Pandemia Crítica 120 - Pensamentos pós-coronais

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pensamentos pós-coroniais Diego Reis


“Há muito tempo não programo atividades para ‘depois’. Temos de parar de ser convencidos. [...] Temos de parar de vender o amanhã”. Ailton Krenak, O amanhã não está à venda

Enquanto o jornal televisivo anuncia como será, doravante, o “novo normal”, entre um gole e outro de café, noto a euforia dos jornalistas que enunciam as consequências desse cenário, como se a declaração desse “novo normal” conferisse uma estabilidade desejada à realidade. Como se esse “novo” normal, de agora em diante, supusesse também as milhares de mortes diárias, o desemprego em massa, o extermínio normal daquelas e daqueles a quem são negados os direitos fundamentais da existência. É certo que, por trás desse conceito duvidoso, a norma é a morte de muitos/as, para que se assegure a vida de quem tem o privilégio de se manter em isolamento e pedir as compras de mês por um app. O normal, aqui, é o patológico – não nos enganemos. E não precisaríamos recorrer a uma genealogia da norma, da normalização e da normalidade para compreender como essas noções radicam, em si mesmas, a violência de uma régua que define quem está dentro e quem está fora do padrão de humanidade traçado por quem fala da zona do ser. Frantz Fanon percebeu com perspicácia como a divisão dos seres humanos na zona do ser e do nãoser1 é uma operação intrínseca ao colonialismo, apoiada no racismo, de modo que os sujeitos coloniais, lançados na zona de negação da humanidade e da agência, são destituídos de sua 1 FANON, Frantz. Peles Negras, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.


condição humana por aqueles que negam o seu corpo e a sua identidade. Não-ser que, transmutado em Outro – diferença radical e racial intransponível, convertida em desigualdade –, como recorda Sueli Carneiro2, torna-se a condição de possibilidade de afirmação do Ser, marcado pelas características da raça dominante, cujo mundo narcísico é erigido por sobre a aniquilação e o silenciamento daqueles/ as que são epidermicamente inferiorizados. A estes, sublinha Fanon, cabe habitar “uma região extraordinariamente estéril e árida”, destinada aos sub-humanos ou não-humanos, enquanto o ser é identificado pela afirmação de sua superioridade racial e dos direitos humanos, sociais, políticos e reprodutivos que lhes são inalienáveis. Covas rasas ou celas superlotadas, o sufocamento é o destino que garante a perpetuação das desigualdades e dos privilégios em um país atravessado pela permanência de estruturas racistas e de hierarquias de humanidades que justificam genocídios e morte-em-vida. Assim, mesmo em contexto de pandemia, a violação sistemática de direitos segue em curso, ininterrupta, bem como torturas, flagrantes forjados e chacinas, que movimentam a agenda genocida do Estado brasileiro, cujo programa vemos materializado em operações hediondas, como a que resultou na morte do jovem João Pedro, em São Gonçalo, ou no sequestro e assassinato de outro jovem negro, Guilherme, na zona sul de São Paulo. A violência perpetrada pelos agentes do Estado é a regra na zona do nãoser, sem exceção. Não se pode pensar o “novo” normal nesse contexto pandêmico sem considerar a cisão e o zoneamento que são operados entre as humanidades dignas e indignas de existência. Pois, essa “nova” ordem 2 CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutoramento em Educação. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.


mundial, que sonha com o vírus debelado e com o futuro outro por vir, revela, em sua própria formalização, velhas práticas e permanências. Daí, em um cenário de desigualdades estruturais e raciais que prefigura quais corpos são reconhecidos como sujeitos de direitos e quais são relegados as chances dilatadas de morte, as necropolíticas3 estatais continuarem a fomentar os velhos mundos de morte. As estatísticas estão aí, obscenas, para quem quiser ver. Mas, por trás dos dados frios e assépticos, tratam-se de vidas concretas de sujeitos cujas existências são instrumentalizadas e que se tornam alvos diletos de múltiplas formas de violência, sistêmicas e institucionais. A lógica da guerra contra o vírus reproduz a estrutura necrogovernamental da administração pública, com base na qual o quadro de violência é estabilizado como normalidade cotidiana para a manutenção dos modos de subjugação e de controle. E como não enxergar nesse quadro as dicotomias socialmente produzidas e o ímpeto de morte racialmente informado, que fornecem o arsenal para que se possa cometer o assassinato dos indesejados/ as, sem que se cometa crime algum, como propõe Judith Butler? E, ainda, sem que haja comoção expressiva por essas vidas perdidas. Pelo contrário. Há suspiros aliviados e sorrisos escamoteados, que só podem emergir de corpos que habitam a zona de conforto da branquitude, bem longe das zonas de confronto periféricas. Pois, compreendidas em grau inferior na escala de humanidades, essas vidas precárias estão mais suscetíveis à violência estatal e à ausência de luto público, na medida em que são consideradas como “ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias”4. 3 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018. 4 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 53.


“A flexibilização do distanciamento social exige cautela”, dizem. Ora, que medidas cautelares têm sido tomadas quando os decretos impõem a retomada das atividades econômicas sem que, em contrapartida, sejam providenciados os meios que garantam o cumprimento seguro de suas diretrizes? Transportes públicos lotados, trabalhadores/as sem máscaras e sem EPI, aglomerações nas ruas, em instituições públicas e em centros comerciais... E o “nada será como antes” se mostra, na prática, como face discursiva da farsa que se traduz na tragédia cotidiana, com cor de pele e classe social bem definidas. Daí remarcar Achille Mbembe em O direito universal à respiração que: “presa em um cerco de injustiça e desigualdade, boa parte da humanidade está ameaçada pela grande asfixia, e a sensação de que nosso mundo está em suspenso não para de se espalhar”5. Sobrevivendo no inferno, “periferia é periferia”, canta Racionais Mc’s. O sacrifício do corpo explorado e mais exposto aos riscos de morte, a perpétua zona de anomia e aniquilamento onde se situa, na qual vigora a violência impiedosa, nada disso é excepcional. E não será diferente no contexto pós-coronial. O estranho não é apenas a adjetivação imprópria do “novo”, mas o “familiar” inadmissível que retorna na expressão do “novo normal” e da normalidade, ambos assombrosos. Os impactos nefastos da violência, que refletem o racismo que infiltra as instituições brasileiras, se materializam nos efeitos desproporcionais e deletérios direcionados aos corpos negros e periféricos. E, frequentemente, operam pela via da produção da imobilidade e do hiperencarceramento de corpos asfixiados em celas superlotadas, efetivando o genocídio também no interior de cárceres: 5 MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. Trad. Ana Luiza Braga. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível em: https://n1edicoes.org/020 Acesso em: 29 jun. 2020.


A normalização do estado de coisas inconstitucional nos impede de pensar em termos de inefetividade, exceção, seletividade ou hipocrisia moral. Estamos diante de uma realidade que institucionaliza o não acesso aos mecanismos formais de aplicação normativa para um contingente expressivo da população brasileira e que, apesar de não se restringir ao ambiente prisional, tem no cárcere a experiência exacerbada de seus efeitos6.

Assim como o fim do colonialismo não estancou a sanha colonial, mas engendrou outras formas de dominação e produção de subalternidade, o fim da pandemia não significa a emergência de um novo mundo ou de qualquer paraíso idílico, superada a ameaça viral. Não sejamos ingênuos. Há, inclusive, indícios de que o estado de emergência sanitária, associado à normalidade dos ritos democráticos, poderá ser declarado com maior frequência, mediante o menor sinal de perigo aos Estados. É curioso, porém, que, tão logo decretado, dentre as medidas anunciadas para fazer frente à pandemia, estão a supressão de direitos trabalhistas, a flexibilização de direitos fundamentais, o aumento do controle via big data e o repasse de montantes financeiros exorbitantes a bancos privados. O necroliberalismo, neste sentido, como destaca Mbembe, impõe-se como regime desigual de distribuição das chances de vida e de morte. É a lógica do sacrifício alçada a racionalidade de governo. Os corpos descartáveis, a serem sacrificados em nome do Deus-Mercado, são considerados espólio de guerra, cinicamente tipificados como “danos colaterais” das medidas 6 FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula. Supremo Tribunal Federal e a naturalização da barbárie. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 02, 2020, p. 1211-1237. p. 1224-1225.


emergênciais. É contra o discurso da guerra e do inimigo de Estado, espectral, viral ou estrangeiro, que deveríamos nos colocar. Tratase, com o apoio desse discurso, da chancela social de verdadeiros assassinatos, promovidos por uma política penal que não cessa de “vigiar e punir” aqueles/as que representam a ameaça racializada ao Estado, territorializados nas geografias urbanas da morte, cujo sangue o Deus reivindica, para fazer movimentar as engrenagens econômicas e morais de uma ordem racialmente desigual. É nesse sentido que o mundo pós-coronial e o “novo normal” são senão fabulações retóricas. A pandemia do novo coronavírus evidenciou o que já estava, há muito, explicitamente colocado. Não haverá normalidade enquanto ela coincidir com um sistema-mundo baseado na estratificação e na desigualdade social, ancorado na lógica das iniquidades racial, sexual e socialmente produzidas em uma sociedade para a qual a metáfora da doença mais se avizinha ao eufemismo. Eis as armadilhas de mais um “future-se” compulsório. De um futuro anunciado que pressupõe intocadas as bases que sustentam heranças coloniais-escravagistas e a continuidade do poder discricionário de instituições militares que agem como anticorpos que exterminam as vidsa de seres desumanizados. Enquanto vigorar essa realidade, que perpetua, historicamente, a “normalidade” do estado de coisas inconstitucional em curso no país, o “novo normal” será apenas retórica farsesca, destinada a apaziguar a consciência e os ânimos daqueles/as que sonham com o retorno a uma ordem intolerável.

Rio de Janeiro, 29 de junho de 2020.


Diego Reis é professor contratado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP). Doutor, mestre e licenciado em filosofia pela UFRJ, pesquisador do Laboratório X de Encruzilhadas Filosóficas e do Laboratório de Filosofia Contemporânea. Carioca da zona norte do Rio de Janeiro, ensaísta e filho de santo. É autor de O governo da emergência: estado de exceção, guerra ao terror e colonialidade (no prelo).


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