Pandemia Crítica 145 - Contra o terricídio

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Contra o terricídio Arturo Escobar tradução Maria Cristina Ibarra Hernandez


Palestra principal da Participatory Design Conference 2020 Manizales (Colômbia) 19.06.2020 (...) O tema do congresso é participações “outras”, entre aspas, acrescentei dois outros termos entre aspas: “relacional” e “comunalidade”. Então, o que farei na apresentação é entrelaçar esses três termos. (...) O resumo da palestra é muito simples: gostaria de elaborar uma noção de design participativo que chamarei de ‘relacional’. “Relacional?” vamos ver o que é. E como uma forma de trabalhar essa noção de participação ‘outra’, de ir além das formas domesticadas e superficiais de participação, nos lemas do desenvolvimento do design. Principalmente, vinculando-o a uma noção crescente na América Latina, que é a noção de ‘comunalidade’, um fato humano fundamental do ser comunal humano e com o mais-que-humano, mas também com uma nova visão de ver a vida em termos das relações que a sustentam: o que chamamos de interdependência radical ou relacionalidade. Para chegar lá, sem dúvida, teremos que passar por uma consideração de epistemologia, então, terei uma seção, na apresentação, sobre o que podemos chamar em termos gerais de ‘epistemologias colaborativas’, isto é, se queremos uma participação ‘outra’, precisamos de uma ‘epistemologia outra’ ou outras epistemologias, que vão além da visão entre sujeito e objeto, entre o indivíduo que investiga e a comunidade que tem saberes e experiências, mas não investiga. Vamos ver uma série de propostas nesse nível. Começamos olhando um pouco para o papel do design e o lugar do design na modernidade. Em segundo lugar, tentarei dar uma visão geral muito breve do que são os conceitos de interdependência e comunalidade e as implicações que isso tem para repensar a participação. Num terceiro momento, faremos referência às epistemologias da participação, aquelas epistemologias ‘outras’ que mencionei e, por fim, uma pequena conclusão sobre onde estamos, então, com o design participativo. O que é design e o que está em jogo no design? Uma das coisas que mais me chama a atenção no design hoje é que há uma consciência crescente, em certos aspectos do mundo do design, de que o design é um domínio ou espaço muito importante para a produção de vida e para a criação de mundos. O design é sobre a criação de


mundos, o design cria. Por meio do design, criamos os mundos em que vivemos, e esses mundos, por sua vez, também nos projetam. Não temos muita consciência disso, mas cada vez mais, no mundo do design, há uma grande consciência de que é isso que está acontecendo. Portanto, estamos falando de que o design tem uma dimensão ontológica. Que ao projetar ferramentas, uma casa, uma cidade, uma tecnologia digital, uma representação, uma narrativa, estamos projetando formas de ser e formas de existir. Em termos deste quadrante que se estabeleceu na modernidade, que se cristalizou no final do século XVIII, no Norte da Europa, a partir destas duas divisões entre cultura / natureza, entre humanos e não humanos e entre Ocidente e não Ocidente, e que aí todas as ciências e modos de conhecimento sempre estiveram localizados, mas que é uma estrutura, uma episteme da modernidade, digamos, que está sempre sendo subvertida de fora por um pensamento de fora, pela própria Terra, mas também subvertida de dentro por outras formas de pensar de dentro da própria modernidade e aí podemos localizar “outros designs” e “designs de outro modo”. Outra forma de representar isso é que estamos realmente presos ... por muitas crenças fortes que a modernidade nos deu: a crença de que somos indivíduos separados, indivíduos autônomos; a crença de que temos uma economia separada de todo o resto; a crença de que aqui existe uma verdade que a ciência nos dá; a crença em apenas um mundo objetivo e real. Isso nos prendeu no que podemos chamar de ciclo tóxico da existência cotidiana. Existimos como indivíduos, nos criamos a nós mesmos, nos constituímos em mercados com uma única verdade, um único mundo objetivo e real. Portanto, a tarefa é como reconectar aquelas coisas que a modernidade separou e é realmente o que o design está problematizando hoje. Parece-me um momento muito auspicioso e muito interessante no design. Há uma conversa intensa, cada vez mais ... digamos ... interepistêmica, transnacional, entre novas tendências do design: no Norte Global e no Sul Global. No Norte Global, por exemplo, temos essas ênfases em: design para inovação social, design para as transições, justiça em design, design ontológico. No Sul Global, temos todo o trabalho de design descolonial e descolonização do design, designs do sul, alter-design, design autônomo, etc., etc ... criando, então, um campo que chamo de ‘estudos transnacionais críticos de design’, o que é muito interessante, muito esperançoso. Algumas das tendências no design: então, sabemos, a começar pelo Norte Global, que o design surge como um domínio para a produção da vida, para pensar sobre o que é a vida e como estamos criando mundos. Portanto, existem todos esses tipos de novas ideias e tendências, algumas delas não são mais tão novas: design para inovação


social, colaboração, co-design, design para as transições, design autônomo e um bom resumo do que está acontecendo hoje foi dado por Ezio Manzini e Virginia Tassinari na conversação que tivemos ontem, sobre a política e a filosofia da natureza. Eles se perguntam se podemos ter uma cultura e uma prática de design que não seja mais antropocêntrica, mas que abrace a ideia de interdependência radical e, ao mesmo tempo, tenha uma vontade pragmática de operar na realidade do mundo contemporâneo. Parece-me que essa pergunta é uma excelente pergunta, com um ponto de partida para o que vivemos hoje no mundo do design. No Sul Global, a Colômbia, de certa forma, é um centro de produção dessas ideias, em algumas das escolas de design: designs ‘outros’, designs do sul, alter-design, design para as transições, etc., etc. Alfredo Gutiérrez, uma das pessoas que mais está avançando neste tipo de pensamento, diz algo que achei muito interessante. Diz ele: “perguntoume sobre designs que não são, estão abaixo, ao lado, para além da herança europeia e que são chamados de outra forma”. Em outras palavras, o que existe além do design, que tem implicações para o design, mas que não podemos chamar de design ou que nunca chamamos de design. Agora, como explicar essa ideia de interdependência ou relacionalidade? Gosto de apelar para imagens e vou usar várias imagens da Vanessa Roa, filha da grande ambientalista colombiana, Tatiana Roa, que são imagens lindas, que ilustram a relacionalidade. Por exemplo, estou fascinado por esta (imagem), por como nos diz, como somos seres-terra e somos seres-pluriverso, somos uns corpos-terra. Surgimos de uma complexa rede de relações entre o humano e o mais-que-humano e que, então, o princípio que chamamos de relacionalidade emerge de uma forma ou de outra para entender a realidade. Também o chamamos de ‘interdependência radical’, no sentido de que não apenas tudo está relacionado a tudo, mas tudo depende de que todo o resto exista. Para que algo exista, todo o resto deve existir. Sempre vivemos contra essa percepção, com todas as separações e binários da modernidade. Aqui, algumas outras representações: uma pintora traz-nos esta bela gravura da obra de Lynn Margulis: “Endossimbiose”. Para Margulis, há três bilhões de anos, quando a vida começa, realmente, a vida tem sido cooperação e tem sido relação. Essa (imagem) me fascina, porque, de certa forma, é uma representação muito sofisticada para mim do que é o conceito de pluriverso. A vida é fluxo, é inter-relação. Tudo se relaciona com tudo e, portanto, se soubermos habitar o planeta de forma pluriversal, segundo esse princípio da interdependência, estaremos avançando muito. Reaprenderíamos a caminhar pelo mundo como seres vivos, como nos diz a poetisa Mapuche-Huilliche Adriana Paredes Pinda: “esquecemos ... vivemos às custas uns dos outros e às custas da Terra”.


Passamos do conceito de inter-relação e interdependência e ‘relacionalidade’ para o conceito de ‘comunalidade’. É um conceito que está emergindo com força na América Latina, principalmente na última década. Conceito inicialmente cunhado em Oaxaca. Se olharmos para o panorama político e vital dos povos de hoje, nos deparamos com uma situação em que temos ‘tramas comunitárias’, por um lado, que são todas as realizações comunais dos povos e coletivos contra essas coalizões e tramas de corporações transnacionais que querem apropriar-se de tudo. Neste contexto, como nos diz Gladys Tzul no seu livro, o comunitário surge como um horizonte de luta, um espaço para a construção contínua da vida e, obviamente, sem ignorar as formas de poder que habitam em toda comunidade. Uma parte muito importante da reflexão sobre comunalidade é o que acontece com a economia. Como produzimos e criamos economias sob princípios comunais, ainda que articuladas com o mercado, muito voltadas para a produção do comum e essa ideia de que não se trata de voltar ao passado. Ninguém, nenhuma comunidade está dizendo que é uma questão de voltar ao passado. Como dizem as colegas da comunalidade: Não é um retorno ao passado, nem uma continuação do presente, então, são comunidades muito complexas. Por exemplo, Silvia Rivera Cusicanqui chama de “neo-comunidades transnacionais ou comunidades abigarradas1”, mas que promovem ou abraçam formas não-liberais, ou seja, não baseadas no indivíduo particular, nem na propriedade privada, ou não apenas, formas não-estatais e que nos seus melhores momentos estão orientadas para um horizonte pós-capitalista e póspatriarcal. São formas de pensar as conquistas coletivas e comunais, hoje, na América Latina, que são bastante complexas. Rivera Cusicanqui fala, por exemplo, que são processos autoconscientes onde pessoas, povos, comunidades, articulam formas indígenas, modernas, femininas, comunitárias de existir, tudo numa “mestiçagem explosiva e reverberante”, como ela diz. Sem dúvida, é também um espaço de exploração capitalista e de dominação patriarcal, elas estão marcadas pela globalização, mas não só definidas pela globalização. Elas existem dentro da modernidade global, mas ao mesmo tempo são radicalmente diferentes dela. Então, nesse sentido, me parece que existe uma forma muito importante de repensar o comunal, na América Latina, que é importante para a forma como pensamos a participação.

1 “Abigarrada”, termo em espanhol, seria traduzido ao português como “variegada”. Tradutores do trabalho de Silvia Rivera Cusicanqui optam por manter o terno em espanhol, porque com a tradução parece perder um pouco do sentido original.


O território é outra forma de nomear a comunalidade. Na América Latina, este conceito, territorialidade, também é muito válido como linguagem para sentipensar as lutas contra o modelo global de expropriação e contra o que os colegas de Ibagué (Colômbia) chamam ou podemos chamar de ocupação ou expropriação ontológica de territórios e experiências, da vida, das pessoas. O extrativismo, em particular, o que faz é ocupar ontologicamente e destruir ontologicamente, despojar territórios e vidas e experiências das pessoas. Portanto, o território surge como um espaço, um tecido-mundo de resistência e reexistência e, portanto, falamos do fato de que nas lutas contra o extrativismo, a luta pela defesa das florestas, das sementes, águas, das montanhas, há toda uma reativação política dessas cosmovisões e desses mundos relacionais. Há uma dimensão, e me parece importante, de tudo de que estamos falando, que é a dimensão patriarcal. Sem dúvida, o patriarcado é uma formação social muito antiga, uma ontologia, uma formação onto-epistêmica, como quer que a chamemos. Tem muitos milhares de anos (...) nas últimas centenas de anos tem se imbricado com o capitalismo, com o racismo, com o colonialismo e que então, o design se vê convidado a desenvolver, inovar com práticas para sanar esses danos daquela ontologia do capital, para passar para a ontologia da vida. Na América Latina, várias pesquisadoras feministas estão pensando ou propondo o que chamam de uma ‘política em feminino’: Raquel Gutierrez Aguilar e Rita Segato, em particular. Rita Segato nos diz o seguinte: ‘Escolher o caminho relacional [digamos no design] é optar pelo projeto histórico de ser comunidade, é dotar de uma retórica de valor às formas de felicidade comunais que possam se opor à poderosa retórica do projeto das coisas, ao projeto de globalização. A estratégia de agora em diante é feminina’ É por isso que me parece que no design participativo relacional, podemos falar de uma forma feminino-comunal-popular contra o terricídio. E o terricídio parece-me um conceito mais poderoso do que o ‘antropoceno’ ou as mudanças climáticas ou mesmo o colapso climático. É um conceito que tem sido proposto e desenvolvido pela marcha indígena de mulheres para o bem viver, que começou na Argentina, especialmente, a partir da liderança do grande líder mapuche, Moira Millán. Essa forma feminina popular da política parece muito importante para mim. Passamos às epistemologias da participação, começando com algumas reflexões muito simples que sei que já circularam em muitas das sessões do congresso. Obviamente, todo conhecimento situado, toda pesquisa, deve começar com a pergunta: Para que se faz essa pesquisa? Com quem? Como se faz a pesquisa? De onde nós pesquisamos?


Toda pesquisa, desse ponto de vista, tem que ser para a transformação social (Isso já nos foi dito pela Pesquisa-Ação Participativa (PAR), desde as décadas de setenta e oitenta) e tem que levar a sério as categorias e experiências dos grupos subalternos. Uma das maneiras como isso está sendo feito também é incluindo conhecimentos múltiplos e dimensões qualitativas, emocionais e espirituais. Ou seja, acolher todos aqueles aspectos do conhecimento que são tão importantes para a compreensão da realidade social que foram deixados de fora pelas ciências propriamente ditas. Vou referir-me, de passagem, a três propostas. A maior parte é dos últimos dez anos, com exceção da primeira, a proposta pioneira do Coletivo Situaciones em Buenos Aires, de uma investigação militante. Parece-me que esses grupos, entre outros, porque certamente haverá muitos outros, são os grupos com os quais estou mais familiarizado. O grupo CIESAS da cidade do México, de antropologia feminista, principalmente da área jurídica e médica de Pesquisa Ativista Colaborativa; O grupo da Rede Transnacional de Outros Saberes (RETOS) de San Cristóbal de las Casas, facilitado e promovido pela nossa grande colega e amiga Xóchitl Leyva, que inovou com conceitos muito interessantes que vamos resumir; O grupo da Universidad la Tierra, Manizales; O grupo de Quito, da Universidade Andina Simón Bolívar, liderado por Catherine Walsh, de pedagogias descoloniais e, finalmente, toda uma gama de propostas de feminismos autônomos e descoloniais. Portanto, esta será uma apresentação extremamente simplista e esquemática. São trabalhos relativamente conhecidos na América Latina, mas muito pouco fora da América Latina, porque existem principalmente em língua espanhola. Começo com a ideia de que o pensamento e a luta são sempre construídos em relação e que o pensamento e a luta em relação tornam possível tudo o que é coletivo. E esse próximo (slide) que vou ler, com algum detalhe, porque me parece que resume muito bem a filosofia do que é uma epistemologia colaborativa para a participação e para o design relacional que diz o seguinte: “A intenção é a seguinte: que junto com os atores sociais com os quais trabalhamos reflitamos e construamos as questões dentro de uma realidade que compartilhamos. Assim, a partir dessas conversas, desenvolveremos uma agenda de pesquisa conjunta para que, desta forma, o conhecimento seja relevante para os movimentos ou para os grupos sociais com os quais estamos colaborando, ou seja, desde o início, é compartilhada a possibilidade de até começarmos a investigar o que investigar”.’


Começo com o coletivo RETOS em San Cristóbal de las Casas (México), que desenvolveu e articulou essas noções de ‘co-laborar’ e ‘co-razonar’2 e ‘sentipensar’ como parte da epistemologia de uma pesquisa coletiva participativa, enfatizando que o trabalho coletivo (que é a essência da descolonização) não pode ser feito individualmente, tem que ser coletivo. Esse o trabalho e o trabalho de investigação tem que abastecer-se da mente e do coração. A razão não é suficiente, embora seja importante. É muito interessante que eles trabalham com várias mídias, trabalham com mídias visuais, com áudio, porque também são comunidades rurais. Por exemplo, este livro que vocês veem à direita: “Tecendo nossas raízes”, na verdade é um audiolivro, que também tem cassetes e que foi publicado em quatro línguas: espanhol e três línguas maias da região de Chiapas e de Yucatán. O segundo grupo é o grupo da Universidad de la Tierra ou Color Tierra, em Manizales, que desenvolveu esta metodologia de pesquisa e ação coletiva, também muito sofisticada. Partindo da premissa de que ninguém ensina ninguém, que todos aprendemos uns com os outros, que as comunidades fazem parte da produção e da pesquisa do conhecimento e que os pesquisadores fazem parte da prática com os coletivos. Ou seja, não há divisão entre o pesquisador que investiga e a comunidade que pratica. Todas e todos, pesquisadores e comunidades fazem parte da pesquisa e da ação, que me parece fundamental. Da mesma forma, essas investigações enfocam o que podemos chamar de tecido coletivo de novos sentidos de comunidade. Fala-se, então, em fazer biografias coletivas e em uma pedagogia coletiva de baixo para cima. Eles desenvolveram uma série de metodologias, por exemplo, de escritas coletivas, ou seja, não há apenas um autor, um único autor, que escreve sobre o processo com a comunidade, mas toda a comunidade escreve e quando toda a comunidade não pode escrever, tem algumas pessoas que fazem a escrita coletiva, mas não como pessoas individuais, mas como parte desse processo coletivo muito complexo. Um novo léxico que surge de tudo isso: sentipensar, tejinandar, sub/ alter(n)/ natividades3. Demoraria muito para explicar cada um deles, mas basicamente sugerem que é importante pensar em quais conceitos, quais categorias usamos quando nos aproximamos para investigar e a fazer “co-design” ou “intra-design” com as comunidades, porque essas categorias escondem visões de mundo e possivelmente privilégios. Ou quais categorias vamos privilegiar e é justamente um dos principais 2 O termo “co-razonar” em espanhol tem um sentido diferente do que no português. Com ele cria-se um jogo de palavras. Por um lado, aparece a palavra “corazón” que significa “coração’” e, por outro lado, aparece a palavra “razonar” que significa “raciocinar”. 3 Estes termos foram deixados em espanhol, porque são neologismos.


e mais importantes pontos de toda a epistemologia feminista do continente. E não só do continente, creio que do mundo em geral, certamente no Ocidente, as epistemologias feministas têm estado na vanguarda de questionar essa divisão entre sujeito e objeto de pesquisa. Assim, nos feminismos autônomos e descoloniais da América Latina, centrados no que nossa querida amiga e colega de Cali, a socióloga afro-colombiana Bethy Ruth Lozano, chama de “insurgências epistêmicas”, o foco é tornar visível e privilegiar os conhecimentos e as lutas pela resistência e pela re-existência das mulheres e sujeitos e sujeitas etnizadas, racializadas e sexualizadas. A partir daí surgem propostas, por exemplo, como esta da produção de conhecimento com uma co-intencionalidade, proposta pela antropóloga colombiana Diana Gómez. Nela as questões a serem debatidas e investigadas são identificadas coletivamente, por se tratarem de questões vitais para as comunidades e organizações e, claro, uma série de premissas metodológicas e teóricas desta epistemologia de pesquisa: - Conectar teoria e prática, - Conectar a academia com os movimentos sociais, - Aprender com o mundo e não sobre o mundo, - Considerar tudo o que é corporificado, encorpado, relacional, os conhecimentos holísticos, espirituais e emocionais; - Criar conhecimento também para o luto e para a cura, especialmente em contextos de violência, tão prevalentes na América Latina, violência patriarcal e racista. - Estabelecer pedagogias de libertação com os sujeitos vitimizados e vitimizadas para desaprender o que vitimiza e aprender, também, a operar em liberdade. (...) Bem, muitas dessas metodologias não se desenvolvem da noite para o dia. Elas são o produto de décadas de trabalho coletivo entre pesquisadores e pesquisadoras e com as comunidades, muitas vezes em contextos de violência duradoura. Isso se aplicaria em quase todos os espaços da América Latina, e o mais importante é que vai além daquela epistemologia que separa o sujeito do objeto, que questiona os dualismos modernos e que recupera aquelas partes suprimidas dos binarismos da modernidade. Por exemplo, o corpo é recuperado dessa divisão mente-corpo, as emoções dessa divisão entre razão e emoção, espiritualidade e intuição ... Portanto, se baseiam na premissa da interdependência, isso é muito importante, voltamos à questão da relacionalidade e da interdependência que nos ajuda a pensar em reconstituir mundos de forma nãoantropocêntrica, não-racista, pós-patriarcal e pós-capitalista, de uma forma pluriversal.


Há uma riqueza de metodologias muito importante, oficinas de cura, por exemplo, oficinas de biografias coletivas, escritas coletivas, intervenções coletivas, até fazer protótipos coletivos. Há uma grande riqueza dessas propostas, tomadas como um todo, de novas formas de epistemologia colaborativa, de pesquisa colaborativa na América Latina. Então, o que significa design participativo relacional (DPR)? Acho que é uma categoria provisória. Se adotarmos uma perspectiva de interdependência radical, se adotarmos uma perspectiva de relacionalidade profunda, a participação não faz sentido, porque estamos todas e todos inseridos / inseridas por completo nessa rede de inter-relações que é a vida. Então, o que significa participar? Participar é ser, mas ser de outra maneira. Vamos deixar, por enquanto, como designs participativos baseados na relacionalidade. Em termos das participações outras (...) que serão para a re-comunalização da vida social, a partir de uma nova forma de compreender a realidade, a interdependência. Um design participativo relacional que podemos pensar como uma forma de reconstruir e fazer mundos diferentes. O design a partir/ com a vida como pluriverso, ou seja, vamos participar do fluxo da vida, nesse design de uma forma que seja ‘um mundo onde cabem muitos mundos’, que é como os zapatistas nos falam do pluriverso. Gosto desta definição de design, sei que é um pouco abstrata. O design é um convite aberto a todos nós para nos tornarmos tecelões conscientes e eficazes do tecido da vida (comunalitariamente, coletivamente). Ou seja, todas e todos estamos participando em fazer ou desfazer ou destruir a vida, então façamos isso conscientemente, sejamos tecelãs, sanadoras e cuidadoras conscientes desse tecido complexo que é a vida. E, finalmente, o design é uma práxis para a cura e o cuidado do tecido da vida, de várias maneiras onde estamos, de onde estejamos. Na verdade, essas novas ideias, que estão surgindo, que reivindicam a centralidade da vida para o design, reivindicam a centralidade do comunal para o design, reivindicam a centralidade e a interdependência para o design, estão tentando realocar o design dentro deste novo contexto de pensar dentro da Terra e, sem dúvida, sem esquecer as múltiplas relações de poder que sempre estão presentes, aquelas que acabam com a Terra em particular, que devemos ter sempre em conta. Então, como vivemos e fazemos design em um pluriverso vivo, de acordo com a visão da interdependência (um design participativo não-antropocêntrico)? Foi precisamente o que nós discutimos ontem com o grupo da rede de DESIS de Ezio Manzini e Virginia Tassinari e, finalmente, uma pergunta que eu acho muito interessante: Que ferramentas, metodologias de pesquisa e de projetos concretos, podemos imaginar a partir da perspectiva tripla de participação, comunalidade e relacionalidade? A partir desta nova perspectiva em que o design ocorre em um sistema vivo, uma terra viva em um universo vivo?


Na conferência consegui ouvir parte da primeira sessão, na manhã de segunda-feira, coordenada por Chiara (Del Gaudio). Estava Ann Light, entre outras pessoas, onde se perguntavam justamente isto: Como desenvolvemos metodologias de pesquisa se queremos levar a sério estas novas inspirações do mais-que-humano, essas novas inspirações da relacionalidade e interdependência?. (...) Bom, muito obrigado e continue Andrea (Botero). Andrea Botero: Obrigada Arturo, foi ótima a ideia de que com uma perspectiva relacional não precisaríamos de participação. Acho que isso deixa muitos de nós pensando em todas as discussões que tivemos na conferência, nestes dias. Temos uma série de perguntas e como sou a moderadora, decidi escolher algumas mais relacionadas com alguns dos temas do congresso, embora todas sejam importantes, me desculpem, não as veremos todas. Poderia começar por Andy Dearden, que pergunta que quando falamos de ‘sentipensar’... (particularmente está interessado no design de tecnologias da informação e a comunicação... como as estamos usando). Como você acha que estar aberto a diferentes epistemologias para mudar a nossa forma de pensar ou imaginar aqueles futuro ... não iria ser pouco perigoso que essas idéias, como o ‘sentipensar’, possam estar restritas apenas a pensar sobre as relações sociais e, por exemplo, ser irrelevante para pensar sobre o futuro das coisas? O que você pensa sobre isso? Arturo Escobar: Você quer que respondamos três perguntas? Andrea: Sim... Tania (Pérez-Bustos) está perguntando por que falar de uma forma feminina e não feminista da política, que se não seria essencialista usar a primeira denominação (a forma feminina) e Karen está questionando a possível existência de uma metodologia Queer. Arturo: Bom, ótimo, começo pelas duas últimas, acho que a primeira vai demorar um pouco mais para pensar, porque há muito tempo não pensava em novas tecnologias, o que é parte da questão. Por que feminino e não feminista? Eu sempre digo e desta vez eu não fiz... essas idéias são tão difíceis de explicar em tão pouco tempo ... Eu sempre digo que é uma perspectiva feminista do feminino. Tanto Rita Segato quanto Raquel Gutierrez


Aguilar e eu acredito que muitas (...) reivindicam essa noção do feminino como uma outra forma de ser, como uma ontologia “outra”, uma ontologia não patriarcal, mas essa constatação só é alcançada a partir de uma análise profundamente histórica, antiessencialista e feminista, é por isso que a chamo: é uma forma feminista de reivindicar o feminino, e o feminino não só para as mulheres, o feminino é também para os homens, obviamente. Ou seja, em uma sociedade patriarcal, em uma ontologia patriarcal, somos todas e todos patriarcais, alguns mais do que outros, obviamente, no sentido de que o que a sociedade como um todo valoriza são aqueles valores patriarcais de dominação, controle, apropriação, hierarquia, violência e guerra. Se começarmos a caminhar em direção a ontologias mais femininas, há pessoas que reivindicam o termo de ‘matriarcados’ também, como uma proposta fundamentalmente histórica para o futuro, que os futuros possíveis terão que ser mais femininos do que foram, porque temos sido passados e presentes profundamente masculinos, marcados por esses valores patriarcais. De outro modo, olhemos o que está acontecendo no mundo hoje, esses mundos profundamente patriarcais, racistas, masculinos, em seus modos de repressão e dominação e guerra, então, é isso por um lado. Acho que o queer tem muito a ver com isso. O princípio do que é queer é justamente questionar toda normatividade, questionar todas as formas normativas de ser, seja pela sexualidade, seja pelo tipo de corpo que temos, seja através dos mundos que construímos. De repente, acho deveria-se falar (e com certeza algumas pessoas devem estar falando sobre isso), de ontologias queer, ontologias que não são as ontologias, digamos da modernidade ou qualquer tipo de ontologia. Nas comunidades originárias, ancestrais, obviamente, também há formas patriarcais, há formas de repressão às vezes do queer. Embora agora haja também muita reivindicação, em muitas comunidades indígenas afrodescendentes, dos modos queer de ser e de existir, então definitivamente sim, isso tem a ver ... as epistemologias queer têm muito a ver com isso também. E, por fim, para abordar a questão das novas tecnologias, é um campo tão... sou apaixonado por isso, de certa forma, mas ainda não cheguei a uma formulação concreta. Mas, sim, parece-me que as novas tecnologias, para mim, as TICs e especialmente os aparelhos digitais, desde telefones celulares a computadores, a Alexas, a tudo o que usamos, os laptops estão nos projetando de uma forma muito profunda, definitivamente. Elas estão construindo nossas subjetividades de uma forma que é profundamente individualizante, paradoxalmente por uma questão de conexão, mas é uma conectividade, como dizem os críticos, já pré-fabricada, já pré-estruturada, por um design algorítmico e um design profundamente cada vez mais comercializado nos algoritmos, obviamente, de todas as transnacionais.


(...) Nesses dias eu li um manifesto de um grupo de espanhóis e franceses, principalmente, em que pediam uma série de moratório sobre as tecnologias digitais, que deixássemos pelo menos um dia de folga por semana de tecnologias digitais, para nos reconectarmos com o cara a cara, para nos reconectarmos com o cara à terra, com o cara ao céu, com o cara a tudo o que com frequência não vemos. Então, esse ‘sentipensar’ não é necessariamente anti-digital, porque não se trata nem de dizer que os mundos antigos eram melhores, porque não existiam tecnologias digitais, não é sobre isso; Nem dizer que os mundos de hoje estão piores por causa das tecnologias digitais. Cada mundo e cada geração tem seus desafios e me parece que o desafio hoje é voltar a ... parte da relocação e recomunalização da vida social tem que passar pela desdigitalização do cotidiano. Não quer dizer que teremos que jogar fora todos os celulares, isso obviamente não vai acontecer, mas, nos preocupamos com muitas coisas: as famosas tecnologias 5G, por exemplo, já existe uma grande literatura sobre os profundos efeitos da radiação eletromagnética na saúde, das tecnologias 5G, que a gente não está prestando atenção, porque a grande mídia não fala nisso, porque não tem interesse em falar nisso, porque já estamos todos montados na tecnologia 5G, porque todos queremos que tudo seja mais rápido. Bem, é nisso que posso pensar, haveria muito mais o que falar sobre isso, é um assunto sobre o qual estou ativamente lendo, mas ainda tenho que formular meu pensamento um pouco mais claramente. Andrea: Há também algumas perguntas: uma sobre o limite do relacional, por exemplo, como quando vemos coisas como ‘notícias falsas’ ou ‘terraplanismo’, até onde vai? E se você acha que alguém que acredita no ‘terraplanismo’ também terá sua chance de fazê-lo. Há outra que não está necessariamente relacionada a essa, mais próxima no sentido de que ... como você relaciona sua perspectiva ao tipo de ontologia relacional e materialismo discursivo de pessoas como (Karen) Barad ou (Donna) Haraway ?...Quais são as relações que você vê entre o que você diz e o que eles dizem? Arturo: Bem, vamos começar com a segunda parte que vai me dar uma maneira de entrar na primeira, que é uma pergunta muito complexa, a primeira. Existem muitas fontes hoje, digamos, no espectro da teoria social contemporânea, especialmente em antropologia, geografia, filosofia política, de fontes de racionalidade. Que por um lado, as fontes estão na teoria, daqui a pouco irei contar um pouco sobre quais, mas também, existem muitas fontes para o pensamento relacional fora da academia e fora da teoria. O budismo, por exemplo. O budismo é, profundamente, uma sábia teoria ou filosofia da mente de relacionalidade e interdependência. O conceito budista, por exemplo, de coemergência ou emergência dependente, de que tudo o que existe co-surge, sempre


co-emerge, nada surge por si mesmo. Achamos que nós criamos de forma autônoma, especialmente no Ocidente. O sonho liberal de individualismo, de autocriação. Os movimentos sociais, povos indígenas, povos originários, povos afrodescendentes, o campesinato... estão começando a reivindicar o modo de vida mais relacional; de grupos urbanos que estão se reconectando especialmente em torno da questão da alimentação e da produção local de alimentos. Tudo o que está realocando, recolonizando são reivindicações por uma forma mais relacional de existir. Agora, do lado da teoria social, sem dúvida o pensamento, digamos, crítico nos estudos da ciência e da tecnologia, como Karen Barad e Haraway, pensamentos feministas também são pensamentos de relacionalidade. O conceito de intra-ação ou intra-relação de Barad ... ela nem fala de inter-relação, mas de intra-relação, que todo mundo já é, desde o começo e sempre, é relação. Ou seja, não podemos ver nada fora da relação; a única coisa que existe é a relação. Haraway pelo estilo também. Há algumas conclusões que me preocupam um pouco com esse tipo de pensamento feminista e norte-americano, principalmente no campo dos estudos de ciência e tecnologia ... que é abraçar o hibridismo, a inter-relação do corpo com a máquina, do ‘ciborgue’ , digamos, no caso de Haraway. Acho que temos que ir daí para um momento em que critiquemos novamente: por que estamos enxertando tanto com as máquinas. Novamente, voltando à questão da digitalização, de como com a digitalização estamos construindo esses corpos-enxerto, quando nos dissociamos completamente de sermos corpos-terra, de sermos corpos-comunidad, de sermos corpos ... como as gravuras que mostrei, de ser corpos-rio, corpos-água e que não significa que não possamos ser os dois ao mesmo tempo, sim, podemos ser corposmáquinas, mas também devemos continuar a ser corpos-água e corpos-terra. Então, é claro, a gente diz: o pluriverso, ‘um mundo onde cabem muitos mundos’, então, surge uma pergunta: Os grupos de ultradireita podem se declarar...? ... Andrea: ...Vale tudo, tudo cabe … Arturo: Há um problema e uma questão em aberto, nesta área que chamamos de ontologia política, que é como nós tratamos esses mundos que não querem se relacionar, esses mundos que só querem ser ‘o mundo’, como no mundo de Trump e os Bolsonaros, de todos os patriarcas e gurus, os tecno-patriarcas da tecnologia também, que é um mundo profundamente tecnológico. Como tratar com esses mundos? A princípio a ontologia política é que todos os mundos estão relacionados, ou seja, não há mundo que possa ser isolado, nenhum mundo pode ser puro, nem mesmo


aqueles que querem se isolar em nome de ser uma certa pureza racial, digamos, do mundo. É um risco que há que correr. É o perigo de postular uma noção pluriversal da política e da vida social. Especialmente no trabalho de queridos colegas e amigas como Marisol De La Cadena e Mario Blazer, há uma série de categorias e princípios para se pensar de uma forma muito sofisticada como se faz relação entre mundos, em contextos pluriversos marcados pelo poder e relações de poder entre esses mundos. E, finalmente, como podemos nos mover em direção a um pluriverso onde esses mundos tenham a oportunidade de se relacionar entre si e com a Terra de uma forma mais simétrica e igualitária. Andrea: Muito trabalho a fazer ... por onde começamos? Muito obrigado Arturo por se juntar a nós nisso, queria terminar compartilhando uma pequena reflexão que Yoko (Akama) faz, principalmente porque você mencionou o artigo dela no início da palestra, vou ler em inglês ... Refletindo sobre o que Arturo disse... parafraseando a participação como algo tão simples quanto ser quando percebemos que já estamos todos enredados em interdependências radicais que levanta questões se precisamos do (Design Participativo) DP ou o que então significa DP. O DP se torna ativismo político para lembrar e também responder à obrigação de já estar enredado? ou talvez uma forma de reconstruir modos de ser/ tornar-se juntos para culturas/comunidades que destruíram e traumatizaram estruturas relacionais, que estiveram em comunidades ancestrais o tempo todo? Arturo: Sim, uma saudação especial à Yoko, gostaria que me enviasse o seu trabalho, agradeceria muito, porque é exatamente o que estava tentando dizer. Andrea : Bem, muito obrigada Arturo pelo presente, pela generosidade que você tem em vir aqui passar um tempo conosco e conversar. Muitas perguntas permaneceram ... Suponho que mais virão pelo caminho, mas tem sido uma grande alegria ter você em Manizales ... Arturo: Muito obrigado. Andrea : Ou não ter você em Manizales. Arturo: No Manizales virtual Andrea : Sim, no Manizales virtual.


Arturo Escobar é um intelectual colombiano, professor de antropologia da Universidade de Carolina do Norte em Chapel Hill, EUA. Autor dos livros Designs for the pluriverse, Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia, entre outros. Maria Cristina Ibarra é doutora em design e professora adjunta da Universidade Federal de Pernambuco // @cris_ibarrah


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