Pandemia Crítica 131 - Nossa humanidade

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Nossa humanidade João Perci Schiavon


Homme, libre penseur! te crois tu seul pensant Dans ce monde où la vie éclate en toute chose? 1

Memória cósmica Ao que parece, nunca houve altura de visão suficiente para que a humanidade inteira se visse como uma só, desterritorializada pelo vírus e inserida, por consequência, numa dimensão planetária e cósmica. Eis-nos diante de um flagelo que dá a ver esse fatum (destino) incontornável. É como um sonho indígena, mais real que a realidade. A globalização, a cibernética ou o capitalismo mundial não haviam liberado essa percepção, muito pelo contrário, pulverizaram-na de um modo quase irreversível. Ouço aqui e ali, além de angústias e tristezas, declarações até mesmo alegres de que o confinamento e o caráter imprevisível do estado de coisas reabriram uma margem de escolha, uma disposição de relançar dados que não se experimentava há muito tempo. Respiros de uma esquecida humanidade? No final de 1888 Nietzsche escrevia: “Trago a guerra através de todos os acasos absurdos de povo, classe, raça, profissão, educação, cultura: uma guerra como que entre o levante e o declínio, entre a vontade de vida e a busca de vingança em relação à vida, entre retidão e pérfida mendacidade”2. Nunca deixou de ser esse o assunto dos assuntos nos últimos séculos, o tema difícil e incontornável, exigindo uma atenção crescente à medida que o tempo passa. Em escala planetária as durações são outras, demoram a ser sentidas ou nem chegam a sê-lo. Nietzsche diagnosticava o avanço do niilismo, “o mais estranho dos 1 “Homem, livre pensador, crês-te o único pensante/ Neste mundo onde a vida eclode em todas as coisas?”. Do poema de Gérard de Nerval, Vers dorés. 2 Nietzsche, F., Fragmentos póstumos: 1887-1889, volume VII, p. 568. RJ: Forense Universitária, 2012.


hóspedes”. Se a pandemia nos surpreende, não será mais que um sinal dos tempos, um alerta certamente mais violento que o emitido por algumas vozes, de Nietzsche a Kopenawa, pois já não atinge o pensamento, e sim o corpo. Não importa se é o meu corpo ou o seu, ou o dele, chinês ou negro, a nossa humanidade convulsiona. Impelida a pensar? Se ficamos aturdidos frente ao inelutável da pandemia, com seus ares de apocalipse bíblico, ficção cientifica e um número crescente de mortos, não será porque dormíamos, não fazendo muito diferença estar vivo ou morto? Para apreender o inelutável em seu devido tempo, em seu nascedouro, seria preciso um gênero de atenção e um grau de lucidez que se distanciam muito do que nos habituamos a considerar vida humana, uma tonalidade de alma, uma afinação elementar com o sol mais próxima, talvez, daquela dos metais, das pedras, das aves, das flores, das baleias. Correção do intelecto Nossa humanidade perdeu o contato com sua competência instintiva, seu refinamento selvagem? Uma correção do intelecto, ao modo espinosista, poderia reanimá-la? A epidemia não para de surpreender porque se engendra num tempo que não coincide com a atualidade de nossas pretensões e temores. Faço a equiparação com um lapso. Seria preciso estar lá onde, isto é, no tempo em que ele nasce, para corrigi-lo, como observava Lacan3, ou seja – para que a peste não sobreviesse. Mas, uma vez que não se está lá onde ele surge, ele mesmo será um ensaio de correção. O fator hostil, exterior, diferente de tudo o que se conheceu até agora, e que atinge os corpos feito o mais estranho dos hóspedes, é correlato esquivo, dirse-ia até um reflexo turvo, de uma força igualmente 3 Lacan, J., O seminário, Livro 23 – O sinthoma, p. 95. RJ: Zahar, 2007.


estranha, porém de atuação muito distinta. É uma espécie de equação feiticeira: a potência da qual se padece não é a mesma que se poderia exercer? Seria preciso então, para não sermos surpreendidos, uma atitude ética que atravessasse os reinos da natureza (“onde a vida eclode em todas as coisas”), uma atitude, portanto, que não nos é familiar, o que é igual a quase não exercida, com todas as consequências desse nãoexercício. As exigências de uma vida, no sentido maior que esse termo possa ter, não são quaisquer. Segue-se em frente, pisando de qualquer jeito, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir, até que um dia o chão se abre e tudo escurece. Uma vida não se concilia com a estupidez, e isso se demonstra mais cedo ou mais tarde. Vida e consciência, em seu ponto mais alto, ou, se preferirmos, em sua ponta mais avançada, são uma e mesma coisa. Nessa ponta avançada reside o segredo de nossa humanidade. Na década de 30 do século passado, depois de uma palestra na Sorbonne sobre o teatro da crueldade, na verdade uma encarnação da peste que afugentou da sala, antes do término, quase todos os espectadores, dizia Artaud a Anaís Nin: “Eles sempre querem ouvir falar de, querem ouvir uma conferência objetiva sobre ‘O Teatro e a Peste’ e eu quero lhes dar a própria experiência, a própria peste para que eles se aterrorizem e despertem. Não percebem que estão todos mortos. A morte deles é total, como uma surdez, uma cegueira. O que lhes mostrei foi a agonia. A minha, sim, e de todos os que vivem”4. Operando com meios distintos, Freud remontaria também à peste para sugerir uma transformação radical e necessária de nossas condições de avaliação. É espantoso, observava ele, como a grande maioria dos seres humanos ignora sua vida erótica, 4 Artaud, A., Escritos de Antonin Artaud, Seleção e notas de Cláudio Willer, p. 166. Porto Alegre: L&PM, 1983.


mal sendo tocada por ela a maior parte de sua existência, exceto, quando muito, por um aceno pálido, sintomático, na superfície dos fatos. Essa vida erótica – considerando que Eros é um deus que estima, avalia – feita de apreciações sobre o que é mais importante e o que não importa, o que vem em primeiro lugar e o que é secundário, continua desconhecida. A pandemia desencadeia assim problemas no plano da experiência humana e na ordem dos investimentos afetivos, muito próximos àqueles que movimentam um processo de análise, embora o faça em escala planetária e sem o concurso de uma escuta analítica. Enumero alguns desses vetores clínicos: 1) Uma tendência a involuir, em diferentes velocidades – por força de uma memória cósmica, tão remota quanto íntima – às condições originarias de uma avaliação pulsional. 2) A oportunidade de acolher iniciativas inusitadas do pensamento e da vida, que se autorizam, por assim dizer, de si (segundo a fórmula depurada de Lacan para a geração de um analista). As formações do inconsciente são exatamente assim, não recebem autorização de nenhuma instância social e de nenhum juízo em curso, seja moral, de conhecimento ou de existência. Surgem como o vento, sem pedir licença. Parecem confirmar, de maneira elíptica, o pensamento de Bergson de que a vida aspira aos atos livres. 3) Um saber do qual não se sabe, saber pulsional, que antecede a subjetividade e a interpela, constituindo seu futuro, lá onde ela deverá se exercer. 4) O imprevisto e o imprevisível que animam a análise, aliados à potência de um saber estrangeiro. Como estar à altura deste e daqueles? 5) Toda a análise é a exploração de um tempo inconsciente, não dominado, que mede o atual com sua medida extemporânea.


Aqui e agora Estariam dadas assim as condições para um exercício microfísico, micropolítico, algo onírico, de uma potência estranha não confinável. Enquanto se exerce, essa potência tende a intervir na realidade num tempo oportuno, segundo sua ciência insubmissa. Um tal exercício precisaria entrar em ressonância com outros, em rede, deflagrar-se em grupos, o que faria as vezes do analista. Sua extensão, porém, não importaria muito: um contágio micropolítico, em qualquer de seus estágios, curvaria a pandemia e não só ela. Toda uma cultura seria levada de roldão, como nos sonhos. Já existe até um nome para essa saída pragmática, feita de esferas experimentais: “revolução molecular”. Mas só existe nossa humanidade para encetá-la. Independentemente dos constrangimentos exteriores, é uma revolução ética que começa aqui e agora, conquanto estivesse em latência há séculos. Não adianta grande coisa acusar o capitalismo, o colonialismo ou o fascismo; é até bem cômodo destilar ódio e indignação, ao invés de proceder a uma “correção do intelecto” aqui e agora. O problema não é realmente o capitalismo, somos nós, nossa adesão profunda a ele, como souberam ver Foucault e Lacan, ao contrário do que sustenta Lazzarato, que critica esses autores porque teriam esvaziado o sentido da revolução5. Simplesmente detectaram quão superficial e sintomática é a pretensão revolucionária quando desconhece as micro-seduções do discurso capitalista e os micro-fascismos inconscientes. É preciso fazer frente real a esse conjunto de males, de modo meticuloso e sóbrio. É preciso tempo para tratar – especialmente no sentido clínico – de “uma vingança contra a vida” que não começou ontem. Uma altura 5 Lazzarato, M., Fascismo ou revolução? p. 53. São Paulo: n-1 edições, 2019.


ética é requerida, indestrutível, uma retidão, como escrevia Nietzsche, que resista à pérfida mendacidade, não só em vista do momento atual, ainda que seja urgente, mas dos próximos séculos. Contar com o tempo, dispor-se à paciência, como recomenda André Lepecki (no texto Movimento na pausa, desta “pandemia crítica”), não são apenas orientações a uma não ação; para uma ética do real, constituem a mais decisiva das ações, a não sujeitável. Uma ética para o fim e o início dos tempos Não há tempo para desistir tampouco, conforme a advertência de Krishna a Arjuna. E é mesmo um combate ao estilo do Bhagavad Gîta, um combate em nome do pensamento. Que ética extemporânea lhe valeria? Talvez aquela enunciada por Nietzsche, a fim de dar um sentido prático ao eterno retorno: “Se, em tudo o que quiser fazer, você começar por se perguntar: é certo que eu queira fazer isso um número infinito de vezes?; isto será para você o centro de gravidade mais firme”6. Ou a declaração de Rimbaud em Uma estação no inferno: “sou de raça inferior por toda eternidade”. Nunca uma declaração ética desterritorializou tanto o pensamento. Nenhuma proposição foi tão altiva em nome da vida. Se começarmos por ela ou, como queria D. H. Lawrence em seu Apocalipse, pelo sol, o resto – que interessa – virá lentamente... João Perci Schiavon, psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, autor de Pragmatismo Pulsional - Clínica Psicanalítica (n-1 edições, 2019). Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. 6 Citado em Deleuze, G., Nietzsche e a filosofia, p. 90. São Paulo: n-1 edições, 2018.


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