Pandemia Crítica 017 - COVID-19: o século XXI começa agora

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COVID-19: o século XXI come¢a agora Jérôme Baschet

Tradução Ana Luiza Braga


Muitos historiadores consideram que o século XX global começou em 1914, ao mesmo tempo que o ciclo das guerras mundiais. Sem dúvida, amanhã se dirá que o século XXI começou em 2020, com a entrada em cena do SARS-CoV-2. Embora o leque de cenários futuros permaneça bastante aberto, a sequência de acontecimentos desencadeada pela propagação do vírus nos oferece, de modo acelerado, uma amostra das catástrofes que continuarão a se intensificar neste mundo convulsionado, marcado pelos efeitos do aquecimento global em curso, rumo a um aumento médio de três ou quatro graus. O que se configura diante de nossos olhos é um entrelaçamento cada vez mais estreito dos múltiplos fatores de crise que um elemento aleatório, ao mesmo tempo imprevisto e amplamente anunciado, pode ativar. O colapso e a desorganização do sistema vivo, o desequilíbrio climático, a decomposição social acelerada, a perda de credibilidade dos governantes e dos sistemas políticos, a expansão de crédito desmedida, a fragilidade financeira e a incapacidade de manutenção de um nível de crescimento suficiente (para mencionar apenas isto) são dinâmicas que se reforçam entre si, gerando uma extrema vulnerabilidade que decorre do fato de que o sistema-mundo se encontra em uma situação de crise estrutural permanente. De agora em diante, toda estabilidade aparente não será mais do que a máscara de uma instabilidade crescente. Phillipe Sansonetti, microbiologista e professor do Collège de France, observou que a COVID-19 é uma “doença do Antropoceno”. A atual pandemia é um fato total, no qual a realidade biológica do vírus é indissociável das condições sociais e sistêmicas de sua existência e difusão. Invocar o Antropoceno – este novo período geológico no qual a espécie humana se tornou uma força capaz de modificar a biosfera em escala global – convida, me parece, a levar em consideração uma tripla temporalidade: primeiro, os anos recentes nos quais, pressionados por evidências perceptíveis, temos tomado consciência, ainda que demasiado lentamente, desta época nova; em seguida,


as décadas posteriores a 1945, com a expansão da sociedade de consumo e a grande aceleração de todos os indicadores da atividade produtiva (e destrutiva) da humanidade; enfim, a virada do século XVIII para o XIX, quando o desencadeamento do ciclo das energias fósseis e da industrialização fez decolar a curva das emissões de gases de efeito estufa, demarcando o início do Antropoceno. O vírus que nos aflige é o enviado do sistema vivo, que vem cobrar a conta pelo turbilhão que nós mesmos provocamos. O Antropoceno se impõe: aconteça o que acontecer, a responsabilidade humana está em jogo. Mas responsabilidade de quem, exatamente? As três temporalidades mencionadas nos permitem ser mais precisos. No horizonte mais imediato, nossa atenção está monopolizada pelo despreparo assombroso da maior parte dos países ocidentais. No caso da França, provoca indignação a desaparição dos estoques de máscaras cirúrgicas que existiam desde 2009 e a indolência que permitiu que os mesmos não fossem repostos a tempo da instalação da epidemia no país. Esta incapacidade de antecipar revela ainda outra doença do nosso tempo: o imediatismo, para o qual nada existe além do agora. O modo neoliberal de gestão hospitalar, com seus frios cálculos, deu conta do resto: falta de recursos, redução do número de leitos, cortes de pessoal, etc. Profissionais da saúde, já sobrecarregados em tempos considerados normais, há anos têm gritado em desespero sem serem escutados. O caráter criminoso das políticas implementadas durante décadas está agora à vista de todos. Como declarou Phillipe Juvin, chefe do setor de emergências do Hospital Pompidou, em Paris: “negligentes e incapazes” fizeram com que agora nos encontremos “totalmente nus diante da epidemia.” E se Emmanuel Macron quis se autoproclamar chefe de guerra, não deveria ignorar que esta retórica, usada por tantos governantes, poderia um dia se voltar (metaforicamente?) na forma de uma acusação de alta traição.


Se nos remetemos à segunda metade do século XX, podemos identificar várias das principais relações causais que explicam a multiplicação das zoonoses, essas doenças provocadas por agentes infecciosos que operam um salto entre espécies e chegam ao ser humano. É notório que a expansão da exploração agropecuária, com seus aparatos de concentração animal, tem deploráveis consequências sanitárias (como a gripe suína e a gripe aviária H5N1, por exemplo). A urbanização excessiva e o desmatamento, por sua vez, reduzem os habitats dos animais selvagens e os levam ao contato com os humanos (HIV e Ebola, especificamente). É possível que esses dois fatores não tenham contribuído à propagação do SARS-CoV-2, embora ainda nos falte maior conhecimento sobre a cadeia de transmissão para poder afirmá-lo ao certo. Contudo, está claro que a venda de animais selvagens no mercado de Wuhan não teria estas consequências se a cidade não tivesse se tornado uma das capitais mundiais da indústria automobilística. De fato, a globalização dos fluxos econômicos é a terceira causa a ser levada em conta, se consideramos que a expansão desmedida do tráfego aéreo foi o principal vetor da rápida difusão planetária do vírus. Mas não podemos parar por aí; é preciso olhar dois séculos mais atrás para dar ao Antropoceno seu verdadeiro nome: Capitaloceno. O fato é que este novo período geológico não foi provocado pela espécie humana em geral, mas por um sistema histórico específico. A principal característica deste sistema, o capitalismo, é que o grosso da produção deve atender, acima de qualquer coisa, à exigência de geração de lucro sobre o dinheiro investido (o capital). Ainda que as configurações sejam variáveis, o mundo está organizado em função das necessidades imperiosas da economia. O resultado disto é uma ruptura civilizacional com toda a experiência humana anterior: à medida que o interesse privado e o individualismo competitivo


se tornam valores supremos, a obsessão pela pura quantidade e a tirania da urgência não fazem mais do que conduzir o ser humano ao esvaziamento do ser. Disso também resulta, sobretudo, uma compulsão produtivista mortífera que é a própria origem da superexploração dos recursos naturais, da desorganização acelerada do sistema vivo e do desequilíbrio climático. Quando sairmos do confinamento e desta emergência sanitária, nada será como antes; isto já foi dito. Mas o que será preciso mudar? Nosso exame de consciência se limitará a uma temporalidade de curto prazo, como é de se temer, ou levará em consideração o ciclo completo do Capitaloceno? Chegamos agora ao limiar do século XXI. A verdadeira guerra a ser disputada não tem o coronavírus como inimigo, mas consistirá no confronto entre duas opções opostas: de um lado, a busca por um mundo onde o fanatismo da mercadoria reine supremo e o produtivismo compulsivo leve ao aprofundamento da devastação em curso; de outro, a invenção, que já se dá em milhares de lugares, de novas formas de existir que rompam com o imperativo categórico da economia, em benefício de uma vida boa para todas e todos. A preferência pela intensidade alegre do qualitativo, em oposição às falsas promessas de um impossível mundo sem limites, poderia se somar aos cuidados dos lugares habitados e das interações do sistema vivo, à construção do comum, ao apoio mútuo e à solidariedade, assim como à capacidade coletiva de auto-organização e autogoverno. O coronavírus chegou para acionar o sinal de alarme e frear o trem louco de uma civilização que corria em direção à destruição em massa da vida. Permitiremos que ele arranque novamente? Isto seria a garantia de novos cataclismos sem precedentes, perto dos quais este que estamos vivendo agora, a posteriori, parecerá tímido. Jérôme Baschet é historiador e foi professor e pesquisador da EHESS (Paris).


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