Pandemia Crítica 124 - Exus e xapiris: perspectiva améfricana e pandemia

Page 1

Exus e xapiris: perspectiva améfricana e pandemia Tadeu de Paula Souza


Para Yalodê O perspectivismo yanomami, narrado pelo xamã Davi Kopenawa, nos ajuda a entender a ira dos xapiris, espíritos da floresta, com o destruição causada pelos homens “apaixonados por mercadorias”. Segundo os yanomamis a floresta, Omana, é inteligente e se defende da predação com os xapiris, responsáveis por sustentar o céu. A morte do povo yanomami e dos seres da floresta gerará a queda do céu, uma ação de Omana em resposta ao desequilíbrio predatório que os xamãs não conseguirão mais conter. Como aponta Ailton Krenak1 a relação entre cultura ameríndia e natureza não é nem de passividade nem de predação, mas de cultivo, dádiva, admiração e produção comum – “a floresta somos nós que cultivamos...a floresta é algo produzido por pássaros, primatas, gente, vento, chuva... esses são produtores de floresta! Os índios e seringueiros mostraram que a gente cria a floresta e mantém a floresta...”. Os ancestrais do povo yanomami (yarori pë) se desdobraram: suas peles se tornaram animais (yaro pë) e seu espírito se tornou xapiri. “No entanto, quando se diz o nome xapiri, não é apenas um espírito que se nomeia, é uma multidão de imagens semelhantes.” Essas imagens seriam o yarori pë, que designa uma coletividade que os xamãs acessam nos seus rituais. Um xapiri tem várias expressões, imagens diferentes porém semelhantes de uma mesmo espírito ancestral. Para Bruce Albert2 a triangulação ontológica entre os ancestrais animais (yarori pë), os animais de caça (yaro pë) e as imagens xamânicas animais (também yarori pë) constitui uma das dimensões fundamentais da 1 Vozes da floresta - Acessado 16 de junho de 2020 - https://www. youtube.com/watch?v=KRTJIh1os4w&t=1769s 2 KOPENAWA, Davi. e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015


cosmologia yanomami. A imanência entre homem e natureza provém de uma relação de parentesco comum em que todos são pessoas, como aponta Viveiros de Castro3: parentesco entre os yanomamis, os milhares de espíritos da floresta (xapiri) e os diversos animais que habitam a floresta . Assim como na cosmologia ameríndia, na yorubá também não há transcendência entre cultura e natureza, mas uma imanência ativa que é preservada, dentre várias estratégias, pela preservação de uma cosmologia da multiplicidade e parentalidade: muitos seres diversos que compõem uma grande família. Segundo uma lenda africana entre Orum (mundo espiritual) e Aiyê (mundo terreno) havia um espelho que refletia a verdade espiritual sobre o mundo terreno. Até que um dia Mahuna, uma habitante do Aiyê quebrou o espelho ao macerar o inhame no pilão. Mahuna foi rapidamente explicar o ocorrido a Olurum (criador do céu e da terra) que tranquilamente lhe respondeu que daquele dia em diante cada um veria o mundo a partir do pedaço do espelho, não haveria uma verdade universal, cada verdade é o reflexo do lugar em que se encontra. O perspectivismo yorubá se funda numa cosmologia que impede a apropriação do múltiplo no Um, mantendo ativa a abertura da coexistência de diversos mundos possíveis. A quebra do espelho da verdade conjura a formação de uma cosmologia narcísica e, portanto, etnocêntrica, que torna o mundo uma grande projeção de uma única imagem políticocultural: a sua. Omolu é um Orixá que rege as doenças e as curas no âmbito coletivo. Para a cosmologia yorubá as epidemias são expressões de desequilíbrios na relação com a natureza que inclui além da fauna e da flora, outras pessoas e as divindades. Omolu 3 CASTRO, Viveiros. “Os pronomes cosmológicos e o ameríndio”. Mana: 2(2): 115-144. Rio de Janeiro, 1996

perspectivismo


é, portanto, uma força da natureza que rege esses desequilíbrios, onde a cura advém, portanto, de uma mudança coletiva. Existe uma exigência para que Omolu efetue a cura! A forma de transcendência entre cultura x natureza se expressa na cosmologia da branquitude através da forma-Estado que subsume o múltiplo no uno, sobrecodificando e capturando as variações do vivo. Assim vem sendo nos últimos 500 breves anos de dominação etnocêntrica e autericidada. Negar o outro, a vida e a multiplicidade tem sido o modo de gerar acumulação de capital e expropriação de modos de vida fundados na multiplicidade e no comum. A pandemia anuncia o fracasso de uma cosmologia que ao se impor como superior às demais conduziu a vida a difíceis impasses. O espelho universal da branquitude quebrou, mas a habilidade dessa dominação ético-estético-política parece sempre se recompor de pedaços de espelhos que se rearticulam de modo a formar uma imagem distópica. A pandemia prenuncia os eventos catastróficos a que a branquitude, pautada na cosmologia do unomercadoria-propriedade, conduz a vida na Terra. A intrusão Gaya como aponta Isabelle Stangers4, diz respeito a uma ação que não aponta para uma relação de pertencimento ou mesmo de vingança de Gaya, mas simplesmente de uma reação que não tomará conhecimento de uma espécie específica: os humanos. Entretanto, tal intrusão pode ser respondida sintomaticamente, quando as crises ecológicas continuam a ser entendidas como oportunidades para gerar ainda mais concentração de riqueza e intensificação do racismo ambiental e distribuição de mortes em escala planetária. Ao mesmo tempo em que negrxs morrem 60% a mais que brancos por COVID-19, o patrimônio dos bilionários estadunidenses aumentou em 15% durante nos dois primeiros meses da pandemia5. 4 STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir a barbárie que se aproxima. São Paulo, Cosac Naif, 2015 5 https://www.infomoney.com.br/negocios/bilionarios-americanos-ficaramus-434-bilhoes-mais-ricos-desde-o-inicio-da-pandemia-aponta-elatorio/? fbclid=IwAR153HY44MRsUhryoDt7ETK1o7SXwFEEo7uIrj_fWCNTJ6qgTzc6zpigE2A


À medida que a pandemia avança sobre o globo, como ondas que descem e sobem, modeladas em curvas e gráficos, refletem-se as racionalidades de governos que tentam impor novas normatividades. Alguns países têm chamado especial atenção por terem persistido com uma política de negação ou minimização da pandemia atualizando o negacionismo como estratégia necropolítica, especialmente nas américas onde o racismo é marcador territorial e de desigualdade social. O negacionismo opera assim como racionalidade que ao negar os genocídios coloniais, segue a negá-los no contemporâneo, para negá-los no futuro próximo: assim como não houve escravidão, não houve tortura, e não haverá aquecimento global! Toda negação é também um desejo de negação. O negacionismo é constitutivo da necropolítica colonial que no Brasil ganhou a forma de um mito originário da relação harmoniosa das diferentes raças na formação de uma democracia racial e se atualiza nas respostas fascistas à pandemia, uma vez que além de assassíno e racista, o bolsonarismo expressou no “E daí?” sua disposição suicidaria. Nos cacos dos espelhos da nova república que se espatifou observamos os reflexos de uma améfricanidade, tal qual propõe Lélia Gonzales6 citando M.D Magno. A hibridização de cosmologias ameríndias e afrodiáspóricas criam potentes estratégias para liberação da imaginação política de um mundo porvir e reverter a negação (da vida). A imaginação advém da composição de matérias expressivas que ganham corpo num projeto político. A imaginação é, portanto, o efeito da composição de afetos e matérias expressivas coletivas. No Brasil essa matéria expressiva foi constituída no fazer comum da diáspora, o egbé, como aponta Muniz Sodré7, enquanto experiência coletiva dos 6 GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988, p. 69-82 7 SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis/RJ, Vozes, 2017.


diversos terreiros que compõem memória e matéria, não de um saudosismo mas de invenção de novos modos de vida. Como aponta Mbembe8, as plantaions criaram uma situação paradoxal, uma vez que imprimem um poder absoluto frente ao qual o negro ou indígena escravizados criaram uma representação com qualquer coisa de que dispunham, fosse um gesto, traços da linguagem, batidas no corpo, estetizando-as. Essa matéria expressiva do egbé vem da resistência e afirmação da vida diante da morte. O assimilacionismo político-cultural do embranquecimento, como aponta Kabenguele Munanga9, e da produção de uma subjetividade negacionista restringiu o fazer egbé ao espaço das artes e religiosidades, em que as matérias expressivas ameríndias e afrodiásporicas são incorporadas numa inteligibilidade que as reduz à “contribuição” e “acessório” à cultura central branca e eurocêntrica. Esse “inclusivismo cultural” como provoca Paul Gilroy10, tem a intenção de delimitar o campo de atuação de outras cosmologias que pensam o mundo e a vida a partir de outros paradigmas ético-estético-políticos que não o do ‘egoísmo-unidade-concorrência’. Bloquear a imaginação e o devir revolucionário, essa é a função da colonialidade, uma vez que impede que o egbé ganhe espaço políticoinstitucional. Em contrapartida inserir um modo egbé de fazer política e fazer instituição é uma estratégia de dar corpo e consistência à imaginação política e ao desejo de outros mundos possíveis. A colonialidade produz, na melhor das hipóteses, a idealização e projeção, tão comum na esquerda brasileira, que a partir da categoria de coincidência de classe, exclui o corpo, o afeto, 8 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. n-1 edições, São Paulo, 2018 9 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte, Autêntica, 2019 10 GILROY, Paul. Atlântico Negro. São Paulo, Editora 34, 2017


a espiritualidade e a mitologia constitutivas na matéria expressiva améfricana. Se por um lado essa matéria tem ganhado corpo a partir das lutas identitárias, cabe ressaltar que é somente por uma questão estratégica e não por finalidade. Ao contrário da formação das identidades nacionais, as identidades améfricanas se sustentam numa cosmologia da multiplicidade e são movimentadas pela força Exu. Exu é a energia do movimento, da comunicação e articulação entre mundos. É Exu que faz a passagem e conexão entre diferenças. Toda identidade Orixá precisa de Exu, para exercer a cosmologia da multiplicidade e comunicar as diferenças entre eles, uma vez que um filho de Oxossi, pode, toda vez que for necessário, evocar a forças de Xangô ou Ogum: um Orixá nunca age sozinho! As identidades são processos de individuação que se processam em coletivos que compõem as diferentes qualidades Orixás! O medo de Exu não se deve a poderes maléficos, mas ao fato de conjurar a identidade nacional e o projeto de soberania, uma vez que ataca aquilo a que o Estado resiste: a composição de diferenças. As cosmologias améfricanas incluem os elementos excluídos pela branquitude, tal qual nas giras de Umbanda em que o ‘povo da rua’, os ‘pretos velhos’, os ‘caboclos’, ‘ciganas’ e as pombas giras’ baixam para ensinar, proteger, acolher, cuidar e guiar. Ao contrário da cosmologia moderna não existe separação entre qualidades supostamente femininas e masculinas. No egbé lutar, brincar e curar são atividades do pensamento, como no pensar-fazer da copeira angola e dos terreiros em que as matérias expressivas que movimentam sensibilidade, cuidado e amorosidade são constitutivas do fazer-instituição. Enquanto exus trabalham intensamente para abrir os caminhos, seguiremos aprendendo com eles a produzir novos mundos possíveis, recompondo um campo de alianças alicerçados em matérias


expressivas que nos ensinem a arte de conjugar num mesmo movimento luta, brincadeira e cura, para que durante a longa travessia que a pandemia exige, possamos acumular potência e liberar novas imaginações, somar esforços aos xapiris e juntos, sustentar o céu. Tadeu de Paula Souza é professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFRGS. Ccoordena, junto com o prof. José Damico, o grupo de pesquisa “Egbé: negritude e produção do comum”.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.