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Entrevista com Achille Mbembe tradução Ana Cláudia Holanda revisão Haroldo Saboia
O último livro de Achille Mbembe, Brutalisme1, foi publicado pela Éditions La Découverte na França, apenas algumas semanas antes da pandemia do Covid-19 atingir a Europa Ocidental. Alguns meses antes, o teórico político, indiscutivelmente o intelectual mais influente da África, recebeu um passaporte diplomático do presidente do Senegal, Macky Sall. Por vê-lo como dissidente, o país natal de Mbembe, Camarões, decidiu não renovar o passaporte comum que ele carregava desde o nascimento. Mbembe leciona na Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, desde 2001. No livro, ele reformula a noção de “Brutalismo” extraída da arquitetura para descrever uma situação contemporânea em que a essência da humanidade é transformada ao mesmo tempo em que sua própria existência é ameaçada. Ele também discute epistemologias ocidentais e não ocidentais para liberar as energias e ideias que podem ajudar a confrontar o sentimento contemporâneo de vertigem. Ademais, nesta entrevista à Mediapart, uma revista on-line francesa independente, Mbembe responde às ansiedades expressas em muitas colunas de jornais da França concernentes aos discursos pós-coloniais e decoloniais, bem como às recentes reconfigurações nas políticas de identidade. Joseph Confavreux: Este livro é dedicado aos seus “três países (Camarões, África do Sul e Senegal), em partes equivalentes”. Como cada um deles contribuiu para o seu livro e como cada um deles se saiu? Achille Mbembe: Sem dúvida, o que pior sai disso é Camarões, que trato em termos pouco dissimulados no capítulo intitulado “A Comunidade dos Cativos”. A África do Sul também está presente em muitas passagens do livro, especialmente aquelas que dedico à questão tanto crucial quanto fútil da identidade. O Senegal está presente nas passagens que falam sobre o que chamo de declosão [revelação] do mundo – ou seja, sobre a possibilidade de um mundo sem fronteiras e desbloqueado de limites. Mas, para além destes três territórios nacionais, também procurei responder às “grandes questões” do nosso tempo e refletir sobre a política da vida – coisas vivas e seres vivos – hoje. No início do século 21, enquanto a Terra não para de queimar e alguns buscam forçar o projeto de uma extensão infinita do capital, as sociedades humanas, os seres vivos de modo geral, foram reconfigurados pelo rígido padrão da tecnologia digital. Velhos debates sobre a natureza humana ressurgiram e eu queria participar deles – a partir de minhas próprias vinculações à África, obviamente, mas também da posição de alguém que cruzou diversas vezes o mundo nos últimos 25 anos. 1 A sair em português pela n-1 edições.
Confavreux: Em seu livro, também encontramos seus dois países adotivos, a França e os Estados Unidos. Mbembe: Não podemos contorná-los, pois estamos condenados a lutar simultaneamente com e contra eles. Mas, além de todas essas entidades geo-nacionais, eu queria refletir também sobre o futuro da vida e o futuro da razão em um período de nossa história caracterizado por uma escalada tecnológica irreversível, ou pelo que podemos chamar de uma “virada computacional” em nossas vidas – a conversão da produção material em produção digital e a transformação da economia em neurobiologia. Estamos à beira de uma ruptura sem precedentes. O processo em andamento corre o risco de levar ao nascimento de uma humanidade biossintética suscetível à codificação. Tal humanidade tem pouco a ver com os indivíduos de carne e osso dotados de razão que herdamos da chamada Era do Iluminismo. Esse download de vivos e não vivos, ou mesmo da própria consciência, em formatos cada vez mais artificiais e dispositivos cada vez mais desmaterializados – e isso projetado no cenário da extensão infinita do mercado e da combustão do planeta – fundamentalmente coloca de volta o questionamento sobre a forma de organizar nossa vida comum conhecida como democracia. Em meio a esse tumulto, muitos não têm mais medo de falar em “democracias iliberais” ou “democracias autoritárias”. Para mim, o termo “Brutalismo” sintetiza simultaneamente esse processo e a medida de força que o advento dessa nova figura do humano requer. Confavreux: Em que sentido estamos vendo figuras sem precedentes do humano aparecerem? Mbembe: Desde o início dos tempos modernos, acreditamos que nossa felicidade, nossa liberdade e nossa boa saúde exigiam uma separação nítida entre o mundo dos humanos e o mundo dos objetos. As pessoas humanas, pensamos, não podem ser tratadas como objetos ou ferramentas. A maior parte das grandes lutas emancipatórias travadas nos últimos séculos foram motivadas pelo sonho de libertar a humanidade do universo da matéria, dos objetos e da natureza, em uma separação nítida entre nossa espécie e todo o resto. A alienação, ao contrário, consistia na fusão do sujeito humano e do objeto. Hoje, essa separação entre o sujeito humano e o mundo dos objetos animados e inanimados não está mais inteiramente na base da ideia da libertação humana e do universalismo. Agora que se inverteu a relação entre meios e fins, o que mais prevalece é a ideia de que o humano é produto da tecnologia, ou mesmo um simples agente econômico
que se pode usar como bem entender. Além disso, supõe-se que seus desejos e suas expectativas podem ser antecipadas, seus comportamentos fixados e seus traços fundamentais esculpidos. Hoje, a crença é que tudo, incluindo a própria consciência, pode ser reduzido à matéria. Em suma, ao que parece, não existe mais nada que não possa ser organizado por manufaturas ou transformado em manufatura em um mundo e em um universo que nada mais são do que uma vasta banca de mercado. Um caminho que exploro constantemente neste livro é o do estatuto do humano e do objeto nessa nova religião secular. Para isso, recorro a certas tradições ditas não ocidentais, em particular àquelas metafísicas às vezes rejeitadas por serem consideradas “animistas”. Na verdade, a metafísica africana pré-colonial, bem como a metafísica ameríndia, nos permitem desdramatizar a relação homem-objeto. Isso é especialmente possível nessas metafísicas porque elas são menos dicotômicas do que as elaboradas no Ocidente, com suas clivagens entre natureza e cultura, sujeito e objeto, humano e não-humano. No entanto, o retorno a essas velhas figuras do animismo não é isento de riscos, especialmente neste momento atual em que a razão se encontra sob cerco e é absolutamente imperativo que aprimoremos nossas faculdades críticas. A crítica da razão deve, portanto, ser distinguida de uma guerra contra a razão; assim é, embora muitas lutas políticas contemporâneas busquem reabilitar os afetos, a experiência pessoal, os sentimentos e as emoções. A maioria das lutas identitárias que animam a política hoje fazem parte dessa configuração. A meu ver, elas nos desviarão dos problemas essenciais que enfrentamos se visarem apenas demarcar fronteiras e se não forem explicitamente articuladas a um projeto mais amplo e planetário: a saber, o de reparar o próprio mundo. Confavreux: Lutas identitárias surgiram de minorias, mas foram reformuladas pela extrema direita – muitas vezes em detrimento dessas mesmas minorias. Como você vê a política de identidade? Mbembe: As lutas identitárias não são mais monopólio das minorias. Na verdade, eu questionaria se alguma vez o foram. Na Europa, em particular, as pessoas da chamada origem europeia sempre lucraram com os salários da autoctonia. Toda a história do racismo se reduz a uma batalha permanente para consolidar essa vantagem imerecida. Houve um momento na história recente em que as lutas pela identidade fizeram parte das lutas gerais pela emancipação humana. Esse foi o caso das lutas pela abolição da escravidão e do colonialismo, das lutas pela libertação das mulheres, das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e das lutas contra o apartheid na África do Sul. O objetivo final de tais lutas não era consagrar diferenças. Foram, antes de mais nada, lutas pelo reconhecimento do contingente maior, de cada uma delas e delas em conjunto, na
composição dos humanos entre outros humanos que foram eles também convocados para construir um mundo em que todos pudessem habitar. O chamado era para erigir algo que pudesse ser partilhado da forma mais equitativa possível, ou seja, a busca era por um “algo em comum” original e fundamental. Essas lutas foram, portanto, dotadas de um grande coeficiente de universalismo – isto, seguramente, se nos referimos a um “universal” que tem por objetivo a criação de um mundo comum e não de um mundo para o benefício de alguns poucos ou ainda um mundo feito independentemente de, apesar de ou contra outros. Por esta razão, os debates em curso na França sobre as noções de universal e universalismo, comunalismo ou separatismo são uma enorme armadilha. Frequentemente, essas categorias são mobilizadas com o objetivo mal disfarçado de estigmatizar as minorias e ocultar o racismo sistêmico. O mesmo vale para as controvérsias continuamente animadas em torno das teorias pós-coloniais e decoloniais. Para aqueles que se deram ao trabalho de ler textos pós-coloniais, que não são exatamente a mesma coisa que o discurso decolonial, é óbvio que a maioria deles está muito distante de uma celebração da política de identidade. Na verdade, paradoxalmente, as chamadas teorias pós-coloniais deveriam ser interpretadas como os últimos avatares de uma certa tradição do humanismo ocidental: um humanismo de natureza crítica e inclusiva. Esses discursos defendem frequentemente o cosmopolitismo e se opõem diretamente à autoctonia. A intenção deles é justamente estender esse humanismo crítico a uma escala planetária, negando que deva permanecer privilégio apenas do Ocidente. Esta é a razão pela qual, embora eu não me afirme ser um teórico pós-colonial, fico surpreso que um grupo aqui na França tente caracterizar essas teorias como um discurso particularista que clama pela separação e se opõe ao universalismo. Confavreux: Que diferença você vê entre o pós-colonial e o decolonial? Mbembe: As correntes pós-coloniais pedem um mundo cosmopolita e híbrido. E não é por acaso que esse discurso muitas vezes foi elaborado por exilados, por migrantes, por apátridas como Edward Said, nômades do subcontinente indiano como Gayatri Spivak e Dipesh Chakrabarty, teóricos do “todo-mundo” como Édouard Glissant2, ou expoentes de um “humanismo planetário” como Paul Gilroy. Todos se opuseram a qualquer forma de essencialismo. Com exceção da noção de “essencialismo estratégico” de Spivak, dificilmente encontraremos uma celebração do particularismo, do comunalismo ou da autoctonia entre qualquer um dos outros. 2 O livro Tratado do Todo-Mundo, de Edouard Glissant, sairá em português pela n-1 edições.
O que os une é o interesse pelo acontecimento histórico que foi o encontro entre mundos heterogêneos, encontro este ocorrido no curso do tráfico de escravos, da colonização, do comércio, da migração e das movimentações populacionais, inclusive forçadas, do evangelismo, da circulação de formas e de ideias. As correntes pós-coloniais interrogaram o que esse encontro, em suas muitas modalidades, havia produzido: a parcela de reinvenção, de ajustes e de recomposições que isso exigiu de todos os protagonistas, o jogo de ambivalências, o mimetismo, o hibridismo e as resistências que isso produziu. Creio que o discurso decolonial, especialmente como ele foi teorizado pelos latino-americanos, é algo um pouco diferente. Propõe em julgamento da “razão ocidental”, de suas formas históricas de predação e do impulso genocida inerente ao colonialismo moderno. O que os teóricos decoloniais chamam de “poder colonial” não se refere apenas aos mecanismos de exploração e predação de corpos, recursos naturais e seres vivos. Também se refere à falsa crença segundo a qual só existe um conhecimento, um único local de produção da verdade, um universal e, fora disso, há apenas superstições. O discurso decolonial quer destruir esse tipo de monismo e derrubar esse projeto de demolição dos diferentes saberes, práticas e modos de existência. Não quero colocar as teorias pós-coloniais e decoloniais em completa oposição, uma vez que elas estão, de fato, em diálogo uma com a outra. Mas devemos identificar as linhas de tensão que existem e ver que elas não partem dos mesmos conceitos e categorias, que não elaboram os mesmos argumentos e talvez não tenham os mesmos objetivos políticos. Confavreux: Seremos capazes de escapar de uma configuração política na qual as questões de identidade parecem ter se tornado a única coordenada? Mbembe: Não devemos descartar radicalmente a chamada política de identidade. Mas em muitos aspectos, as lutas identitárias de nossos tempos são o novo ópio do povo, tanto entre as elites quanto entre as massas. Além disso, o neoliberalismo é muito capaz de cooptá-las. Essas lutas identitárias fazem parte de duas das lógicas definidoras da era atual. A primeira lógica é regida por um desejo por limites, que anda de mãos dadas com o que pode parecer uma busca louvável por um retorno a si mesmo. Mas esta é uma identidade fetichizada, uma identidade consumível, totalmente ligada aos próprios sonhos, sentimentos, emoções, corpos e projetada sobre o cenário de um narcisismo massificado, transmitido pelas redes sociais e por tecnologias digitais. Essa imagem da identidade é uma engrenagem importante no projeto de expansão infinita dos mercados, nesta era dominada pelo reflexo da quantidade – na qual a venda de imagens através de imagens parece ter se tornado o sentido último da vida.
A segunda lógica é marcada por um desejo profundo de partição, separatismo e de secessão. A propensão à endogamia é uma característica poderosa da nossa era. Muitos não querem mais viver fora de suas próprias bolhas e câmaras de ressonância; entre si e com pessoas como eles. A caça às bruxas, a fabricação incessante de indignação, várias práticas de excomunhão e de quarentena estão de volta. Isso é fácil de ver e de ouvir na paisagem carcerária que cada vez mais caracteriza o planeta: a segmentação e a fragmentação territorial, os acampamentos, os enclaves, e todos os mecanismos destinados a separar as pessoas e a cortar os laços que as prendem. Com isso, não pretendo sugerir qualquer simetria entre as “identidades” sustentadas como bandeira pela direita radicalizada e aquelas em que as minorias se reúnem, às vezes buscando defender outras coisas. Mas temo que, no contexto citado, as variedades tóxicas de políticas de identidade efetivamente impeçam a formação das coalizões necessárias para enfrentar juntos os grandes desafios planetários. Confavreux: Até que ponto esse desejo de secessão – que não é exatamente a mesma coisa que o desejo de dominação – transformou a maneira como pensamos a política contemporânea? Mbembe: Novos mecanismos de dominação emergem constantemente. A maioria é abstrata e desmaterializada, mesmo que a matéria, os corpos e os nervos ainda sejam seus alvos principais. Predação, drenagem e extração continuam sendo a regra, assim como o recurso à força bruta. Mas a nova dominação também opera implicitamente, através da proliferação de meios de vigilância, do uso de engenhosidade tecnológica, das práticas que colocam cada um de nós em competição com todos os outros e da revisão das leis a fim de estender o alcance do capital. Hoje, a dominação se dá pelo esgotamento das faculdades críticas, dos imaginários que seriam necessários à refundação de um projeto de vida e de um viver em escala planetária. É isso que está em curso e a que chamo de Brutalismo. Não é espontâneo, é planejado e calculado. Diante disso, muitos continuam resistindo. Mas acho que duas respostas em particular são impressionantes. A primeira é o reflexo de fugir. Em algumas partes do mundo, a fuga parece um verdadeiro movimento de massa. Grandes migrações e deserções são armas potenciais. Os poderosos do mundo entenderam bem isso e estão tentando combater esses fenômenos de deserção aumentando o número de acampamentos e investindo em uma distribuição desigual da capacidade de se mover e de viajar. A segunda resposta é o reflexo da secessão. Se os ricos pudessem emigrar para outros planetas e estabelecer novas colônias nas quais nenhum pobre fosse admitido, eles o
fariam. Para os poderosos, a principal obsessão agora é como eles podem se livrar daqueles que eles pensam que não são nada e que não servem para nada. Este desejo de secessão marca uma ruptura em relação aos períodos anteriores caracterizados pela conquista. O que Carl Schmitt chamou de “apreensão de terras” é hoje sucedido pela construção de fortificações. A questão política clássica do período moderno foi construída em torno do direito de apropriação, do direito de conquista, de ocupação e de colonização. Soma-se a isso hoje, portanto, outra pergunta: que destino reservar para aqueles que nada têm e que são, por isso mesmo, considerados nada? O grande problema contemporâneo é o que fazer com aqueles considerados nada, ou pouco, e cuja figura contemporânea é a do migrante. Que estatuto jurídico, que mecanismo, que tratamento deve ser dado àqueles que estão, na prática, reduzidos ao nível de mero excedente? E, finalmente, a quem pertence o mundo? Essa é a questão política essencial colocada na era do que chamo de “Brutalismo”. Confavreux: Como essa metáfora arquitetônica nos ajuda a pensar o momento presente? Mbembe: Este termo refere-se a uma forma de distribuir a força, de aplicá-la aos materiais, em particular ao concreto, para dar-lhe uma forma que esperamos que dure muito tempo, senão que faça parte do que nunca poderá ser destruído. É, portanto, uma operação de destruição calculada e planejada, cujo objetivo final é construir o indestrutível. Assim, fora da arquitetura, o conceito de Brutalismo pode ser entendido como um forçamento de corpos que são tratados como concretos, sujeitando-os a uma combinação de pressões. O Brutalismo é o programa que consiste em reduzir tudo o que existe à categoria de objetos e de matéria e integrá-los à esfera do cálculo. Isso é funcionalismo integral, é uma forma de organizar o recurso à força. Reinterpretando-o sob esta luz, o conceito de Brutalismo me permite interrogar novamente não tanto a já amplamente documentada sociologia da violência na era neoliberal, mas sim compreender a dinâmica do momento contemporâneo. A meu ver, este é um momento caracterizado pela escalada da tecnologia, pela a transformação da economia em neurobiologia e pelo surgimento de corpos digitais feitos de metal e de outras próteses – que também são engrenagens do capital –, assim como de carne. O termo também pode trazer à mente as análises do historiador germano-americano George L. Mosse sobre a “brutalização” das sociedades europeias, entre a Grande Guerra e os regimes totalitários. Para resumir, o raciocínio de Mosse era que a lógica da guerra se estendeu para os tempos de paz, resultando no fascismo.
Confavreux: Quando você fala de “Brutalismo” contemporâneo, isso é uma forma de traçar um paralelo com uma história que consistiu na banalização da violência, no ressurgimento do nacionalismo e de sua rápida e espiralada queda? Mbembe: Não. Decerto que eu li os textos de Mosse, de [Ernst] Jünger e de outros, mas também li obras que partiam da hipótese inversa, e que sustentavam que a história das sociedades europeias era uma longa narrativa de “pacificação”. Ou, como disse Norbert Elias, do “processo civilizatório”. Nessa visão, mesmo que a violência não tenha sido totalmente erradicada, ela foi domesticada e sublimada. Devemos também mencionar uma terceira família de considerações, que sublinham que esse processo de “civilização” só foi possível porque o potencial de violência interno das sociedades europeias foi direcionado para outros lugares, como as colônias. Minha intenção não é repetir nenhuma dessas três correntes de análise. Pelo contrário, é apreender um momento sem precedentes do nosso presente que é marcado, acima de tudo, por uma aceleração tecnológica inédita na história da humanidade. Essa aceleração não traz apenas uma implosão de nossas concepções de tempo. Delineia implicitamente o advento de um novo regime de historicidade, que chamo de “cronofágico”, porque devora o tempo em geral e em particular o futuro, ao mesmo tempo em que constrói uma amnésia sistemática. O tempo como tal é substituído por fluxo e ruído. Essas tecnologias também expandiram as fronteiras da velocidade, tornando-as um complemento do poder e um recurso-chave nas lutas pela soberania. Além disso, neste novo regime de historicidade, já não há nada de humano que não seja também consumível, isto é, que escape ao domínio do cálculo. Além disso, não há mais nada humano que não tenha um duplo digital. O capital agora busca estender seu domínio não apenas para o fundo do oceano ou para as estrelas, mas também para átomos, células e neurônios. Confavreux: Em que sentido a África, como o que você chama de uma “reserva de força (puissance) e de força em reserva”, constitui, se não a panaceia, pelo menos um espaço de possibilidades para o futuro da humanidade que hoje parece tão frágil? Mbembe: Em primeiro lugar, por sua característica física, pela sua monumentalidade, que continua a me fascinar. É um continente gigantesco, e seria difícil me convencer de que essa extensão, esse gigantismo, o fato de ocupar um lugar tão eminente na massa planetária, que tudo isso não significa nada. Mesmo que eu não saiba o que essa extensão realmente significa, eu acho intrigante. Ao falar dessa característica física, também gostaria de me referir ao que a África contém ou que nos reserva. Quando digo isso, certamente, me refiro aos humanos. Seu número
continuará crescendo pelo menos até o final deste século e é sem dúvida aqui que as mudanças mais fenomenais ocorrerão. A humanidade viva, em sua multiplicidade e em seu caráter mais multicolorido, terá uma de suas mais vastas moradas na África. Falar do que a África contém não é, porém, apenas falar das diferentes espécies que povoam sua superfície, mas também pensar em seus rios, florestas, montanhas, sol, savanas, desertos que não estão de todo desertos e tudo o que encontramos no seu subsolo e no fundo dos oceanos que a rodeiam: minerais raros, pedras preciosas... Há também, o mais importante: uma vasta reserva de elementos, muitos dos quais permanecem desconhecidos, forças críticas para a história futura da vida na Terra, na era do Antropoceno. O colossal caráter do que ainda não sabemos neste continente, daquilo que ainda escapa ao cálculo e à apropriação, é o segundo fator importante que me leva a pensar que a África representa uma reserva de força para toda a Terra. Recentemente, eu estive em Kinshasa e, antes de ir embora, passei duas horas observando o fluxo do rio Congo. Foi impressionante o grande volume de água e o seu poder, não sabemos há quanto tempo eles existem e quanto tempo vão durar. Mas enquanto eu contemplava o rio, era difícil para mim não sentir, em minha própria carne, a agitação turbulenta de forças e energias indomadas, aquelas que talvez nem mesmo possam ser contidas. Para mim, a África é isso. A grande questão é como liberar essas energias, esses depósitos de vida, depósitos de uma vida de mil facetas, para o bem dos africanos, mas também para o bem de toda a humanidade. O que precisamos é imaginar novos modelos de vida e de vivência que permitam a refundação de uma política que se situa fora da religião do mercado e de seu corolário no hedonismo do consumo. Talvez aqui a metafísica africana tenha algo a oferecer, outro ponto de partida, advindo da certeza de que o humano não é apenas matéria. No ser humano existe uma dimensão incalculável, inadequada, que não pertence apenas ao reino dos processos físico-químicos. Em suma, é uma dimensão que você não pode baixar em dispositivos artificiais. É por isso que devemos tratar a idolatria da tecnologia (tecnolatria, ou culto da tecnologia) e a colapsologia como gêmeas. Um pouso mais suave não é a única opção disponível para nós. Quando olhamos para um conjunto mais amplo de arquivos e nos baseamos em um conjunto mais amplo de materiais, encontramos experiências de pessoas que foram capazes de criar vida a partir de situações de sobrevivência objetivamente impossíveis. Isso não oferece qualquer garantia em termos de futuro. Mas, pelo menos, nos lembra que tudo está em nossas mãos. E isso é fundamental em um momento em que o sentimento predominante é o de que agora tudo está saindo do nosso controle. •