Pandemia Crítica 126 - Tempos pandêmicos e cronopolíticas

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Tempos pandêmicos e cronopolíticas Rodrigo Turin


A pandemia nos revela pressionados entre dois tempos fortes. De um lado, a expressão virulenta do tempo do Antropoceno; de outro, o tempo degradado e acelerado da política, em sua versão neoliberal autoritária. Distintos, esses dois tempos não deixam de se relacionar um com o outro, cruzando-se, fortalecendo-se, mas sem jamais coincidirem plenamente. Essa não-coincidência dos tempos deixa sua marca no cotidiano dos corpos, gerando sobre eles efeitos divergentes, mesmo contraditórios. Não há uma unidade e uma estabilidade mínima onde os corpos possam habitar, eles são fraturados por tempos heterogêneos, sem horizonte de conciliação. Aprender a habitar esses tempos, neles e contra eles, é um dos grandes desafios que vivemos nessa pandemia. O tempo do Antropoceno é o evento que fez convergir os papéis que a modernidade se esforçou em manter separados. Se a nossa consciência histórica moderna se assentou na lógica da emancipação do humano frente à natureza, agora nos vemos obrigados a encarar tanto a falsidade desse sonho de emancipação, como a fragilidade dos vínculos que nunca deixaram de nos constituir como seres terrestres. A emancipação se mostrou alienação, a busca por autonomia fez revelar a dependência. A ânsia por controlar todos os ambientes levou com que fossemos por eles controlados, desvelando o profundo descontrole de nossas ações. No lugar do moderno ídolo da “disponibilidade da história”, tão bem expresso no sonho colonizador (e assassino) de Fausto, ressurge agora o fantasma da indisponibilidade radical do mundo. O vírus nos joga em uma situação de exílio forçado dos ambientes, no enclausuramento como forma de sobrevivência, no isolamento individual como condição da saúde do coletivo.


Não dever sair de casa, não poder sair de casa; ter que sair de casa, querer sair de casa: imperativos e privilégios que se torcem nessa nãocoincidência dos tempos da pandemia. Se o tempo do vírus coloca a dimensão ética e sanitária do isolamento, o tempo do neoliberalismo e da emergência dos neofascismos impõe um sentido inverso de ação: ocupar as ruas, povoar o ambiente. A imobilidade cobrada pelo risco de contaminação encontra o seu reverso na acelerada degradação da vida política, trazendo a urgência da presença coletiva como resistência à barbárie. Para além de necessidade imposta de ir às ruas, de expor-se ao contágio em nome da reprodução do capital, soma-se a urgência incorporada da exposição dos corpos como ação política. Isolamento e exposição, dois imperativos éticos em uma mesma encruzilhada de tempos. Duas formas de habitar os tempos que revelam a precariedade fundamental dos corpos - seja ao vírus, seja à violência de uma racionalidade econômica que só pode sobreviver hoje expondo do modo mais cru a sua dimensão autoritária e securitária. O tempo da pandemia tem servido de gatilho para a aceleração do tempo do neoliberalismo autoritário, o efeito reforçando a sua causa. Mais do que a volta de um fantasmático Estado provedor, o que se desenha na geopolítica global é a intensificação de uma economia fundada em uma antropologia que faria Hobbes estremecer. A lógica da concorrência como luta pela sobrevivência passa a ser introduzida em todas as instâncias da vida, da saúde à educação, reestrutura1ndo profundamente os laços sociais e seus afetos, assim como inviabilizando os pequenos refúgios que existiam para desacelerar e respirar. A desaceleração e a própria respiração - esse direito universal e originário, como disse Mbembe - tornaram-se privilégios a serem conquistados. 1 MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. N-1, São Paulo, 2020.


Quem pode pagar para desacelerar, quem pode comprar momentos para experimentar a lentidão, quem pode adquirir os seguros que lhe garantem o acesso à respiração em meio aos tempos pandêmicos? A desaceleração e a respiração tornaram-se serviços privados, submetidas à lógica do mercado. É a possibilidade de lucrar com a degradação do mundo. O tempo do Antropoceno nos faz perceber que após a pandemia não haverá um novo normal. O novo normal é o próprio tempo pandêmico, na dupla precariedade que atinge os corpos. Com apenas seis por cento da bioesfera fora do controle humano, a emergência de estados de pandemia tende a se repetir cada vez mais e em intervalos mais curtos. Esse é o preço do “excesso de biopoder” de que falava Foucault, acabando com qualquer soberania humana2. Ao ethos sacrificial do neoliberalismo, induzido em nome de austeridade financeira, soma-se agora a imposição do sacrifício da crise ambiental, como a limitação de movimento, a precariedade da sobrevivência cotidiana e a exposição assimétrica aos riscos climáticos e biológicos. O tempo do neoliberalismo autoritário encaminha assim um esforço de fazer convergir o tempo do Antropoceno a seu favor, capitalizando-o, mesmo que isso represente uma condição suicidária consciente. O fim do mundo como janela de oportunidade. Na medida em que esses tempos distintos se cruzam, com o tempo do neoliberalismo capitalizando o tempo do Antropoceno, torna-se urgente refundar a própria relação entre político e tempo. Não há um tempo natural que sirva de palco vazio para a política. O tempo da natureza e o tempo histórico, distinguidos desde o século XVIII, voltam a se cruzar, nos obrigando a reconfigurar a nossa própria linguagem. Conceitos como “progresso” e “desenvolvimento”, que orientavam a desvinculação temporal da história e da natureza, serviam para sincronizar as ações 2 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 303.


sociais em um ritmo acelerado, cujos resultados são os escombros do presente. Nas sociedades ocidentais modernas, criou-se todo um aparato institucional para promover essa sincronia e essa aceleração, o Estado tornando-se esse grande centro de cálculo a partir do qual os tempos sociais eram coordenados. O regime de trabalho, a educação dos indivíduos, a saúde dos corpos, a locomoção das massas e das mercadorias, tudo passava a ser objeto de uma política do tempo, cujo eixo estruturador estava na racionalidade histórico-econômica da emancipação da natureza, no progresso técnico, na autonomia do humano em direção a um infinito secular e libertador. Se essa política do tempo na modernidade era estruturalmente singular, voltada a um futuro único e redentor, ela não deixava de operar ainda com uma certa heterogeneidade interna e hierarquizada de tempos. O liberalismo clássico trabalhava com espaços mínimos e relativos de autonomia. A própria distinção entre privado e público, entre o interior e o exterior, como ressaltou Benjamin, servia como possibilidade para o “refúgio da arte” ou, ainda, para o tempo do colecionador. O tempo contemporâneo do neoliberalismo dissolve esses espaços mínimos de autonomia, vampirizando todas as energias em função de sua própria reprodução. Não há mais distinção entre o dentro e o fora, entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer. Essa nova forma de sincronização é muito mais radical e violenta, forçando os corpos a incorporarem um ritmo frenético e autodestrutivo. As pessoas não escolhem se auto explorarem, elas são induzidas a isso por uma série de mecanismos que as forçam a níveis de produtividade e de performance cada vez mais insustentáveis, seja na saúde, na educação, no direito, na ciência ou em qualquer outra esfera. Diante dessa nova sincronização e da hiperaceleração que ela implica, o próprio espaço da política se esvazia. A crise de


representatividade, a degradação dos sistemas políticos modernos, com sua estrutura partidária, são efeitos desse novo tempo neoliberal e autoritário. Diante da velocidade de circulação do capital financeiro global, o tempo lento das deliberações políticas torna-se inviável. A cobrança de “agilidade” dos Estados em dar respostas imediatas ao capital abre o horizonte de um Estado gestor, ocupado por técnicos e por figuras autoritárias, o autoritarismo da técnica e as técnicas do autoritarismo se encontrando. Nessa chave, cabe ao Estado criar as condições necessárias para que a incorporação do ethos neoliberal ocorra de modo mais efetivo, desenvolvendo e aplicando as tecnologias de gerenciamento empresarial, induzindo o empreendedorismo e a responsabilização individual. Custe o que custar, ou quem custar. Nessa nova colonização temporal do cotidiano, nos tornamos cada vez mais acelerados e, paradoxalmente, mais atrasados. Atrasados, porque os critérios que regulam o movimento tornamse obsoletos a cada dia, ou a cada hora. Assim como para os esportistas de alta performance, os recordes só devem durar até a próxima competição. Mas para além dessa obsolescência produzida pela própria aceleração, nos tornamos atrasados também em relação ao planeta. Quanto mais avançamos, mais perdemos o tempo para evitar o fim. A nossa aceleração nos imobiliza, o horizonte de ações necessárias para lidar com a dívida que o planeta nos cobra parece cada vez mais longínquo, quase inacessível. Com o Estado gestor e a concorrência global, parece não restar espaço possível para uma intervenção política dos indivíduos. Daí a sensação global variar hoje, nesse cruzamento de tempos, entre o sentimento de melancolia e o niilismo mais cínico e destrutivo. É nesse cenário que se torna urgente refundar a relação entre política e tempo. Para isso,


é necessário tanto evitar um suposto retorno à temporalização da política, tal como desenhada na chave moderna, como também combater a despolitização e a comoditização totalizante do tempo cotidiano, tal como efetivado pela sincronização neoliberal. Uma politização do tempo, hoje, só é possível em uma dimensão plural. No Antropoceno, como afirmou Bruno Latour, a pluralidade é incontornável3. Mais do que uma política do tempo, com o fantasma de uma sincronização centralizada e monolítica, devemos falar em políticas dos tempos, em cronopolíticas. O que implica tanto em repolitizar as esferas sociais, como também em respeitar suas próprias temporalizações. Politizar o tempo é, portanto, problematizar e criar as diferentes condições de possibilidade de uma boa temporalização para as nossas ações e para nossas experiências comuns. Nessa cronopolítica plural, deve-se entender o tempo na sua dimensão performática, como tecido constituinte das ações e das experiências, e não como uma abstração capaz de ser medida e calculada com instrumentos universalizantes. Mais do que impor um tempo exterior às ações, como o faz a sincronização neoliberal, torna-se necessário que as formas institucionais sejam pensadas como equivalentes das formas temporais que abrigam. Uma questão fundamental a ser fazer, nesse sentido, é qual o bom tempo das experiências? Qual o bom tempo da ciência, do ensino, da arte, da saúde pública, mas também dos afetos, da amizade, das sexualidades? Qual o bom tempo da produção e das trocas? Colocar a pergunta é reinserir a dimensão política nessas esferas, politizando a sua própria forma temporal. Conseguir colocar a pergunta, contudo, já implica hoje o esforço de romper o ritmo frenético do neoliberalismo, implica em arrancar espaços de suspensão em meio à 3 LATOUR, Bruno. Face à Gaïa. Paris, La Découverte, 2015.


inércia acelerada que vivemos. Perguntar-se pelo bom tempo da experiência é já começar a puxar o freio de emergência. O tempo do Antropoceno está aí e não irá desaparecer. Nenhum plano estratégico, nenhuma gestão técnica será capaz de controlá-lo ou de domesticá-lo dentro da ordem temporal políticoeconômica que sincroniza hoje nossas relações sociais e nossa relação com o planeta. Apesar do nome, o Antropoceno não é antropocêntrico. Para usar os termos de Chakrabarty, ele não é “global”, mas planetário, o que quer dizer que mais do que ser abarcado por um tempo histórico, é ele que o abarca, constituindo-se em múltiplos camadas, incluindo as dimensões geológicas, climáticas, biológicas, que escapam ao cálculo humano4. Nesse sentido, uma cronopolítica, em sua pluralidade, deve abdicar do sonho moderno da disponibilidade da história e abraçar a realidade da indisponibilidade do mundo. A cronopolítica dever ser, assim, concebida como “tempos menores”, recusando a prepotência de uma singularidade soberana. As trincheiras são cotidianas, concretas, palpáveis, e não abstratas, longínquas e inacessíveis. O reconhecimento da indisponibilidade do mundo não significa inação, paralisia contemplativa, mas outra forma de pensar o agir, ente humanos e não humanos. Significa buscar bom tempo da vida, um tempo habitável, em suas múltiplas expressões e formas. Rodrigo Turin é Prof. Associado na Escola de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

4 CHAKRABARTY, Dipseh, The Planet: An Emergent Humanist Category, Critical Inquiry 46 (1), 2019, 1–31.


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