Para uma liberta¢ão do tempo. Reflexão sobre a saída do tempo vazio Antonin Wiser
Tradução Eduardo Socha
1. No último texto que escreveu antes de sua morte em 1940, o filósofo Walter Benjamin evocava a concepção de progresso de seus contemporâneos social-democratas como a de um tempo “homogêneo e vazio”, “essencialmente irreversível”, “que se desenvolve automaticamente percorrendo uma trajetória em flecha ou em espiral”. Os paladinos do crescimento parecem ter adotado essa representação, mas a esvaziaram de tudo aquilo que a social-democracia do pré-guerra ainda compreendia como um progresso da humanidade, e a reduziram à mera acumulação de riquezas para uma pequena minoria. Essa minoria continua afirmando que seu enriquecimento pessoal beneficiará a todos, mas não engana mais ninguém, já que o empobrecimento dos pobres continuou a se agravar. Os apologetas do progresso então revisaram suas profecias para baixo: há décadas, e principalmente depois da crise financeira de 2008, o tempo sem qualidade em que estamos imersos não promete mais nenhum outro horizonte a não ser o da manutenção de um status quo catastrófico, arrancada às custas dos esforços constantemente renovados das classes trabalhadoras (austeridade, reformas previdenciárias, redução dos serviços públicos, etc.). Que futuro os líderes e poderosos deste mundo nos ofereceram nesses últimos vinte anos, a não ser que nada mude para que o capitalismo consiga perseverar em seu ser? 2. De repente, contudo, após a circulação globalizada de um vírus, o curso automático e sonambúlico desse tempo foi interrompido. Apenas por um momento, sem dúvida, mas em uma escala sem precedentes na história recente. Essa interrupção evidencia muitas coisas:
(a) A primeira é um fato, familiar à crítica da economia política, revelado pela queda brusca dos lucros e pelo declínio dos indicadores de crescimento econômico causados pelo fechamento de diversos setores da produção: o fato de que o tempo vazio forma a substância do valor econômico. Com efeito, é apenas o tempo esvaziado de toda qualidade que torna os produtos do trabalho quantificáveis, comparáveis, intercambiáveis, como mercadorias. Uma vez suspenso esse curso, interrompem-se não apenas a metamorfose do trabalho em valor, mas principalmente a captura do valor pelas classes possuidoras, sua acumulação sob a forma de capital. Grande parte da brutalidade dos efeitos sociais do confinamento decorre do fato de que essa captura privativa deixa a maior parte da humanidade desprovida de reservas. Diante da doença e da morte, pobres e ricos nunca foram iguais. (b) As medidas de urgência sanitária também explicitaram a divisão social do tempo: enquanto alguns, e sobretudo algumas (enfermeiras, vendedoras, faxineiras, cuidadoras de crianças), se viram obrigados a trabalhar sem parar, outros foram provisoriamente dispensados. Essa divisão não é nova, embora tenha assumido um caráter particularmente irracional ao longo das últimas décadas: apesar das condições de produtividade que permitiriam segmentar e reduzir o trabalho, o mundo – à exceção das classes mais favorecidas, liberadas do trabalho – divide-se ainda entre um grupo “produtivo” (isto é, produtor de acréscimo de valor), cujo tempo de atividade não para de aumentar, e um grupo “improdutivo”,
cujo tempo aparentemente disponível é tornado inutilizável (pela exclusão social, miséria, busca por emprego, marginalização cultural, isolamento, encarceramento etc). Nas condições atuais, nenhuma dessas duas categorias dispõe de seu tempo de vida: alguns permanecem intensamente mobilizados para a produção de valor, enquanto outros ficam imobilizados pela precariedade de sua existência. Nas últimas semanas, até mesmo os “privilegiados” – aquelas e aqueles que podem trabalhar remotamente – perceberam a degradação em suas condições de trabalho que está por vir: a colonização do espaço-tempo privado pelo trabalho. E a geração espontânea das múltiplas atividades forjadas para preencher a ociosidade dos confinados (fazer esporte, manter um diário, consumir a oferta da indústria cultural etc.) testemunha isto: de maneira nenhuma o tempo vazio pode ser um tempo livre. (c) O tempo vazio do crescimento ilimitado viu sua dimensão ideológica revelada pelo surgimento de uma temporalidade que o desafia, a da crise ecológica. Da mesma forma que o aquecimento global e a extinção em massa de espécies vivas, todas as últimas pandemias virais se originaram do choque entre a expansão desenfreada da pegada humana e os ambientes ecossistêmicos com uma homeostase delicada. É precisamente porque a atividade humana não ocorre num espaço-tempo homogêneo e vazio, nem em uma natureza infinitamente explorável, que sua implementação capitalista ocasionou o contato problemático entre espécies que antes viviam distantes entre si, com as conseqüências que conhecemos. Esse é apenas um dos efeitos da inadequação da ideologia do tempo vazio à
realidade de um mundo finito. Agora, ela está provocando o retorno, na frente do palco, de um tempo qualitativo sob a forma de uma temporalidade de crise, ameaçando e trazendo consigo escassez e extinção. Ancorada nas interações dos seres vivos, na sensibilidade dos ecossistemas e nos frágeis equilíbrios geofísicos, essa temporalidade inclui latências, inércias, acelerações, efeitos de acumulação, efeitos de limiares e de estratificação. É tudo menos linear e não se deixará converter em fator de acumulação do capital. De agora em diante, esse é o tempo com o qual teremos que contar, para o bem e para mal. 3. Como as medidas tomadas diante da pandemia afetaram a captura de valor, o fim dos dispositivos sanitários de emergência será acompanhado por um agravamento da luta acerca do tempo, o que é central para o conflito de classes. Os ideólogos burgueses já estão pedindo aumento da jornada de trabalho, horários de trabalho mais longos, o fim dos feriados; amanhã, voltarão a questionar (o que nunca chegou a ser de fato abandonado) a idade para aposentadoria. Ou seja, intensificação do trabalho e aumento da sobrecarga de trabalho para aqueles que estão empregados. Para os outros, redução ainda maior na redistribuição do tempovalor: redução dos serviços públicos, restrição do auxílio social, aumento da precariedade, etc. Esse programa, destinado à transferência de tempovalor socialmente produzido para as minorias possuidoras, é bastante conhecido. E o espantalho do desemprego e da competição internacional será utilizado na tentativa de impor à força tal programa a populações que dificilmente são enganadas.
Diante dessa ofensiva esperada, é preciso reafirmar a necessidade e a possibilidade de subtrair da produção do valor o tempo de nossas vidas. Isso significa reduzir o tempo de trabalho, reorganizálo coletivamente, diminuir os ritmos produtivos bem como redistribuir socialmente o tempo-valor acumulado de maneira privativa. Autores como André Gorz demonstraram que o aumento da produtividade do trabalho ao longo do século passado torna essa perspectiva bastante realista. O objetivo é requalificar o tempo das nossas vidas, após o capitalismo ter feito de nossas vidas existências sem qualidade. Um pequeno número daquelas e daqueles que a crise sanitária acabou removendo dessa valorização do valor tiveram talvez a sorte de entrever o caminho para tal requalificação – através de gestos de solidariedade, de uma nova atenção aos laços sociais, do desenvolvimento de atividades criativas não mercantis, etc. O que importa é manter essas micro-experiências abertas e multiplicá-las a fim de descobrir aquilo de que somos capazes. No entanto, o contexto no qual se insere essa perspectiva para a requalificação das vidas não pode ser o da temporalidade linear do crescimento, estruturalmente desqualificante. O que está em jogo foi resumido muito bem pela filósofa Isabelle Stengers nos seguintes termos: trata-se de “criar uma vida depois do crescimento, uma vida que explora conexões com novas potencialidades para agir, sentir, imaginar e pensar.” Ao escrever isso dez anos atrás, ela também estava muito consciente de que a partir de agora teríamos que viver em um tempo de escassez, de fragilidade, de mudanças e equilíbrios incertos – um tempo marcado por desastres ecológicos já em andamento. E que ainda teremos que aprender a habitar esse tempo de uma forma “não bárbara”.
4. A expressão “o mundo do pós”, hoje presente em todas as falas, pode ser enganosa se ainda mobilizar a imaginação de um tempo linear. A necessária interrupção do tempo vazio do capital articula-se a uma temporalidade ecossistêmica que impede qualquer projeção simples sobre um eixo pré/pós. O que precisamos pensar, a fim de levarmos em conta os efeitos incalculáveis da crise ecológica, é a maneira pela qual nós já estamos no tempo que resta, e não diante do tempo que vem. Esse tempo que resta pode ser entendido como o “tempo do fim” a que Günther Anders se referia em 1960, quando evocou a “última era” na qual a ameaça (que não desapareceu!) das catástrofes nucleares nos fez entrar. Também deve ser entendido como o tormento dos efeitos persistentes dessa era do tempo vazio e da exploração intensiva do mundo não-humano, essa quantidade de dejetos que continuarão a nos acompanhar por muito tempo e dos quais não iremos nos separar por um salto mágico qualquer em direção ao “pós”. E poderá igualmente ser entendido como aquilo que nos cabe, essa escassez da qual nos resta cuidar, esse tempo qualitativo para uma atenção pelos sobreviventes – humanos e não-humanos – de séculos de desqualificação. Habitar o tempo que resta não é o programa de um “pós”, mas nos obriga, desde já, a realizar uma ruptura antropológica com o capitalismo e o ser-no-tempo do homo economicus. Tal ruptura não acontecerá pela graça de algum desastre epidêmico ou climático programado, mas sim no momento em que nos libertarmos, por meios a serem inventados coletivamente, da valorização do valor, aproveitando o que Walter Benjamin chamou de “oportunidade revolucionária”. Isso pode começar hoje mesmo através de nossa resistência à “retomada do crescimento”, da sabotagem da mobilização das nossas vidas em proveito do lucro,
da recusa de nos deixarmos dividir entre hipermobilizados e imobilizados. A breve suspensão da temporalidade vazia provocada pela crise sanitária pode ter permitido talvez o vislumbre da possibilidade de uma libertação mais ampla do tempo de nossas vidas. Terá talvez conseguido abrir uma brecha para o imaginário no muro daquilo que um ideólogo apressado celebrou trinta anos atrás como o “fim da História”. E então talvez nos daremos conta de que, ao sairmos do tempo vazio, a história efetivamente só faz começar. Revisão técnica da tradução: Jeanne Marie Gagnebin
Antonin Wiser é filósofo e tradutor. Trabalhou em Berlim e Lausanne, onde atualmente é professor do ensino médio. Suas publicações concentram-se sobre teoria crítica (Adorno, Benjamin), desconstrução e a estética da literatura.