Pandemia Crítica 024 - Políticas de desaparecimento e niilismo de Estado

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políticas de desaparecimento e niilismo de Estado Jonnefer Barbosa


Os subnotificados da Covid-19 são os desaparecidos políticos de nosso tempo recente. A tão repetida definição da soberania política como um poder de vida e morte, poder de incutir a morte, é insuficiente para abarcar uma governamentalidade neocolonial cujas marcações não se restringem aos corpos dos súditos e cujas estratégias não mais circunscrevem o governo de populações. Produzir desaparecimentos não é apenas aniquilar vidas humanas, mas gerir o apagamento de seus rastros. Sociedades do desaparecimento designam, simultaneamente, rede de múltiplas modalidades de poder e diagrama expressivo do novo padrão governamental em tempos de capitalismo cibernético-financeiro neocolonial. O desaparecimento enquanto técnica governamental expõe uma desterritorialização da gestão biopolítica de populações. Tratava-se nesta de governar a impessoalidade da vida biológica, em seu aspecto de multiplicidade: produtiva, assinalativa (fecundidade, natalidade, mortalidade em registros estatísticos), assimilações ou desvios. A multiplicidade das novas modalidades do poder nas sociedades do desaparecimento expressa-se em diversos e singulares dispositivos, com caracteres e intensidades variáveis. Exemplos disso vão desde a exclusão de dados sobre as mortes causadas por Covid-19 no sistema público de saúde brasileiro (as ditas subnotificações) até a reativação dos cemitérios periféricos como dispositivos de vala comum e a ocultação política de genocídios no contexto da pandemia. Não a vida nua, em termos agambenianos, tampouco a politização da vida biológica, como na formulação de Foucault. As técnicas de desaparecimento produzem uma vida que não deixa rastros. Fazer alguém desaparecer, apagar os rastros desta vida, não se reduz ao ato de matá-la. O desaparecido não


é somente um corpo sujeito à punição de um soberano ou às disciplinas que o sujeitarão. O conceito de vida sem rastros expõe uma paradoxal contra-história da política no ocidente, possibilitando nela incluir desde a história silenciada dos mortos nos navios negreiros, também chamados pelo Império Português de navios tumbeiros, no longo genocídio que atravessou o século XV até o XIX, os desaparecidos políticos na ditaduras latino-americanas a partir dos anos 1960, passando pelos assassinados pelo narcotráfico ou por grupos policiais, militares ou paramilitares de extermínio. O conceito de desaparecimento é um critério de inteligibilidade da política governamental latino-americana. Tomando o contexto brasileiro como exemplo, é impossível estabelecer uma análise minimamente crítica sobre questões de governamentalidade sem analisar a presença oculta, porém constante, não apenas dos extermínios, mas das valas comuns como zonas de desaparecimento de vestígios. As valas comuns no Brasil iniciam-se como um dispositivo colonial escravocrata. Quando uma pessoa capturada e escravizada sobrevivia à travessia intercontinental nos navios tumbeiros, mas morria em solo brasileiro, seja por excesso de trabalho, doenças ou assassinada em punições severas que incluíam a forca, a degola ou o “cozimento em vida” (forma cruel de tortura por imersão em água fervente, em que demais escravizados eram obrigados a aplicar a pena),1 seus cadáveres eram sepultados em valas comuns sem identificação, os chamados “cemitérios de escravos”. As valas comuns disseminaram-se desde então, seja para indigentes ou subversivos, endividados com o narcotráfico ou para toda e qualquer memória que 1 Cf. Cozinhar escravos. Clóvis Moura. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 118.


deva ser obturada, apagada, segundo os cálculos do niilismo de Estado que hoje absorveu as máquinas de guerra criminais, como no Brasil das milícias governantes. Apesar da insistência teórica recente em diferenciar os diagramas da biopolítica e da necropolítica, o próprio Foucault postulava que o governo biopolítico de populações não cancela, mas dá outras intensidades e modalidades ao velho poder soberano de vida e morte. Políticas de desaparecimento posicionam-se em outra inteligibilidade do genocídio. Não só a morte de milhares de anônimos, mas a tática concreta para que tais eventos não sejam assinalados. Se a biopolítica e sua linha de fuga necropolítica agencia-se no corpo vivo de uma população, a produção de desaparecimentos opera sobretudo no plano histórico. As valas comuns após 1888 persistem nos chamados cemitérios de indigentes, em regiões de periferia de grandes cidades brasileiras, como o Cemitério São Luís, entre o Capão Redondo e o Jardim Ângela, na cidade de São Paulo. Chamado de “cemitério dos homicídios”, foi inaugurado em 1981, possuindo 326 mil metros quadrados. É o segundo maior cemitério da América Latina.2 Em 1996, a ONU declarou a região do Jardim Ângela como a área mais violenta do mundo, superando os índices na Cali, que na época vivia um pico de conflitos ligados ao narcotráfico. Segundo Letícia Mori, “no começo da década, eram feitos de 800 a 1.000 sepultamentos por mês, 90% mortos de forma violenta. Era tanta gente enterrada no mesmo dia que os funcionários nem se davam ao trabalho de fechar as covas, porque teriam que ser reabertas logo em seguida.”3 Nos assim 2 O Cemitério da Vila Formosa, que voltou aos noticiários brasileiros no contexto da pandemia, situado na zona leste de São Paulo, foi criado em 1949 e é o maior da América Latina, possuindo com 763 mil metros quadrados. 3 Letícia Mori. “Vida e morte na periferia”. In: Revista Babel, 2011. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/babel/antes/index3. php?tema=Espera&id=17>. Acesso em: 13 abr. 2020.


intitulados “cemitérios de indigentes” como o São Luís, segundo uma regra municipal, após três anos os cadáveres são exumados e enviados a centenas de ossários para dar espaço para novos sepultamentos, em uma política de reutilização das covas.4 Em 1971, durante a ditadura militar, foi construído no bairro de Perus, um cemitério de ingentes chamado Dom Bosco que passou a receber cadáveres de pessoas não identificadas, pobres, mas também vítimas da repressão política. Segundo Edson Teles: em 1990, no dia 4 de setembro, foi aberta a vala de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco, na periferia da cidade de São Paulo. Lá foram encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da morte. Fazia parte do projeto original do cemitério a implantação de um crematório, o que causou estranheza e suspeitas até da empreiteira chamada a construí-lo. Este projeto de cremação dos cadáveres de indigentes, do qual só se tem notícia através da memória dos sepultadores, foi abandonado em 1976. As ossadas exumadas em 1975 foram amontoadas no velório do cemitério e, em 1976, enterradas numa vala clandestina.5

O tema da Vala de Perus é ainda um assunto pendente na política institucional brasileira, com uma lei de anistia que não possibilita o julgamento dos torturadores e assassinos, acrescido do recente desmantelamento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) pelo governo 4 Cf. Rodrigo Russo. “Cemitério dos homicídios”. In: Folha de S. Paulo, 7 de julho de 2016. Disponível em: <http://temas.folha.uol.com.br/ cemiterio-dos-homicidios/introducao/cemiterio-na-zona-sul-de-sp-temfuncionario-com-colete-a-prova-de-balas-e-divisao-de-torcidas-ementerro.shtml>. Acesso em: 13 abr. 2020. 5 Edson Teles. “Vala de Perus”. Disponível em: <http://www. desaparecidospoliticos.org.br/pagina.php?id=39>. Acesso em: 13 abr. 2020.


Bolsonaro, no ano de 2019, com a nomeação de militares para os postos e o encerramento de investigações forenses. As milhares de valas de pessoas escravizadas no genocídio africano no território brasileiro, as valas comuns para ocultar assassinatos políticos, bem como a existência de cemitérios de pobres como o do Jardim Ângela dão conta de uma luta de classes que ocorre na esfera do apagamento de rastros, da destruição massiva de memórias. Se o local próprio da governamentalidade biopolítica foi a metrópole, ou seja, o espaço urbano estabelecido com a passagem do poder territorial da antiga soberania à governamentalidade biopolítica, um governo dos homens e das coisas que tinha como contraponto as necrópoles (νεκρόπολις), termo que em grego designavam os cemitérios, literalmente, “cidade dos mortos”, ou os campos santos na Idade Média, as valas comuns espalhadas pelo mundo e os casos de subnotificação na pandemia são a expressão visível e incômoda não só do extermínio como prática habitual de governo, mas das políticas de desaparecimento, que transformam os antigos territórios da cidade e da metrópole, conceitos então centrais na biopolítica foucaultiana, em locais de desova e ocultação de cadáveres. Curiosamente, são regiões conflagradas como o Brasil, a Colômbia, o México, que hoje expressam regimes específicos de poder que são a pedra de toque da violência do governo neoliberal mundial. Antes de perguntar se um Foucault nonagenário permaneceria em casa na rue Vaugirard durante a quarentena, como o fazem melancolicamente alguns teóricos na atual província europeia, é preferível jogar os conceitos e diagramas foucaultianos, sua função-autor, nas ruas de Paraisópolis ou de Ecatepec, para que as intempéries do presente criem outros agenciamentos com estes: finos ou destrutivos, selvagens ou monstruosos.


Análises recentes sobre a “quarentena mundial” recorrem a Foucault para explicar os vínculos entre as técnicas governamentais biopolíticas – o governo dos vivos – e o fenômeno da pandemia. Um tópico singular, porém, exige ser considerado: os regimes históricos de verdade em que tais tecnologias estão implicadas e aos quais dão visibilidade. Não há continuidade natural entre a peste bubônica, narrada por Boccaccio no séc. XIV, à contenção da varíola por intermédio de uma técnica absolutamente nova, as vacinas, surgidas com os experimentos de Edward Jenner no fim do séc. XVIII, ambas mencionadas por Foucault. A proliferação da Covid-19 e as diversas respostas governamentais à pandemia, sobretudo na realidade brasileira, apenas parcialmente podem ser lidas em termos biopolíticos: o governo biopolítico de populações tornou-se, em nosso tempo, um privilégio de classe. As medidas de quarentena no contexto europeu e americano ou as tecnologias de ciberbiovigilância, segundo o modelo sul-coreano (ou a fusão de ambas as táticas adotadas pela China), são adequadamente assimiláveis aos conceitos da governamentalidade biopolítica. Porém, nos territórios neocolonizados e nas áreas de contenção de pessoas, não importa se na América Latina ou em um campo de refugiados às margens da Europa, a governamentalidade biopolítica cedeu lugar ao niilismo de Estado e às políticas de desaparecimento. O Brasil bolsonarista é um caso paradigmático destes conceitos. Bolsonaro incitou manifestações e conclamou o retorno à “normalidade” – a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção é a normalidade – mesmo possuindo dados sobre o avanço da pandemia e previsões sobre o número de mortos. O informe nº 15/2020, de 23 de março de 2020, emitido pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), tornado secreto pelo Governo Federal, estabeleceu prognósticos sobre


a curva de letalidade do vírus em comparação com outros países. Bolsonaro, sua equipe próxima e o empresariado que lhe dá suporte e aconselhamento sabem que a pandemia levará milhares de brasileiros e brasileiras à morte. O pedido presidencial para que voltemos à normalidade veio acompanhado de uma ampliação do número de documentos públicos que poderão ser considerados secretos. As mortes consideradas como subnotificadas no Brasil são muito mais expressivas que as cifras efetivamente contabilizadas pelo governo. A obturação da realidade dada na censura e na proliferação de mentiras é deliberada e explícita, com o mesmo descaramento da classe média alta protegida em carros de luxo em carreatas genocidas para que os pobres voltem ao trabalho. Jogando com os conceitos benjaminianos, o fascismo hoje no poder incorporou sua própria destituição, ele não tem mais pretensão constituinte e não se sustenta em poderes constituídos ou constitucionais. O niilismo de Estado proclama-se sem qualquer pretensão protetiva, não mais defender a sociedade, mas fazê-la desaparecer. Se a crítica à teologia política operada por Marx em 1844 procedia na retirada das flores imaginárias da servidão, em nosso tempo a própria servidão lançou fora suas ilusões legitimatórias. O niilismo de Estado, que conglomerou e incutiu novos arranjos às formas de gestão em territórios como a América Latina, hoje se dissemina como modelo paradigmático e explicativo de um diagrama governamental mundial. Ultrapassá-lo ou destruí-lo não significará aqui buscar arranjos florais (democráticos, humanistas) para reencantar uma máquina mortífera. Trata-se de mostrar que este niilismo é ainda de um tipo reativo, fruto da covardia defensiva de poucos privilegiados no mundo. Se o niilismo de Estado se escora nas políticas de desaparecimento, nas tentativas de fazer


populações inteiras desaparecerem, como o abandono das favelas e periferias à própria sorte na eclosão de uma pandemia, este niilismo engendra em sua inerente opacidade a emergência insurgente de máquinas de guerra invisíveis, de guerrilhas difusas e menores. Importa é criar outras formas de desaparição, habitá-las comunalmente, fazer uso das invisibilidades. Formas-políticas do esconder-se, a própria sorte agarrada em forma-de-vida, que nunca poderão engendrar uma população biopolítica. Dedico este texto aos estudantes da Escuela Normal Rural “Raúl Isidro Burgos”, em Ayotzinapa, Guerrero, México. À memória dos 43 desaparecidos que lhes faltam, a seus pais e familiares. Jonnefer Barbosa Doutor em Filosofia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP. Autor de livros e artigos na área da filosofia política contemporânea. jonnefer@hotmail.com


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