Pandemia Crítica 149 - Bye bye Brasil: quarenta anos depois

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Bye bye Brasil: quarenta anos depois Nurit Bensusan


A última ficha caiu…

“Bye Bye Brasil é o meu sonho sobre isso que se convencionou chamar de realidade brasileira. Ou seja, mais uma modesta versão pessoal, uma das muitas versões possíveis sobre alguns aspectos do que ocorre com o mundo e as pessoas mais próximas de mim. [...] Só que agora a mágica do cinema, o mistério da sua luz, captura um país em transe, onde convivem no mesmo espaço/tempo o moderno e o arcaico, a riqueza e a pobreza, a selva e a poluição, a comédia e a tragédia, numa situação-limite que pode estar anunciando a civilização do século XXI. Porque, embora o coração tente me dizer que o apocalipse já começou, é preciso acreditar que ele é inevitável e que a soma de cada uma de nossas esperanças será o seu principal bloqueio. Se cada um de nós acreditar firmemente que a autodestruição não é uma fatalidade da história humana, talvez aí comecem a dar certo as mágicas trabalhadas pelos alquimistas dos anos 1960. Talvez aí a ideia brilhe vitoriosa sobre a mesquinhez dos interesses.” Cacá Diegues, sobre Bye bye Brasil, em 3 de fevereiro de 1980, no Jornal do Brasil, duas semanas antes da estreia do filme

A última ficha caiu e o Brasil segue em transe. De 1980, ano do lançamento do filme Bye bye Brasil, até este espantoso 2020, o país acreditou, desacreditou, somou esperanças, reduziu-se a desilusões, afastou-se do apocalipse e jogou-se na autodestruição. A obra de Cacá Diegues deu aos brasileiros um vislumbre da gigantesca diversidade de formas de viver existente sob esse mesmo parangolé colorido que é o Brasil. Um lugar onde o arcaico esbarra no moderno, o urbano perde-se na floresta, a farsa compete com o fake e onde todo mundo é índio, exceto quem não é. Um filme dedicado ao povo brasileiro do século XXI. Século que chegou prenhe de esperanças em um país que começava a se reinventar depois da ditadura, que chegou a acreditar que tinha futuro e que ele incluiria todos. Um povo que chega ao fim da segunda década do novo século numa nação onde a cada dia o inadmissível torna-se corriqueiro, o assombro assume cores de normalidade e a desesperança é o pão nosso de cada dia.


Bye bye Brasil conta a trajetória da Caravana Rolidei, composta por dois artistas mambembes, a quem se junta outro casal, que se apresentam em pequenas cidades e vilas do sertão do Nordeste, nos meados década de 1970. Em busca de novos lugares sem televisão (de modo a garantir público para seus shows), seguem para a Amazônia, em direção a Altamira (PA). O filme mostra os efeitos da integração nacional, preconizada pela ditadura civil militar, inaugurada em 1964 e no poder à época. A obra revela como o sertão e a Amazônia continuavam esquecidos quando o assunto era políticas públicas e melhores condições de vida, mas não quando se tratava de alcançá-los com as imagens do que seria – ou deveria ser – o país, veiculadas pelas novelas na TV. Imagens de uma modernidade limitada e conservadora, americanizada, distante de suas origens. A Caravana Rolidei cruza estradas na Amazônia, encontra índios, garimpeiros e todo tipo de gente em busca de oportunidades, para desembocar em Altamira. Acoplado a uma canção de Chico Buarque com o mesmo nome, o filme trouxe à baila muitas questões candentes sobre o país - que seguem tão urgentes como eram há 40 anos. O contraste do urbano e do rural no Nordeste; a tela, em suas novas e múltiplas versões, como mesmerizadora maior do povo brasileiro; o eterno sonho de melhorar de vida; a ocupação da Amazônia e o dilema do que o Brasil quer de seus povos indígenas. De 1980 para cá, parte grande do rural transformou-se em urbano, mas não em cidades, e sim em periferias. Os contrastes que existiam nas distâncias geográficas seguem existindo, aproximados pela dinâmica urbana de centro e periferia, de quem acredita ser elite rica e branca e de quem sabe ser pobre e preto. Cidades inchadas, de onde pessoas escorrem pelas bordas sem direitos, teto ou futuro. Em um caleidoscópio onde tudo muda a cada momento, mas permanece essencialmente igual, os dilemas da ocupação da Amazônia são idênticos, apesar de haver menos floresta, menos indígenas e menos esperança. O futuro da Amazônia é a mineração, diz um personagem de Bye bye Brasil, mas a frase está na boca de muitos políticos hoje, 40 anos depois. A Altamira do filme, já entulhada pelos caçadores de sonhos da Transamazônica, pode ser contrastada com a Altamira da hidrelétrica de Belo Monte, avolumada de pesadelos, dor, sofrimento e muito mais gente. Mas o contraste é apenas superficial. Se, em algum momento, acreditou-se na floresta e seus povos como arautos de um futuro possível, tal devaneio já foi deixado de lado e a marcha rumo ao fim da floresta e de seus povos está sendo retomada com


ardor. Os índios de Bye bye Brasil, deslocados pela Transamazônica, são os índios de hoje, expulsos, desrespeitados, enganados e vilipendiados por Belo Monte, por outros grandes projetos de infraestrutura e pelo descaso com sua sobrevivência em plena pandemia de Covid-19. Se a globalização que se revela, até mesmo no Brasil profundo, traz uma certa nostalgia, expressa no filme e na canção, 40 anos depois ela está plasmada tanto nos que encontraram nela ecos para seus sonhos, como para aqueles que ficaram de fora e perseguem um avesso do avesso. O país se traduz em bordas: bordas da floresta, onde os bois encontram os morcegos; bordas das cidades, por onde escorrem sonhos; bordas do Pantanal, onde o fogo destrói a exuberância, e bordas dos abismos que se multiplicam, pelo país afora, como armadilhas sem fim. Qual é o país do qual Bye bye Brasil se despede? Em parte, talvez, o país subalternizado pela ditadura. Mas possivelmente também vários outros brasis. Um país onde houve espaço para acreditar numa “brasilice”, um lugar com características próprias, cuja melhor expressão foi o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, que abria a possibilidade de pensar um país que invertesse o projeto colonial. Talvez um Brasil onde a Amazônia sequer existia, ou existia como “inferno verde’”, como um não lugar, espaço a ser desbravado, conquistado, domado, civilizado, entristecido e acinzentado. Ou ainda, um Brasil onde o colonizador nunca penetra, persistindo no litoral a ver navios e a sonhar bandeiras... Como um grito primevo que ecoa desde que as caravelas europeias aqui aportaram, o futuro se esvai entre nossos dedos, mais uma vez. Ignoramos possíveis roteiros, distanciamo-nos do transe da Terra, fazemos mapas do grande sertão, escondemos Macunaíma atrás do cortinado e viramos a cara para Xangô. Morremos no ano passado e neste morremos mais. “Agora a gente vai para Rondônia. Vamos fazer show para índios, eles nunca viram nada parecido: civilização” A fronteira, representada pelo novo destino da Caravana Rolidey, Rondônia, já virou serragem e desilusão. Pouco resta da floresta por lá e os povos indígenas, em contato com a pior faceta dos brancos, seguem por labirintos sem fim. O Brasil segue por aí... em caravanas rolideis, naqueles que viajam porque precisam, nos que voltam porque amam, nos que desistem de si para serem outros e nos que sempre esperam. Se Bye bye Brasil retratava um Brasil que acabava, ao mesmo tempo que outro nascia, como disse Cacá Diegues, o momento atual também mostra um país que ficou para trás, ao mesmo tempo que um Brasil desconhecido emerge. Afinal, esse país nunca foi para principiantes...


De que país nos despedimos? “Sonhar só pode ofender os que não sonham” Lorde Cigano, personagem de Bye bye Brasil Parece que estamos sempre nos despedindo de um Brasil que poderia ser e não foi. Desde que os europeus aqui chegaram. Como diz o poema de Oswald de Andrade: “quando o português chegou, debaixo de uma bruta chuva, vestiu o índio, que pena, fosse uma manhã de sol, o índio tinha despido o português…” Os colonizadores chegaram e, imediatamente, viraram de costas para Pindorama e passaram a contemplar saudosos o Atlântico. “Pindorama”, “terra das palmeiras”, é a designação tupi-Guarani, retomada por Oswald de Andrade, para a região do litoral da América do Sul onde hoje está parte do Brasil. Os invasores nunca chegaram, nunca entraram, nunca se permitiram… O Brasil nunca chegou neles, nunca entrou neles, nunca foi eles. Para adentrar essa terra de diversidades múltiplas, enviaram seus jagunços, seus bandeirantes, seus escravos. Para criar mais espaço vazio, sem diversidade, sem dança, sem exuberância, sem abundância, para que eles possam respirar. Eles estão, não são… Por séculos, lutaram para transformar a mais atlântica das matas, a mais inspirada das florestas em café, cidade, suor, sangue e sofrimento. Ampliaram o litoral, sua faixa de possibilidades. Enquanto isso, o Brasil fazia-se, cozinhava-se, fervia, fermentava, devorava e era devorado. Para o colono, coisa que os colonizadores nunca deixaram de ser, o país seguia um enigma. Sem conseguir - ou sem tentar decifrá-lo, inúmeros brasis possíveis perderam-se. Se a Atlântica ficou para trás, a Amazônia seguia sendo mistério. ”Começamos hoje um caminho novo, ainda não trilhado por ninguém. Temos diante dos olhos um véu escuro. Deixamos o mundo civilizado para viver entre índios, onças e macacos”. Assim escreveu o alemão, naturalizado russo, Barão de Langsdorff, no dia 22 de junho de 1826, data da partida de sua expedição que, saindo de Porto Feliz, a 125 km de São Paulo, pelo Rio Tietê, chegaria a Santarém, no Pará, depois de inúmeros percalços. A fase fluvial da expedição Langsdorff durou três anos, deixou mortos, feridos e cicatrizes. Lotou caixas com bichos empalhados, amostras de plantas e documentos que ficaram esquecidos por 100 anos nos porões da Academia de Ciências de São Petersburgo, na Rússia. Outras amostras, coletadas pelo biólogo alemão


Ludwig Riedel, acabaram no Museu Nacional (com perdão do trocadilho, acabaram mesmo) e seus diários ainda permanecem inéditos, guardados na Biblioteca Nacional. Os escritos de Langsdorff foram, enfim, traduzidos e publicados em 1998, com um atraso de 170 anos. A Caravana Rolidei, que conduzia os artistas por caminhos que ligavam o litoral até o coração da Amazônia, Altamira (PA) no filme Bye bye Brasil, também é uma expedição exploratória e reveladora do Brasil. Ela não coleta amostras de plantas, mas mostra modos de vida. Não descreve paisagens surpreendentes, mas emoções cotidianas. Não empalha bichos, mas revela ao olhar do brasileiro, eternamente litorâneo, o que acontece nas entranhas do país. E o que acontecia, há apenas 40 anos atrás, era um mar de possibilidades. A rodovia Transamazônica, que acabava de rasgar a floresta, a partir do litoral nordestino, abre caminho para os sonhos dos integrantes da Caravana Rolidei. “Altamira é o centro da Transamazônica. Tem gente do Brasil inteiro indo lá para trabalhar na estrada e depois comprar terra. O abacaxi lá é do tamanho de uma jaca e as árvores do tamanho de um arranha-céu”, diz um caminhoneiro no filme. Assim, como para os trabalhadores da Transamazônica há 50 anos atrás e para os da hidrelétrica de Belo Monte, há 10 anos, Altamira é um repositório de esperanças, nunca concretizadas, perdidas em mais um brasil que poderia ter sido e não foi. Se as intenções do governo Médici de alocar milhares de pessoas em agrovilas ao longo da Transamazônica mostravam um completo desconhecimento da realidade amazônica, a construção de Belo Monte mostrou que a situação segue igual. Os responsáveis pela obra e o poder público a quem cabia fiscalizar sequer sabiam que os ribeirinhos e os beiradeiros existiam, sequer desconfiavam que ali havia pessoas com modos de vida bem distintos e que não eram indígenas. Se a Transamazônica tem cada quilômetro seu manchado de sangue indígena, tantos foram os genocídios e etnocídios, Belo Monte, sucursal do inferno, gera energia a custa da destruição de mundos. Há 40 anos, a floresta, símbolo da exuberância desse país transbordante, era o desafio a ser transposto. Bye bye Brasil despede-se também de um Brasil onde a floresta é o “inferno verde” para ver nascer um país onde a floresta tem lugar, mas é sempre um lugar de luta. 40 anos depois, esse lugar é questionado todos os dias e a floresta volta a ser tratada como uma maldição a ser conjurada, em busca de um outro Brasil. Ecos da marcha fúnebre, que ressoa há 500 anos em homenagem a Mata Atlântica, fazem-se ouvir.


Bye bye Brasil mostra aos brasileiros das grandes cidades um Brasil desconhecido que desaparece à medida que é revelado. A Caravana Rolidei mostra essa nação que vai sumindo, onde as manifestações locais dão lugar a uma cultura pasteurizada e homogeneizadora, que chega com as novelas da TV e com os modismos americanizados. O Brasil que poderia ter sido vira apenas um país de pobres. A diversidade, a exuberância, as possibilidades antropofágicas desaparecem e o país coloniza-se. Deixamos muito para trás… Hoje, nesse mais do que assombroso 2020, onde defender uma floresta, patrimônio de todos os brasileiros, uma das maiores riqueza do país, virou um ato quase subversivo, onde respeitar a diversidade cultural é um desafio, despedimo-nos, outra vez, de um outro Brasil possível. Um Brasil que chegou, como em inúmeras outras ocasiões, a inspirar o mundo. Deu a impressão que o colono chegou mesmo a piscar, virar a cabeça, desviar o olhar do mar e encarar a imensidão brasílica. Mas, não, foi apenas uma ilusão…

Tupi, or not tupi that is que question “Depois que os brancos chegaram a minha aldeia se acabou. Agora vou para a cidade, pacificar os brancos”, Cacique de Marabá, personagem do filme Bye bye Brasil O Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade é composto de 51 aforismos, que poderiam ser distribuídos nos 52 anos que separam sua publicação do lançamento do filme Bye bye Brasil, de Cacá Diegues, em 1980. Assim, de aforismo em aforismo, desembocaríamos na obra cinematográfica, na tentativa de entender de que país parece que desistimos. O Manifesto de Oswald de Andrade pregava a originalidade possível do Brasil, a ideia de que outro caminho poderia ser trilhado, numa amálgama resultante de “desvespuciar e descolombizar a América e descabralizar o Brasil”, mas absorvendo a técnica, de modo a saltar do passado para o futuro, despindo-nos de um presente colonizado. “Será esse o Brasileiro do século XXI?”, pergunta Oswald de Andrade, contemplando as possibilidades desse futuro antropófago, indagação ecoada na dedicatória do filme - “ao povo brasileiro do século XXI”. Mas quem é esse brasileiro do século XXI, a quem ambos se referem? Vale, ainda acrescentar a essa mistura, antes de acionar o liquidificador e ver resultado, alguns versos do poema Hino Nacional


de Carlos Drummond de Andrade, de 1934: “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” Ou talvez, antes ainda de apertar esse botão do liquidificador, deveríamos nos debruçar sobre a questão que o pensador indígena Aílton Krenak apresenta em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”: se somos mesmo uma humanidade, uma vez que estamos nos descolando da Terra e que “os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, uma humanidade que integra um clube seleto, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na terra.” Será que, ao batermos tudo isso no liquidificador, teremos uma resposta única? Ou será que os brasileiros não existem, há apenas sub-brasileiros e pós-brasileiros? Aqueles que eram a esperança do novo, aqueles que poderiam oferecer, de fato, outra forma de ver o mundo, que recusaram o projeto colonial e resistiram por centenas de anos, se consolidaram no alvorecer deste novo milênio, quase 100 anos após o Manifesto Antropófago e 40 anos depois do lançamento do Bye bye Brasil, como sub-brasileiros. O país que emergiu depois de colocar a Amazônia em seu mapa - mas ainda não em seu imaginário, onde ela só ocupará o lugar de lenda - não tem lugar para a diversidade, não tem espaço para outras formas de viver. Os pós-brasileiros, por outro lado, são aqueles que, sem nunca conhecer o Brasil, espetados com suas ilusões no litoral, de costas para a floresta, para o Cerrado e para o sertão, decidem que o Brasil antropófago, o Brasil indígena, o Brasil africano, o Brasil biodiverso e o Brasil criativo já ficaram no passado e que agora somos cristãos, conservadores, monocultores, cinzas, sem graça, nem charme. A relação entre o Brasil - ou um brasil - e os povos indígenas que vivem aqui emerge como uma questão ainda candente, tanto no Manifesto de Oswald de Andrade, cujo tom é dado por seu terceiro aforismo (“Tupi, or not tupi that is the question”), quanto no encontro dos artistas da Caravana Rolidei com índios que seguem para a cidade, na rodovia Transamazônica, em Bye Bye Brasil. Poucos anos depois do lançamento do filme e exatos 60 anos após o Manifesto Antropófago, em 1988 uma nova Constituição inaugurou o que parecia ser uma nova forma de lidar com essa questão: reconhecer os direitos territoriais dos povos


indígenas como direitos originários, existentes independentemente de qualquer outra legislação, a partir da crença que o país poderia abrigar uma diversidade de formas de estar no mundo, desde índios isolados até índios médicos, professores e advogados, que não por isso deixam de ser índios. A ideia de adeus a um país que desaparecia e uma saudação a um Brasil novo que emergia pareceu, brevemente, fazer sentido. O brasileiro do século XXI poderia, enfim, existir. Não tardou, porém, que o projeto do pós-Brasil reagisse: por que conservar florestas se elas podem virar pasto para os bois e ração para porcos chineses? Por que tantas terras para povos indígenas, se podemos usá-las para produzir mais bois e mais ração para porcos chineses? Emergiu o mais cruel do argumentos, o do “marco temporal”. A ideia é que o direito aos territórios indígenas só valeria para quem estivesse em suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Mas e se muitos tivessem sido expulsos por meio de inúmeras e inenarráveis violências de suas terras e ali não se encontrassem, por razões óbvias, nessa ocasião? Esses, então, perdem seu direito ao território. O pós-Brasil deseja mais que isso: eliminar qualquer possibilidade de existir diversidade. É um projeto em todas as dimensões, porque não admite diversidade de formas de estar no mundo, boicotando, ameaçando e amputando os direitos dos povos indígenas e outras comunidades locais e colocando suas vidas em risco cotidianamente; não admite diversidade de paisagens, trocando florestas, áreas úmidas, cerrados e sertões por monoculturas que não alimentam nem a alma, nem o corpo; não admite diversidade de pensamento, empurrando todos para uma forma monotônica de existir; não admite, enfim, que embaixo desse parangolé colorido que é o Brasil deveriam existir vários brasis, convivendo harmonicamente. Assim, nada de brasileiros do século XXI. Não somos brasileiros, não há Brasil. Um nome em um mapa não faz um país, pode designar apenas um monte de ruínas. Bye bye Brasil.

Eu, NURIT BENSUSAN, sou um ex-humana, diante dos descalabros da nossa espécie desisti da humanidade, mas continuo bióloga. Enquanto isso, reflito sobre paisagens e culturas, formas de estar no mundo e as inspirações da natureza. Além disso, escrevo livros, faço jogos e aposto minha vida em usar a imaginação como alavanca pra suspender o céu e promover aquele básico lé-com-cré.


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