um tiro em mim quando ficar em casa é também estar em perigo por I
“é como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade”. [Mineirinho, Clarice Lispector]
estamos em 2020. estou em São Paulo. no dia 25 de março, fui alvejada dentro da minha casa e um tiro me feriu o braço direito. fui ferida por uma arma não letal. não eram balas perdidas – e não existem balas perdidas. no dia seguinte, me dirigi ao distrito policial com o seguinte relato, buscando a objetividade que, muitas vezes, sinto não ter: - dia 25/03, às 20 horas. - em casa, eu estava participando de uma reunião de estudos. - horário que acontece a manifestação das janelas. - cheguei a gritar e a bater panela, mas não ostensivamente porque estava numa reunião de pesquisa. - estava no escritório, fazendo uma aula on-line, por causa do afastamento físico e das atividades suspensas na universidade. - de repente, percebi que entravam vários pequenos pontos de uma luz vermelha em vários cômodos da minha casa [sala, varanda, escritório e quarto] e ouvia um barulho de um objeto não identificável entrando no meu apartamento. - não sabia o que era aquele laser e aquele som ao redor. - comecei a ficar com medo e a andar pelos cômodos da casa, para tentar entender o que era aquilo e de onde vinha. - percebi que essa luz vermelha apontava para o chão, mirava o meu corpo e acompanhava os meus movimentos dentro de casa. isso durou, mais ou menos, vinte, trinta minutos. - as janelas dos quartos estavam abertas. a porta da sacada também. - de novo, ouvi um barulho no meu quarto, um estouro. quando entrei, percebi que a porta do armário tinha sido aberta porque foi atingida por alguma coisa. eu ainda não sabia identificar o que era. assustada, fechei a janela de vidro.
- notei que a luz vermelha vinha do prédio da frente, provavelmente de um apartamento do mesmo andar que o meu ou um pouco acima. - moro no sétimo andar e meu apartamento é circundado por um prédio da Rua Monte Alegre, em Perdizes, cidade de São Paulo. a sala e os quartos de casa fazem vistas para a varanda, a área de serviço, a cozinha e a sala desse enorme prédio, caixas de fósforo empilhadas. de lá, vizinhxs conseguem ter vários pontos de visada da minha vida cotidiana. a distância que nos separa é de aproximadamente 20 metros. fronteiras fluidas e duras. - panóptico arquitetônico. - corpos dóceis. - dispositivo. - sociedade de controle. - disparos. - quando voltei para o escritório, senti que a luz alvejou de raspão a minha barriga e atingiu o meu corpo. - senti muita dor no braço direito. estava com uma blusa de lã grossa e uma camiseta. tirei a blusa de lã e levantei a camiseta para ver por que doía tanto. tinha uma ferida exposta, com sangue. ainda não estava entendendo muito bem o que era aquilo e aquela situação dentro de casa. - mas percebi que foi um tiro. - comecei a chorar e a ficar com muito medo. - avisei aos amigos que estavam comigo na reunião que acontecia alguma coisa estranha em minha casa e que tinha alguém me alvejando insistentemente. mandei uma foto do meu braço. avisei ao meu amigo, que mora na rua paralela de cima. - meus amigos me orientaram a ligar para o 190: chamar a polícia. - a viatura chegou com dois policiais. - no mesmo momento, cinco amigos também chegaram e um cachorro. - estamos em distanciamento, em isolamento. sem contato físico e social por conta de uma pandemia, um inimigo invisível, um vírus, que, naquele instante, não representava mais ameaça. estávamos
juntos e vivos. recebi meus amigos com abraços e lágrimas. coração na garganta. o que sentia não servia para dizer. o que sentíamos. - estava em choque e a ferida latejava. - a polícia pediu que eu contasse o que aconteceu. - informou que fui atingida por balas de airsoft e me orientou a fazer o boletim de ocorrência no 23o distrito policial. - meus amigos subiram comigo e encontramos na sala, na varanda, no escritório e no meu quarto, cinco esferas metálicas. - liguei para a síndica para contar que eu e nós, moradores do prédio, estamos expostxs a algumx vizinhx agressorx do prédio da frente. - a síndica foi até o meu apartamento. - nós estávamos todos juntos. - hoje, dia 26, estou com medo de abrir as janelas de casa e ser vigiada, controlada, mirada, atingida. punida? - moro sozinha. sou mulher. elx sabe. - vim aqui registrar o que aconteceu. - sei qual é o condomínio e quero descobrir quem é essa pessoa. - ela não vai me matar. no dia 27 de março, com todas as portas e janelas ainda fechadas, penso e me pergunto o que foi aquele tiro que não me assassinou, não me cegou, não me calou. não se tratava de uma arma letal. tampouco se tratava de uma bala perdida ou de uma bola de papel. alguém queria me assustar, me intimidar, me oprimir, tirar uma onda, me agredir, me machucar. aquele tiro me invadiu, me atravessou, me violentou, me feriu. no braço, que me leva em direção ao mundo. no braço direito que carrego uma pulseira indígena, em preto e branco, cujo grafismo representa o desejo de longevidade. elxs atiraram numa casa que tem uma bandeira vermelha, uma floresta, uma rede Yanomami, objetos indígenas, livros, arte.
elxs atiraram numa casa onde acontecia um encontro potente de afeto, uma reunião de pesquisa, em que se discutia a produção do pensar e a busca pelo conhecimento, uma tarefa sem fim. elxs atiraram em alguém que estava estudando e pensando o mundo de forma crítica para reinventar o lugar das coisas. elxs atiraram numa mulher que tem voz. elxs atiraram em mim. elxs atiram em nós. nós resistiremos no mundo. somos floresta. somos comunidade. ar, água, terra, fogo. a minha arma é alma, utupë. é experimentar a vida que flui, a vida que está em mim. hoje eu sou uma outra. sou uma mulher que sente, experimenta, pensa e sonha, com um tiro no braço, com os movimentos e a marca que elxs ainda fazem na História e no meu corpo. respiro e medito: como é possível abrir um campo de liberdade com estratégias cada vez mais inteligentes e sensíveis, que não nos deixem tão vulneráveis? como vamos nos proteger dessa ignorância toda – visível e invisível? como serão as nossas experiências de afeto que nos lembram que estamos vivos, acontecimentos? que mundo pós-pandêmico somos capazes de reinventar quando a hecatombe terminar? quanto tempo ainda nos resta desse Brasil fundamentalista, egoísta e não esclarecido? até quando consumir o mundo e a vida, como possibilidades infinitas, nas chaves do progresso, da alienação e do “homem da mercadoria” – como diz Davi? qual será o novo léxico? e quais histórias contaremos para as crianças? seremos capazes de inventar “paraquedas coloridos” e “viver as experiências do silêncio e do desastre” – como diz Ailton, neste planeta azul que chamamos de ... terra? que Terra é essa e o que nós estamos fazendo aqui? eu ainda não abri as janelas, não vi o sol. mas em breve o farei para que entre um pedaço de céu, uma nuvem, um azul, um amarelo, um laranja, uma estrela, um clarão, um xapiri …
“a floresta está viva. só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. a terra ressecada ficará vazia e silenciosa. os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para bem longe. seus pais, os xamãs, não poderão mais chama-los e fazê-los dançar para nos proteger. não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. então, morreremos um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. todos os xamãs vão acabar morrendo. quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”. [A queda do céu, Davi Kopenawa Yanomami]
dedico este texto ao Davi. aos Yanomami Yek’wana e aos povos indígenas do Brasil. às mulheres. axs que sonham e acreditam “no caminho de amor”. axs que lutam com “ideias para adiar o fim do mundo”. axs amigxs, sempre, aqui e alhures.