetário de que disponho, mas a qualidade de vida que posso experimentar.


A economia está em uma fase de recessão, mas dessa vez as políticas de apoio à oferta não servem muito, e nem mesmo as de apoio à procura. Se as pessoas têm medo de trabalhar, se as pessoas morrem, nenhuma oferta pode ser feita. Se permanecermos fechados em casa, não poderemos fazer nenhuma demanda. Um mês, dois meses, três meses… São suficientes para parar a máquina e esse bloqueio tem efeitos irreversíveis. Quem fala de retorno à normalidade, quem pensa que vai ser possível reativar a máquina como se nada tivesse acontecido, não entendeu bem o que está acontecendo. Será preciso inventar tudo do zero para que a máquina volte a funcionar. Nós teremos que estar lá, prontos para impedirmos que volte a funcionar como estava funcionando nos últimos trinta anos: a religião do mercado e o liberalismo privatista devem ser considerados como crimes ideológicos. Os economistas, que há trinta anos prometem que a cura de cada doença social é o corte da despesa pública e a privatização, deverão ser socialmente isolados. Se tentarem abrir a boca de novo, serão tratados de acordo com o que são: idiotas perigosos. Nas últimas duas semanas li Cara de pan, de Sara Mesa, Lectura facil, de Cristina Morales e o arrepiante Chanson douce, da terrível Leila Slimani. Agora estou lendo uma escritora do Azerbaijão que conta sobre Baku no início do século XX, as riquezas repentinamente acumuladas com o petróleo, e a sua família muito rica que teve suas propriedades tomadas pela revolução soviética. Este ano, mais por acaso do que por escolha, só li autoras mulheres, começando pelo romance maravilhoso de Djevani, que se chama Disorientale, uma história de exílio e violência islamista, de solidão e de nostalgia.


Mas agora chega de falar das mulheres e dos dramas da humanidade que não são poucos. Então fui buscar um livro relaxante, Orlando furioso, lido por Ítalo Calvino. Quando dava aulas, eu sempre o aconselhava aos alunos e lia alguns capítulos. Eu já o li dez vezes mas posso ler de novo com prazer. [A uma certa altura, os meninos ficam com raiva e resolvem fazer uma aliança com Gea, a divindade que protege o planeta Terra. Juntos lançam um massacre de advertência, e os velhos começam a morrer como moscas. Finalmente tudo para. E depois de um mês, os satélites fotografam uma terra muito diferente de como era antes da gerontomaquia.] 18 de março Há uns anos atrás, eu e meu amigo Max (inspirados pelo meu amigo Mago), publicamos um romance que não sabíamos como chamar. Gostávamos do título KS, ou também do título Gerontomaquia. Mas o editor que publicou o livro (depois que muitos o tinham recusado, o que era compreensível) impôs um título bem feio mas certamente mais popular: Morte aos velhos. O livro vendeu pouquíssimo mas contava uma história que agora me parece interessante. Estoura uma espécie de epidemia inexplicável: garotos de 13-14 anos matam os velhos, primeiro alguns casos isolados e depois sempre mais frequentes e finalmente em toda parte. Vou poupá-los dos detalhes e mistérios técnico-místicos da história. O fato é que os garotos matavam os velhos porque estes empestavam o ar com sua tristeza. Essa noite eu pensei que toda essa história do coronavírus poderia, metaforicamente, ser lida assim: no dia 15 de março do ano passado, milhões de jovens saíram para as praças gritando: vocês nos fizeram nascer em um mundo onde não se pode


respirar, vocês acabaram com a atmosfera, reduzam o consumo de petróleo e de carvão, reduzam as partículas finas. Talvez esperassem que as maiores potências do mundo tivessem escutado as suas súplicas. Mas, como sabemos, ficaram desiludidos: A cúpula de Madrid de dezembro, o último dos inumeráveis encontros internacionais nos quais se discute a redução da mudança climática, foi somente o enésima fracasso. A emissão de substâncias tóxicas não diminuiu realmente nos últimos dez anos, o aquecimento global procede alegremente. As grandes corporações de petróleo, de carvão e de plástico não têm intenção de parar. E então os jovens, num certo momento, ficam com raiva e fazem uma aliança com Gea, a divindade que protege o planeta Terra. Juntos lançam o massacre de advertência, e os velhos começam a morrer como moscas. Finalmente tudo para. E depois de um mês os satélites fotografam uma terra muito diferente do que era antes da gerontomaquia. 19 de março Como eu não tenho televisão, sigo os eventos na internet: CNN, The Guardian, Al Jazeera, El país… Depois na hora do almoço escuto as notícias da Radio Popolare. O mundo desapareceu da informação, só se fala em coronavírus. Hoje o jornal no rádio não tinha nenhuma notícia que não dissesse respeito à epidemia. Um amigo de Barcelona me contou que falou com o redator da televisão nacional espanhola: parece que quando soltam qualquer notícia de algum assunto que não seja o contágio, as pessoas ligam, e alguém insinua que estão escondendo alguma coisa.


Entendo a necessidade de manter a atenção do público concentrada sobre medidas de prevenção, entendo que é normal repetir cem vezes ao dia “fiquem em casa”. Mas esse tratamento midiático gera uma ansiedade desnecessária. Além do que se tornou quase impossível saber o que está acontecendo no Norte da Síria. Em Idlib, faz alguns dias, foram bombardeadas oito escolas em um só dia. E na fronteira entre Grécia e Turquia o que está acontecendo? E no Mediterrâneo não há mais barcos cheios de africanos que correm risco de naufragar ou que são barrados e reenviados aos campos de concentração líbios? Claro que há, e como: para sermos precisos, exatamente ontem consegui encontrar a notícia de um barco com 140 pessoas a bordo que a guarda costeira maltesa mandou de volta. A título de informação, eis aqui uma lista parcial, desde o dia primeiro de março até hoje, daquilo que aconteceu no mundo para além da epidemia. Do site PeaceLink transcrevo os conflitos armados que não pararam nessas últimas 3 semanas, enquanto nós acreditávamos que ninguém pudesse sair de casa: Líbia: violentos conflitos estouram em todo o norte enquanto as forças do Exército Nacional Líbio (LNA) tentam avançar. As forças de Haftar bombardeiam duas escolas em Trípoli. República Democrática do Congo: pelo menos dezessete mortos em conflito com as forças democráticas Aliadas (ADF) em Beni. Somália: cinco membros al-Shabaab mortos em um único ataque aéreo americano. Nigéria: seis mortos em ataque a Boko Haram na base militar de Damboa. Afeganistão: talibãs e forças afegãs se encontram na província de Balkh. Tailândia: um soldado morto e outros dois feridos em conflito com militantes do Sul. Indonésia: quatro rebeldes do exército de


Libertação Papua Ocidental (WPLA) mortos em conflito com as forças de segurança na região de Papua. Iêmen: onze mortos em conflito entre rebeldes Houthi e o exército iemenita em Taiz; catorze rebeldes Houthi mortos em conflito com as forças governamentais iemenitas na província de AlHudaydah. Turquia: caça turco derruba avião de guerra sírio sobre Idlib. Síria: dezenove soldados sírios mortos em ataque de drone turco. Um amigo me mandou o filme de uma fila de caminhões militares em Bergamo. É noite, avançam lentamente. Levam ao crematório em torno de 60 caixões. 20 de março Acordo, faço a barba, tomo o remédio para hipertensão, ligo o rádio… Merda… Musiquinha do hino nacional. Alguém me explica o que que os hinos nacionais têm a ver com esta ocasião. Porque ressuscitar o orgulho nacional? Esse hino levou os soldados a Caporetto, onde morreram em mais de cem mil. Desliguei o rádio e fiz a barba em silêncio. Sepulcral. Jun Hirose é um amigo japonês que escreve livros sobre cinema. Nas últimas semanas viajou para apresentar a edição espanhola do seu livro CineCapital. Voltando de Buenos Aires pensou em parar em Madrid e em Bolonha, onde eu e Billi estávamos esperando por ele. É uma pessoa muito agradável e espirituosa, e é um prazer hospedá-lo por uns dias, cada vez que ele passa pela Itália, mais ou menos uma vez por ano.


Quando chegou em Madrid o contágio estava explodindo na cidade, então foi obrigado a ficar lá, onde foi hospedado por um outro amigo querido, Amador Savater. De modo que agora passam o tempo juntos, e eu invejo um pouco o Amador porque Jun também é um ótimo cozinheiro, e eu gosto muito da culinária japonesa. À noite eles fazem cinefórum, e algumas noites atrás viram La Cosa, de Carpenter, um filme que, nesse momento, cai como uma luva. Depois Amador escreveu um artigo que li na revista argentina Lobosuelto. Ele escreveu: “La Cosa é uma oportunidade para o pensamento. Devemos pensar a epidemia como uma interrupção. Uma interrupção dos automatismos, dos estereótipos e daquilo que tomamos como certo: a saúde, o sistema de saúde, a cidade, a comida, os laços e as preocupações de cada dia precisam ser completamente repensadas”. Quando a quarentena terminar — se terminar, e não temos certeza que terminará — estaremos em uma espécie de deserto de regras mas também em uma espécie de deserto dos automatismos. A vontade humana irá reconquistar um papel não necessariamente dominante em relação ao caso (a vontade humana nunca foi determinante, como o vírus nos ensina) mas significativo. Poderemos reescrever as regras e romper os automatismos. Mas isso não vai acontecer pacificamente, isso é bom que saibamos. Quais formas vão ter o conflito não podemos prever, mas devemos começar a imaginá-lo. Quem imagina antes vence — essa é a lei universal da História. Pelo menos eu acho.


21 de março Cansaço, fraqueza física, leve dificuldade respiratória. Não é uma novidade, sempre acontece comigo. É culpa das pílulas contra a hipertensão e também culpa da asma, que no último mês foi gentil comigo, talvez porque não queira me assustar com sintomas ambíguos. Dia de sol ameno e céu límpido nesse esplêndido primeiro dia de primavera. Uma amiga de Buenos Aires me escreve: “Llegó el terror, se huele desde la ventana contundente como una flor cualquiera.” “Chegou o terror, se sente o cheiro da janela contundente como uma flor qualquer.” 22 de março O vice-presidente da Cruz Vermelha chinesa, Yang Huichuan, chegou na Itália acompanhado dos médicos Liang Zongan e Xiao Ning, respectivamente professor de medicina pulmonar no hospital de Sichuan e vice-diretor do Centro Nacional pela Prevenção. De Cuba chegaram 58 médicos especializados em doenças infecciosas. Há poucos dias atrás o ministro da economia alemão, Peter Altmaier, respondeu a um pedido de Trump excluindo a possibilidade da sessão dos direitos exclusivos sobre o desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus estudada por uma sociedade privada em Tubinga. Segundo as notícias publicadas ontem pelo Die Welt, os Estados


Unidos tinham proposto à sociedade farmacêutica alemã Cure Vac, que está desenvolvendo a vacina, a quantia de um milhão de dólares para comprar o direito de industrializar e, portanto, de vender exclusivamente o produto uma vez disponível e concluídos os testes. Em exclusiva. America First. No país de Trump, nos últimos dias, estão se multiplicando as filas diante das lojas que vendem armas. Além do uísque e do papel higiênico, compram armas. Disciplinadamente mantém uma distância regular de um metro, assim as filas se perdem no horizonte. Nesse meio tempo o Partido Democrático derrota Sanders e mata a esperança que se possa mudar o modelo que reduziu nossas vidas a isso. E 81% dos republicanos continuam a sustentar a fera loira do Trump. Não sei o que acontecerá depois do final do flagelo, mas uma coisa me parece muito clara: a humanidade inteira vai desenvolver, em relação ao povo americano, o mesmo sentimento que se difundiu depois de 1945 em relação ao povo alemão — inimigos da humanidade. Foi um erro naquele tempo, porque muitos alemães antinazistas foram perseguidos, mortos, exilados. É errado agora, porque milhões de jovens americanos apoiaram o candidato socialista à presidência até que ele não tenha sido naturalmente eliminado da máquina do dinheiro e das mídias. Mas pouco importa se é certo ou errado. Não é uma questão política: horror não se decide racionalmente, se experimenta sem querer. Horror por aquela nação nascida do genocídio, da deportação e da escravidão.


[Não sei se sairemos vivos dessa tempestade, mas nesse caso, a palavra privatização terá que ser catalogada no mesmo registro em que a palavra endlosung — encerrado — é encontrada.] 23 de março O médico que por quinze anos cuidou dos meus ouvidos é um profissional de extrema precisão diagnóstica e é também um cirurgião excepcional: me operou seis vezes em dez anos, e cada operação foi impecavelmente bem-sucedida, fazendo com que a minha capacidade auditiva se prolongasse por quinze anos. Há alguns anos decidiu abandonar o hospital público no qual trabalhava e, desde então, fui obrigado a ir em uma clínica privada para poder usufruir da sua competência. Como eu não entendia a razão da sua escolha, me explicou sem mais demoras: o sistema público está quase em colapso, devido aos cortes feitos por causa da situação financeira. É por isso que o sistema sanitário italiano está no limite, é por isso que 10% dos médicos e paramédicos contraíram a infecção, é por isso que as repartições de terapia intensiva não bastam para curar todos os doentes. Porque aqueles que governaram nos últimos dez anos seguiram os conselhos de criminosos ideológicos como Giovanna, Alesina e companhia. Esses patifes continuarão a escrever seus editoriais? Se o coronavírus forçou toda a população a aceitar a prisão domiciliar, é pedir demais que essas pessoas sejam impedidas de ter direito à palavra pública? Não sei se sairemos vivos dessa tempestade, mas nesse caso, a palavra privatização terá que ser catalogada no mesmo registro em que a palavra endlosung — encerrado — é encontrada.


A devastação produzida por essa crise não pode ser calculada nos termos da economia financeira. Temos que considerar os danos e as necessidades baseados num critério de utilidade. Não devemos enfrentar o problema face às contas do sistema financeiro, mas devemos tentar garantir a cada pessoa as coisas úteis de que todos precisamos. Essa lógica não agrada a alguém porque lembra o comunismo? Pois é, se não há palavras mais modernas usaremos ainda esta, talvez antiga mas sempre muito bonita. Onde encontraremos os meios para afrontar a devastação? Nos cofres da família Benetton, por exemplo, nos cofres daqueles que se aproveitaram de políticos servis para apropriar-se de bens públicos, transformando-os em instrumentos de enriquecimento privado e deixando-os decair a ponto de matar quarenta pessoas que passavam por uma ponte em Gênova. Na revista Psychiatry On Line, Luigi d’Elia escreveu um artigo chamado “A Pandemia é como um tratamento coletivo obrigatório de saúde”. Eu recomendo veementemente a leitura e me limitarei a um breve resumo. O TSO (Tratamento Sanitário Obrigatório) é realizado quando as condições psíquicas de uma pessoa a tornam perigosa para si ou para os outros, mas cada psiquiatra inteligente sabe bem que não é uma terapia aconselhável, aliás não é realmente uma terapia. D’Elia aconselha a todos nós que estamos em reclusão a transformarmos nossa atual condição obrigatoriamente preventiva em uma condição ativamente terapêutica, passando do TSO ao TSV (Tratamento Sanitário Voluntário). Digamos que também devemos transformar o nosso estado de detenção necessária em um processo de autoanálise aberto à autoanálise de outras pessoas.


Acredito que essa seja a sugestão não apenas psicologicamente mais aguda, mas também politicamente mais prospectiva de tudo o que li até agora. Transformamos a condição da prisão em uma assembleia de autoanálise em massa. D’Elia sugere algo mais preciso: o objeto da cura analítica deve ser essencialmente o medo. “O medo, se bem focado, é o principal motor da mudança. Jung diz claramente: onde está o medo, lá está a sua tarefa”, escreve ele. O que o medo tem como objeto? Ele tem mais de um: medo da doença, medo do tédio, e medo daquilo que será o mundo quando sairemos de casa. Mas visto que o medo é um motor de mudança, o que temos que fazer é criar as condições para que a mudança seja consciente. O tédio pode ser elaborado de maneira psicologicamente útil, porque como diz d’Elia, “o tédio não é apatia. A apatia é resignação na impotência, calma abatida, inércia. O tédio é inquietação, é interiormente muito vital, é insatisfação, é irrequietação. O tédio grita: “não é aqui que eu deveria estar, não é nada disso o que tenho que fazer! Eu tenho que estar em outro lugar para fazer outra coisa!” Quatorze entre vinte e seis países europeus decidiram fechar as fronteiras. O que resta da União? O que resta da União é o Eurogrupo que se reuniu hoje para discutir medidas a serem tomadas para afrontar o colapso previsível da economia europeia. Duas teses se enfrentam: a dos países mais afetados pelo vírus, que pedem possíveis intervenções de despesas não vinculadas ao pacto fiscal criminoso baseado na igualdade orçamentária que a desprovida classe política italiana constitucionalizou.


Holandeses, alemães e outros fanáticos respondem que não, pode-se gastar mas somente sobre o pacto de que reformas sejam feitas. Como assim? Por exemplo, a reforma do sistema sanitário, que reduza posteriormente as repartições de terapia intensiva e o salários para os trabalhadores hospitalares? O fanático mais fanático de todos, a meu ver, é esse funesto Dombrovskis que deveria procurar um emprego numa agência funerária, visto que tem a psique adequada e se trata de um setor que, graças a pessoas como ele, será cada vez mais necessário. [Não devemos nunca mais voltar à normalidade. A normalidade é o que tornou o organismo planetário tão frágil a ponto de abrir caminho para a pandemia, só para começar.] 24 de março Enquanto na Itália a Confindustria se opõe ao fechamento das empresas não essenciais, ou seja, a mobilização diária de milhões de pessoas forçadas a se expor ao perigo de infecção, a questão que está surgindo é a dos efeitos econômicos da Pandemia. Na primeira página do New York Times um editorial de Thomas Friedman traz o eloquente título “Get America Back to work - and fast”. Nada ainda parou, mas os fanáticos se preocupam em se adiantar, em voltar a trabalhar rapidamente, e sobretudo, em voltar a trabalhar rapidamente como antes. Friedman (e a Confindustria) tem um ótimo argumento ao seu lado: um bloqueio prolongado da atividade produtiva terá consequências inimagináveis do ponto de vista econômico, organizacional e também político. Todos os piores cenários podem ocorrer em uma situação na qual as mercadorias começam a faltar, na qual o desemprego é galopante e assim por diante.


Portanto, o argumento de Friedman deve ser considerado com o devido cuidado e depois cuidadosamente descartado. Por quê? Não apenas pela razão óbvia de que, se você interromper as atividades por duas semanas e voltar à fábrica como antes, a epidemia será retomada com fúria renovada, matando milhões de pessoas e devastando a sociedade para sempre. Esta é apenas uma consideração marginal, do meu ponto de vista. A consideração que me parece mais importante (cujas implicações devemos amadurecer na semana e nos meses que virão) é precisamente esta: não devemos voltar nunca mais à normalidade. A normalidade é o que tornou o organismo planetário tão frágil a ponto de abrir caminho para a pandemia, só para começar. Mesmo antes que a pandemia explodisse, a palavra extinção tinha começado a se desenhar no horizonte do século. Mesmo antes da pandemia, o ano de 2019 tinha mostrado um aumento impressionante de colapsos ambientais e sociais que culminaram em novembro no pesadelo irrespirável de Nova Deli e no incêndio terrificante da Austrália. Os milhões de jovens que no dia 15 de março de 2019 desfilaram pelas ruas de muitas cidades para pedir que parasse a máquina da morte, na ocasião, obtiveram algo: as dinâmicas da mudança climática foram, pela primeira vez, interrompidas. Depois de um mês de lockdown o ar na planície do rio Pó tornou-se respirável. A que preço? A um preço muito alto que agora se paga em vidas perdidas e em medo desenfreado, e que amanhã vai ser pago com uma depressão econômica sem precedentes.


Mas esse é o efeito da normalidade capitalista. Voltar à normalidade capitalista seria uma idiotice tão colossal que pagaríamos com uma aceleração da tendência a extinção. Se o ar do rio Pó se tornou respirável graças ao flagelo, seria um absurdo reativar a máquina que torna o ar da planície do Pó irrespirável, cancerígeno e facilmente presa da próxima epidemia viral. Esse é o tema sobre o qual devemos começar a pensar, rapidamente e sem preconceitos. A pandemia não provoca uma crise financeira. Claro que a bolsa de valores despenca e continua a cair e alguns propõem o seu fechamento (provisório). “Unthinkable” é o título de um artigo de Zachary Warmbrodt publicado no POLITICO, no qual examina com terror a possibilidade de fechar a bolsa de valores. Mas a realidade é muito mais radical do que as hipóteses mais radicais: as finanças já fecharam, mesmo que a bolsa continue aberta, os especuladores ganham os seus dólares sujos apostando sobre a falência e a catástrofe, como fizeram os senadores republicanos Barr e Lindsay. A crise que virá não tem nada a ver com aquela de 2008, quando o problema era gerado pelo desequilíbrio da matemática financeira. A depressão que se aproxima depende da intolerância do capitalismo ao corpo humano e à mente humana. A crise que estamos vivendo não é uma crise. É um Reset. Trata-se de desligar a máquina e de religá-la um pouco depois. Mas quando a ligarmos novamente podemos decidir se faremos com que ela funcione como antes, com a consequência de nos encontrarmos, mais uma vez, dentro de


novos pesadelos. Ou podemos decidir reprogramála segundo a ciência, a consciência e a sensibilidade. Quando esta história terminar (e não vai terminar nunca num certo sentido, porque o vírus pode retroceder mas não desaparecer, podemos inventar vacinas, mas os vírus sofrem mutações) entraremos em um período de depressão extraordinária. Se pretendemos voltar à normalidade teremos violência, totalitarismo, massacres e a extinção da raça humana até o final do século. Aquela normalidade não deve voltar. Não temos que perguntar o que é bom para a bolsa de valores, para a economia da dívida e do lucro. As finanças foram para o inferno, não queremos mais ouvir falar sobre isso. Temos que nos perguntar o que é útil. A palavra útil deverá ser o Alfa e o Ômega da produção, da tecnologia e da atividade. Percebo que estou dizendo coisas maiores do que eu, mas devemos nos preparar para afrontar escolhas desmesuradas. E para que estejamos prontos quando essa história termine, temos que começar a raciocinar sobre o que é útil, sobre o modo no qual é possível produzi-lo sem destruir o ambiente e o corpo humano. E temos também que pensar sobre a questão mais delicada de todas: quem decide? Atenção! Quando surge a pergunta: quem decide?, temos a pergunta: qual é a fonte da legitimidade? É a pergunta que está na base das revoluções. Quer queira quer não, é a pergunta que temos que fazer. Franco «Bifo» Berardi


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