Pandemia Crítica 135 - Estamos entrando na era da extinção

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estamos entrando na era da extin¢ão Franco “Bifo” Berardi Tradução Damian Kraus


− Então era essa a rota de saída do “cadáver do capitalismo”? Uma pandemia? − Pois é. Ela veio de uma dimensão biológica, circulou pela órbita midiática e se inseriu na esfera psíquica − mudando a perspectiva. Mas sair do ‘cadáver’ não é suficiente. − Precisa limpar? − Está na hora de inventar formas de sobreviver que privilegiem o útil em vez da acumulação do (abstrato) valor monetário. Penso que saímos da época em que, para uma parte da sociedade, era possível e desejável a expansão, e estamos entrando na época da extinção. − Por favor, chega de notícia ruim! − Para perseguir a expansão, o capitalismo começou a destruir em massa os recursos físicos do planeta e as energias nervosas dos humanos. Deitou as bases da extinção. Quando a depressão começa a produzir efeitos políticos de agressividade, inimizade e medo, a extinção se torna provável. − Então não tem jeito mesmo? − Não, se não conseguirmos permanecer no exterior do ‘cadáver’, se aceitarmos voltar à normalidade do mercado, do capitalismo, da aceleração psicótica. A condição pandêmica – agregada às mudanças climáticas – se configura como o momento de redefinir o horizonte da economia, das relações sociais, da própria intimidade. − Por onde deve passar a felicidade, para além da ideia de crescimento?


− ‘Felicidade’ e ‘crescimento’ são termos incompatíveis. Eu proponho esquecer palavras complicadas como ‘felicidade’. Posso reformular a pergunta? − Pode! − A pergunta é: por onde irá passar a satisfação das necessidades básicas da comunidade? − E qual é a resposta? − Vai passar pelo que já existe: o nosso saber, a nossa tecnologia e a nossa potência de produção, porém focados no interesse de todos. Nos próximos meses e anos seremos obrigados a escolher entre a miséria crescente e a redistribuição das riquezas existentes. Se uma minoria exploradora quiser manter seus privilégios, o que virá são anos de guerra civil por toda parte na Terra. Como evitar isso? A igualdade! − O que o senhor entende por ‘igualdade’? − Eu não estou falando de uma renúncia, mas de uma percepção frugal da fruição e da riqueza. A ‘riqueza’ é o prazer das coisas, dos acontecimentos e, sobretudo, é o tempo para gozar do que temos. A reconquista do tempo – que, paradoxalmente, a COVID tem possibilitado – é crucial. Precisamos ser capazes de conjugar segurança e sensualidade. − O senhor costumava fazer um convite para “reconhecer o prazer no corpo do outro”. Mas, já está vendo...


− Quando eu penso no futuro, o mais difícil de imaginar é como perceberemos o corpo do outro na rua, no café, na cama. É provável que saiamos do distanciamento social com um medo instintivo do corpo do outro, dos seus lábios. − Como aconteceu nos anos 1980, por causa da Aids. − De fato, foi uma bomba psíquica. Mas agora também pode ser que se manifeste um movimento poderoso de aproximação e de sensualidade, já que a dimensão on-line deve se tornar uma lembrança de uma época angustiante, como um sintoma da doença. Vejo aí o germe de um verdadeiro movimento cultural, estético e social. − Os afetos, o trabalho, a escola e o lazer, no momento, passam pelas telas. − A tela é o local da segurança, mas também o local da anestesia, da ablação da sensualidade. Podemos imaginar uma humanidade que se liberte definitivamente da ternura física, da sedução dos olhos, dos lábios, das mãos que se tocam delicadamente? − O senhor pode? − Eu não consigo imaginar, ponto. Se imaginar, é a pior das distopias: um mundo eficiente, exato, perfeitamente compatível com a matemática financeira, porém morto. Eu me afundaria. − O senhor pinta quando se afunda. Qual motivo vem se repetindo nestes meses?


− Tem uma imagem que retorna na minha cabeça e em minhas colagens: o papa Francisco lançando duas pombas brancas para simbolizar o amor, a paz, a aliança com Deus. Um corvo preto se aproxima da pomba e a devora. Eu sou ateu, mas cada vez que pinto essa imagem digo para mim que o acaso fornece o chão para fantasias estéticas aterrorizantes. Publicado em Lobo Suelto em 22 junho de 2020 Fonte: El Periódico Franco “Bifo” Berardi é pesquisador, escritor e ativista. Com foco na comunicação em rede, na criatividade social, na relação entre tecnologia e subjetividade, foi ativo nas rádios livres na Itália e engajado em vários movimentos anticapitalistas nas últimas décadas. Publicou, entre outros, A fábrica da infelicidade (DPeA), Asfixia (Ubu) e Depois do futuro (Ubu).


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