Pandemia Crítica 147 - Era uma vez o big bang

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Era uma vez o bing bang Mario Novello


O prêmio Nobel de Física de 2020 foi concedido aos três pesquisadores Roger Penrose, Reinhard Genzel e Andrea Ghez por suas investigações em efeitos gravitacionais no universo. A Universidade Lucknow (India) organizou uma conferência internacional em homenagem aos premiados. Segue a palestra proferida pelo cientista convidado Mario Novello

Gostaria de agradecer ao professor Murli Manohar Verma pelo convite para falar aos alunos desta bela universidade. O professor Murli me foi apresentado há alguns anos pelo meu amigo, o famoso cosmólogo indiano Jayant Narlikar, que participou mais de uma vez em nossa Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação, um evento internacional de cosmologia que organizo há mais de 40 anos. O motivo principal desta cerimônia aqui é comemorar o prêmio Nobel dado a Roger Penrose, Reinhard Genzel e Andrea Ghez. A atividade de Penrose no desenvolvimento da teoria da relatividade geral está principalmente ligada a buracos negros e cosmologia. Como certamente meus colegas que falarão nesta cerimônia tratarão essencialmente de aspectos dos buracos negros, eu irei me concentrar na cosmologia. Como meu público aqui é principalmente de estudantes de física, darei uma breve visão geral da questão cosmológica e da importância do trabalho de Penrose neste campo. A cosmologia moderna tem uma data de nascimento definida: 1917, quando Einstein aplicou sua teoria da gravitação, a Relatividade Geral, ao universo estabelecendo as bases para a constituição de um modelo global do cosmos. Impulsionado pela ideia apriorística de que o universo deveria ser estático, Einstein desenvolveu uma geometria, uma solução para suas equações da relatividade geral, independente do tempo global. A principal consequência dessa hipótese levou Einstein a introduzir um efeito cósmico sobre as leis da física, a famosa constante cosmológica. Para obter uma solução de suas equações gravitacionais que atendesse ao seu critério apriorístico sobre as características geométricas do cosmos, Einstein levanta a hipótese de que, além da matéria convencional e de todas as formas conhecidas de energia em física observadas em laboratórios, existe outra forma de energia cuja presença só poderia ser observada em propriedades globais de espaço-tempo. Em outras palavras, haveria uma nova forma de energia desconhecida pela física que só teria um efeito real em escala cósmica.


Einstein afirmava que seria totalmente irrelevante descrever o efeito da constante cosmológica em configurações localizadas, como na Terra, no Sol, nas regiões próximas às estrelas. Ela desempenharia um papel importante somente em grandes dimensões do espaço-tempo, no universo. Ou seja, sub-repticiamente, Einstein iniciou uma crítica das leis físicas no nível cósmico ao assumir uma mudança nas leis físicas do universo. No entanto, sua proposta não foi desenvolvida e sua relevância para outras leis físicas não teve consequências. Essa ideia caiu no esquecimento por mais de uma década. A principal razão para isso foi o surgimento de uma proposta de universo dinâmico que ofuscou essa questão. Duas décadas depois Sambursky e Dirac desenvolveram essa ideia e começaram a investigar a possibilidade de dependência cósmica das leis da física, como a constante gravitacional de Newton e a constante de Planck do mundo quântico. Essa propriedade estranha, representada pela constante cosmológica, produziu reflexos negativos que resultaram em uma primeira crítica cosmológica do cientista russo Alexander Friedmann que em 1922 produziu um modelo dinâmico de um universo em expansão. Esta proposta sugere a variação do volume total do universo com a passagem do tempo cósmico global. As observações astronômicas, anos depois, consolidaram esse cenário de um universo em expansão como o modelo padrão da cosmologia. Entre outras qualidades, a proposta de Friedmann permitiu a análise da origem do universo na cosmologia. Em seu modelo, o universo teria começado a existir em um tempo finito a partir de um momento singular em que todas as quantidades físicas, como densidade de energia e temperatura, assumiriam valor infinito. Longe de resolver a questão cosmológica, ele trouxe um modelo em que a existência do mundo dependeria de um momento irracional, impossível de ser descrito pelas leis da física. Por muitos anos, a maior dificuldade da Cosmologia foi saber se essa singularidade era uma propriedade da geometria de Friedmann devido às suas simetrias (espacialmente homogênea e isotrópica) ou se seria mais geral. Até a década de 1960, as propriedades da relatividade geral eram examinadas de um ponto de vista local por meio de suas equações diferenciais. Ou seja, características locais. Muitas consequências da ideia de examinar as propriedades globais nesta teoria foram estudadas por Penrose e colaboradores. É importante ressaltar que já em 1949, o grande matemático austríaco Kurt Gödel havia apresentado uma solução para as equações da relatividade geral que demonstrava explicitamente que nem todas as propriedades locais podem ser consideradas globalmente válidas. No caso examinado por Gödel, a validade da causalidade local não implica a validade da causalidade global.


Em outras palavras, novas propriedades aparecem se examinarmos as características globais do universo. Isso é exatamente o que Penrose descobriu em um sentido mais amplo. Em 1964, ocorreram dois aspectos cruciais para o desenvolvimento da cosmologia. Um observacional e outro teórico, formal. O primeiro foi a descoberta de que o universo estava repleto de radiação representada por um gás de fótons como um corpo negro a uma temperatura de 2,7 graus Kelvin. O outro foram os teoremas de Penrose e colaboradores. Uma característica típica desses teoremas da singularidade diz respeito ao fato de que, para evitar a singularidade, é necessário que os fluidos convencionais usados para descrever o conteúdo cósmico tenham pressões negativas importantes. O teorema afirma a inevitabilidade de uma singularidade sob algumas condições, como por exemplo • Validade da Relatividade Geral; • Princípio de acoplamento mínimo (para a interação entre matéria e gravidade); • Ausência de altas pressões negativas; Isso envolve a extendibilidade de curvas nulas, os caminhos de fótons (ou neutrinos ou gravitons) que classicamente não podem desaparecer do espaço-tempo. Em outras palavras, a ideia de um começo singular, chamado big bang, passou a dominar a visão dos físicos sobre as origens do universo. O programa alternativo de um universo eterno, como por exemplo, o proposto por Hoyle e Narlikar, foi então considerado inadequado e deixado de fora. Penrose apresentou esses trabalhos cosmológicos em Les Houches (1964) e mais tarde nas conferências Battelle em 1967. Outra conseqüência importante da análise global em vez da local levou Penrose e colaboradores a investigar a questão do horizonte causada pela limitação da propagação da informação. No caso de um objeto compacto, a noção de superfície do horizonte na famosa solução de Schwarzschild levou ao conceito de buraco negro: uma superfície que pode ser atravessada apenas em uma direção. Meus colegas aqui nesta reunião certamente comentarão essa propriedade com mais detalhes. Ao aplicar este conceito de horizonte na cosmologia, surgiu uma questão séria: como conciliar o alto grau de isotropia presente na radiação cósmica com a existência de um horizonte se o universo tivesse um tempo finito de existência. Uma solução simples seria estender o tempo de existência do universo capaz de permitir essa homogeneização. Outra, muito mais complexa, é imaginar que logo após sua suposta explosão inicial o universo teria passado por uma fase extremamente acelerada em sua expansão,


depois se desacelerado e em seguida evoluído com a solução convencional de um universo em expansão lenta. A primeira solução seria típica de um relativista lidando com equações da relatividade geral. A segunda é um legado de físicos teóricos de campo. Curiosamente, a maioria dos físicos escolheu esse segundo caminho, que foi chamado de fase inflacionária do universo. Nos últimos anos Penrose voltou a pensar sobre as consequências de seu teorema ao tentar obter modelos mais realistas do universo. Ele percebeu que nem todas as condições de aplicabilidade do teorema da singularidade ao universo poderiam ser válidas. Começou então a analisar, em conjunto com seu colaborador Stephen Hawking, um cenário onde o universo teria tido uma fase anterior de colapso gravitacional, um valor mínimo é alcançado e então a atual fase de expansão começa. Como esta situação pode se repetir, é natural chamar esse cenário de universo cíclico. Dessa forma, Penrose se juntou a um pequeno grupo de cosmologistas que desde o final da década de 1970 defendiam um modelo de bouncing para o universo. Para obter um bouncing, a fonte da geometria cósmica deve ter alguma propriedade que viole as condições de aplicabilidade do teorema da singularidade. A consequência mais importante desses cenarios com bouncing ou eternos é, além de resolver direta e simplesmente a questão da homogeneidade dos modelos cosmológicos convencionais, é evitar a singularidade presente na geometria de Friedmann, uma necessidade da física como Narlikar tem afirmado há muitos anos, As primeiras soluções analíticas de um universo homogêneo e isotrópico com bouncing foram feitas no ano de 1979 por dois grupos de pesquisa: na União Soviética por Melnikov e Orlov e no Brasil, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas por Novello e Salim. A solução dos russos usa um campo escalar acoplado conformalmente à curvatura do espaço-tempo. A solução dos brasileiros trata do campo eletromagnético acoplado ao escalar de curvatura. Ambas as métricas mostram uma configuração de bouncing, consistindo na existência de uma fase anterior de colapso até atingir um valor mínimo diferente de zero e depois iniciando a atual fase de expansão. Desde então cenários com bouncing foram descobertos em várias situações distintas com configurações materiais diferentes. Para os interessados em mais detalhes sobre esses cenários cíclicos do cosmos, aconselho a leitura do artigo Bouncing Cosmologies na revista Physics Reports de julho de 2008, onde eu e meu colaborador Bergliaffa fizemos uma análise bastante completa de todos esses universos eternos.


E, finalmente, deixe-me acrescentar que parece claro para mim que nos próximos anos veremos mais e mais detalhes das propriedades de modelos cosmológicos com bouncing. Essa situação sugere pensar que o antigo modelo bigbang está sendo substituído pelo cenário de um universo eterno sem singularidade, com bouncing. Obrigado. 18/19 outubro 2020

MARIO NOVELLO Professor Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (2012); Doutor Honoris Causa da Universidade Claude Bernard (Lyon, França) (2004); Doutor pela Universidade de Genève, Suíça (1972); Descobriu com seu colaborador José Salim a primeira solução analítica de universo eterno com bouncing em 1979; Recebeu o prêmio Jabuti (2018) de divulgação científica pelo livro “Os cientistas de minha formação”. Publicou O universo inacabado, pela n-1 edições, em 2018. A palestra acima está disponível em vídeo em https://www.dropbox.com/s/l4sqanyshfbqemx/video-conference-2020. mp4?dl=0


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