Pandemia Crítica 026 - O COVID-19 e os circuitos do capital

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o COVID-19 e os circuitos do capital Rob Wallace, Alex Liebman, Luis Fernando Chavez e Rodrick Wallace Tradução Ana Cláudia Holanda e Francisco Augusto Canal Freitas


Cálculo COVID-19, a doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, o segundo vírus de síndrome respiratória aguda grave (SARS) desde 2002, agora é oficialmente uma pandemia. Ao final de março, cidades inteiras estão em estado de emergência e, um por um, os hospitais alertam sobre o congestionamento provocado pelas ondas de pacientes. A China, com seu surto inicial em contração, respira atualmente com mais facilidade. Coréia do Sul e Singapura também. A Europa, especialmente Itália e Espanha, mas cada vez mais outros países, já se dobram sob o peso das mortes ainda no começo do surto. América Latina e África apenas agora estão começando a acumular casos, com alguns países se preparando melhor que outros. Nos Estados Unidos, uma referência senão como o país mais rico na história do mundo, o futuro próximo parece sombrio. O surto não deve atingir seu pico até maio, e os trabalhadores da saúde e os visitantes de hospital já estão lutando pelo acesso aos recursos escassos de equipamentos e de proteção individual. As enfermeiras, a quem os Centros para o Controle e Proteção de Enfermidades (CDC, na sigla em inglês) recomendaram tremendamente usar lenços e cachecóis como máscaras, já declararam que “o sistema está condenado”. Enquanto isso, a administração dos EUA continua se sobrepujando aos estados individuais em licitações por equipamentos médicos básicos após ter-se negado a compra-los em primeiro lugar. Anunciaram também uma ofensiva nas fronteiras como intervenção de saúde pública, enquanto o vírus se alastra pelo interior do país. Uma equipe de epidemiologia no Imperial College projetou que a melhor campanha de mitigação –


capaz de achatar a curva de acumulação de casos traçada, pondo em quarentena os casos detectados e distanciando socialmente os idosos – deixaria ainda os Estados Unidos com um milhão e cem mil mortos e com uma carga de casos oito vezes maior que o total de leitos de terapia intensiva do país. A supressão da enfermidade, para acabar com o surto, levaria a saúde pública ainda mais para um “modelo chinês” de quarentena de pacientes (e seus familiares) e um distanciamento social de toda comunidade, inclusive com o fechamento de instituições. Isso traria os Estados Unidos para uma projeção de cerca de 200 mil mortes. O grupo do Imperial College estima que uma campanha exitosa de supressão teria que ser levada a cabo durante pelo menos dezoito meses, acarretando uma sobrecarga da contração econômica e o desmoronamento dos serviços comunitários. A equipe propôs balancear as demandas de controle da enfermidade e da economia alternando a ativação e desativação da quarentena comunitária, a depender de um nível estabelecido de leitos de tratamento intensivo ocupados. Outros projetistas recuaram. Um grupo liderado por Nassim Taleb, autor do famoso Cisne Negro, declara que o modelo do Imperial College não inclui o rastreio de contatos e o monitoramento porta-a-porta. Seu contraponto omite que o surto superou a vontade de muitos governos de estabelecer esse tipo de cordão sanitário. Não será até que o surto comece a diminuir que muitos países terão visibilidade desse tipo de medidas, com sorte será a prova de sua funcionalidade e precisão, de sua adequação. Como disse um espertalhão: “O coronavírus é muito radical. Os Estados Unidos precisam de um vírus mais moderado para que possamos responder de forma gradual”. O grupo de Taleb assinala a recusa da equipe do Imperial de investigar sob quais condições o vírus


pode ser levado à extinção. Tal erradicação não significa zero casos, mas isolamento suficiente para que os casos individuais não produzam novas cadeias de infecção. Na China, apenas 5% dos suscetíveis que entraram em contato com um caso foram posteriormente infectados. De fato, a equipe de Taleb é a favor do programa de supressão da China, fazendo tudo rápido o suficiente para levar o surto à extinção sem entrar em uma dança das cadeiras, alternando entre controlar a doença e assegurar que não haja escassez de mão de obra na economia. Em outras palavras, a abordagem estrita da China (e de alta demanda de recursos) libera sua população do sequestro de meses, ou mesmo de anos, em que a equipe do Imperial recomenda que outros países participem. O epidemiologista matemático Rodrick Wallace, um de nós, derruba completamente a mesa de modelagem. As modelagens emergenciais, por necessárias que sejam, ignoram quando e por onde começar. As causas estruturais também fazem parte da emergência. Incluí-las nos ajuda a descobrir a melhor forma de responder, além de simplesmente reiniciar a economia que produziu o estrago. “Se os bombeiros receberem recursos suficientes”, escreve Wallace, sob condições normais, a maioria dos incêndios pode ser contida, na maioria das vezes, com poucas baixas e com destruição mínima de propriedades. No entanto, essa contenção depende criticamente de empreendimentos muito menos românticos, mas não menos heroicos, de esforços regulatórios persistentes e contínuos que limitam o avanço do risco por meio do desenvolvimento e da aplicação de normas, o que também garante o fornecimento de recursos de combate a incêndio, saneamento e prevenção em todos os níveis necessários (...).


O contexto é o de infecções pandêmicas, e as atuais estruturas políticas que permitem que empresas agrícolas multinacionais privatizem lucros a medida em que expõem e socializam prejuízos, deveriam se tornar sujeitas à “aplicação de normas” que lhes devolvessem esses custos, se realmente se pretende evitar uma doença pandêmica exterminadora de massas no futuro próximo.

O fracasso em se preparar e reagir ao surto não começou apenas em dezembro, quando países ao redor do mundo falharam em agir assim que o COVID-19 saiu de Wuhan. Nos Estados Unidos, por exemplo, não começou quando Donald Trump desmantelou o time de preparação pandêmica da sua equipe de segurança nacional, ou ao deixar 700 posições do CDC não preenchidas [9]. Também não começou quando as autoridades federais não reagiram aos resultados de uma simulação de pandemia de 2017, mostrando que o país estava despreparado [10]. Nem quando, como declarado na manchete da Reuters, os Estados Unidos “cortaram o posto de trabalho do especialista do CDC na China, meses antes do surto do vírus”, muito embora a falta de um contato prévio e direto de um especialista norte-americano na China certamente enfraquecesse a resposta dos EUA. Nem começou com a infeliz decisão de não usar os kits de teste já disponíveis, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde. Juntos, os atrasos nas informações iniciais e a omissão nas testagens serão, sem dúvida, responsáveis por muitas, provavelmente milhares, de vidas perdidas [11]. Na verdade, as falhas foram programadas décadas atrás, quando os bens comuns compartilhados da saúde pública foram simultaneamente negligenciados e monetizados. [12]. Um país capturado por um regime de epidemiologia individualizada e justin-time – uma contradição profunda – com leitos


e equipamentos hospitalares insuficientes para operações normais, é por definição incapaz de reunir os recursos necessários para buscar um padrão chinês de supressão. Seguindo o argumento da equipe de Taleb sobre estratégias-modelo em termos políticos mais explícitos, o ecologista de doenças Luis Fernando Chaves, outro coautor deste artigo, faz referência à dupla de biólogos dialéticos Richard Levins e Richard Lewontin para concordar que “deixar os números falarem” apenas mascara todas as suposições escondidas de antemão [13]. Modelos como o estudo do Imperial College limitam explicitamente o escopo das análises a questões estreitamente enquadradas na ordem social dominante. Pela forma, eles falham em capturar as forças mais amplas do mercado que direcionam os surtos e as decisões políticas subjacentes às intervenções. Conscientemente ou não, as projeções resultantes colocam a garantia da saúde de todos em segundo plano, incluindo as milhares de pessoas mais vulneráveis que seriam mortas caso um país alternasse entre o controle de doenças e a economia. A visão foucaultiana de um estado agindo sobre uma população em seus próprios interesses representa apenas uma atualização, ainda que mais benigna, do impulso malthusiano para a ideia de imunidade de rebanho que o governo britânico e a Holanda propuseram fazer – deixando o vírus propagar-se sem impedimentos pela população [14]. Há poucas evidências além de uma esperança ideológica de que a imunidade de rebanho garanta a interrupção do surto. O vírus pode prontamente evoluir por baixo do cobertor imunológico da população.


Intervenção O que deveria ser feito? Primeiro, precisamos entender que, ao respondermos à emergência da maneira correta, ainda estaremos envolvidos tanto na necessidade quanto no perigo. Precisamos nacionalizar hospitais, como a Espanha fez em resposta ao surto [15]. Precisamos aumentar enormemente o volume de testes e diminuir o tempo de resposta, como fez Senegal [16]. Precisamos socializar produtos farmacêuticos [17]. Precisamos impor proteções máximas para as equipes médicas, para evitar a redução das equipes. Devemos garantir o direito de reparar ventiladores e outras máquinas médicas [18]. Precisamos começar a produzir em massa coquetéis antivirais, como o remdesivir e a velha cloroquina antimalárica (e quaisquer outros medicamentos que pareçam promissores), enquanto realizamos ensaios clínicos, testamos se eles funcionam fora do laboratório [19]. Um sistema de planejamento deve ser implementado para (1) forçar as empresas a produzir os ventiladores e equipamentos de proteção individual necessários e exigidos pelos profissionais de saúde e (2) priorizar a distribuição para os locais com as maiores necessidades. Precisamos estabelecer uma brigada pandêmica massiva para fornecer a força de trabalho – da pesquisa ao atendimento – que se aproxime do nível da demanda que o vírus (e qualquer outro patógeno que está por vir) está colocando sobre nós. Combinar o número de casos com o número de leitos de tratamento intensivo, equipe e equipamento necessários para que a supressão possa preencher a lacuna atual dos números. Em outras palavras, não podemos aceitar a ideia de meramente sobreviver ao ataque aéreo do COVID-19 que está em curso, apenas para retornar mais tarde ao rastreamento de contatos e isolamento de casos para conduzir o


surto abaixo do seu limite. Precisamos contratar pessoas suficientes para identificar o COVID-19 de casa em casa agora e equipá-las com os equipamentos de proteção necessários, como máscaras adequadas. Ao longo do caminho, precisamos suspender uma sociedade organizada em torno da expropriação, desde os proprietários de terras até as sanções a outros países, para que o povo possa sobreviver tanto à doença quanto à sua cura. Até que esse programa possa ser implementado, no entanto, a maior parte da população ficará largamente abandonada. Mesmo que a pressão contínua deva ser exercida sobre governos recalcitrantes, no espírito de uma tradição amplamente perdida na organização proletária que remonta a 150 anos, as pessoas comuns que são capazes devem se juntar a grupos emergenciais de ajuda mútua e brigadas de vizinhos [20]. Os profissionais de saúde pública de que os sindicatos possam abrir mão poderiam treinar esses grupos para impedir que atos de bondade espalhem o vírus. A insistência em combater as origens estruturais do vírus através de planejamentos de emergência nos oferece uma chave para avançar cada passo adiante em proteger as pessoas antes dos lucros. Um dos muitos perigos está na normalização do “frenesi da merda de morcego” atualmente em curso, uma caracterização por acaso dada a síndrome de que os pacientes sofrem – alegoricamente de “merda de morcego” nos pulmões. Precisamos reter o choque que recebemos quando descobrimos que outro vírus da SARS emergiu de seus refúgios de vida selvagem e em questão de oito semanas se espalhou pela humanidade [21]. O vírus surgiu em um terminal de uma linha regional de fornecimento de alimentos exóticos, desencadeando com sucesso uma cadeia de infecções de humano para humano na outra extremidade de Wuhan, na China [22]. A partir


daí, o surto se difundiu localmente e saltou para aviões e trens, se espalhou por todo o mundo através de uma rede estruturada por conexões de viagens e obedeceu a uma hierarquia de cidades maiores para cidades menores [23]. Mais que descrever o mercado de alimentos silvestres típico do oriente, pouco esforço foi gasto nas questões mais óbvias. Como o setor de alimentos exóticos chegou a poder vender seus produtos ao lado de animais mais tradicionais, no maior mercado de Wuhan? Os animais não estavam sendo vendidos na traseira de um caminhão ou em um beco. Pensem nas permissões e nos pagamentos (e na desregulamentação) envolvidos nisso [24]. Muito além da pesca, os alimentos silvestres em todo o mundo são um setor cada vez mais formalizado, cada vez mais capitalizado pelas mesmas fontes que apoiam a produção industrial [25]. Embora não se assemelhem em quase nada na magnitude da produção, a distinção é agora mais opaca. A geografia econômica sobreposta se estende desde o mercado de Wuhan até o interior, onde alimentos exóticos e tradicionais são criados em transações que fazem fronteira com o limite da selva em contração [26]. Na medida em que a produção industrial invade a última floresta, os negócios de alimentos silvestres precisam avançar mais fundo para alcançar suas iguarias ou invadir as últimas reservas. Como resultado, o mais exótico dos patógenos, neste caso o SARS-2 hospedado em morcegos, encontra seu caminho em um caminhão, seja em produtos alimentícios de origem animal ou no trabalho relacionado a eles, e se projeta de uma extremidade de um longo circuito periurbano para a outra, antes de atingir um alcance global [27].


Infiltração A conexão demanda alguma elaboração, tanto para nos ajudar a planejar o futuro diante desse surto quanto para entender como a humanidade se conduziu para dentro de tal armadilha. Alguns patógenos emergem diretamente dos centros de produção. Bactérias de origem alimentar, como Salmonela e Campylobacter, vêm à mente. Mas muitos vírus como o COVID-19 se originam nas fronteiras da produção do capital. De fato, pelo menos 60% dos novos patógenos humanos emergem ao ser transmitidos de animais selvagens para comunidades humanas locais (antes que os mais bem-sucedidos se espalhem pelo resto do mundo) [28]. Um número de estudiosos no campo da eco-saúde, alguns deles financiados pela Colgate-Palmolive e Johnson & Johnson, empresas que operam na fronteira sangrenta do desmatamento demandado pelo agronegócio, produziram um mapa global com base em surtos anteriores de 1940, sugerindo onde novos patógenos provavelmente surgiriam e começariam a se disseminar [29]. Quanto mais quente a cor no mapa, maior a probabilidade de um novo patógeno surgir ali. Mas, ao confundir essas geografias absolutas, o mapa da equipe – em vermelho forte na China, Índia, Indonésia e partes da América Latina e África – esqueceu um ponto crítico. O foco nas zonas de surto ignora as relações compartilhadas pelos atores econômicos globais que moldam as epidemiologias [30]. O interesse do capital em apoiar o desenvolvimento – e a produção – induziu mudanças no uso da terra e no surgimento de doenças em partes subdesenvolvidas do mundo, e recompensa esforços que atribuem a responsabilidade por surtos epidêmicos às populações indígenas e suas práticas culturais julgadas “sujas” [31]. Preparar carne de animais selvagens e enterros em


casa são duas práticas consideradas culpadas pelo surgimento de novos patógenos. Traçar geografias relacionais, ao contrário, transforma repentinamente Nova York, Londres e Hong Kong, principais fontes do capital global, em três das piores áreas de irradiação do mundo. Enquanto isso, as zonas de surto não são sequer organizadas sob políticas tradicionais. As trocas ecológicas desiguais – redirecionando os piores danos da agricultura industrial para o Sul Global – deixaram de apenas retirar os recursos das localidades através de um imperialismo liderado pelo Estado e passaram a ter novas complexidades de escala e de mercadoria [32]. O agronegócio está reconfigurando suas operações extrativistas em redes espacialmente descontínuas e em territórios de diferentes dimensões [33]. Uma série de “repúblicas da soja” multinacionais, por exemplo, agora abrangem toda a Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil. A nova geografia é incorporada por mudanças na estrutura de gerenciamento empresarial, capitalização, subcontratação, substituições da cadeia de suprimentos, arrendamento e posses transnacionais de terras [34]. Ao ultrapassar as fronteiras nacionais, esses “países mercadoria”, incorporados de maneira flexível em ecologias e fronteiras políticas, estão produzindo novas epidemias ao longo do caminho [35]. Por exemplo, apesar de uma migração generalizada da população de áreas rurais mercantilizadas para favelas urbanas que segue hoje em todo o mundo, a divisão rural-urbana que impulsiona grande parte da discussão sobre o surgimento de doenças não leva em consideração a mão-de-obra rural e o rápido crescimento de cidades rurais em áreas periurbanas como desakotas (vilas da cidade) ou zwischenstadt (cidades intermediárias). Mike Davis e outros identificaram como essas paisagens recémurbanizadas agem como mercados locais e centros


regionais para a passagem de mercadorias agrícolas em trânsito [36]. Algumas dessas regiões até se tornaram “pós-agrícolas” [37]. Como resultado disso, a dinâmica das doenças florestais, as fontes primitivas dos patógenos, não é mais restrita apenas ao interior. As epidemiologias associadas a elas se tornaram relacionais, e são sentidas no tempo e no espaço. Uma SARS pode repentinamente se espalhar para os seres humanos na cidade grande, apenas alguns dias depois de sair de uma caverna de morcegos. Os ecossistemas onde esses vírus “selvagens” estavam em parte controlados pelas complexidades da floresta tropical, estão sendo drasticamente aperfeiçoados pelo desmatamento promovido pelo capital e, no outro extremo do desenvolvimento periurbano, por déficits na rede pública de saúde e no saneamento ambiental [38]. Embora muitos patógenos silvestres estejam se extinguindo junto a suas espécies hospedeiras (como resultado do desmatamento), um subconjunto de infecções que antes se espalhavam relativamente rápido na floresta, mesmo que apenas por uma taxa irregular de encontros entre suas espécies hospedeiras típicas, agora está se propagando por populações humanas suscetíveis cuja vulnerabilidade à infecção é muitas vezes exacerbada nas cidades por programas de austeridade e por corrupção ao nível da regulamentação. Mesmo diante de vacinas eficazes, os surtos resultantes são caracterizados por maior extensão, duração e força. O que antes era um vazamento local agora é uma epidemia que atravessa as redes globais de viagens e de comércio [39]. Por esse efeito de paralaxe – causado por uma mudança na paisagem ambiental – padrões antigos como Ebola, Zika, malária e febre amarela, que evoluíam relativamente pouco, se transformaram rapidamente em ameaças regionais. Eles passaram subitamente de uma transmissão para aldeões


isolados de vez em quando para a infecção de milhares nas capitais. Em um outro aspecto ecológico, até os animais selvagens, reservatórios rotineiros de doenças por um longo período, estão sofrendo consequências. Com suas populações fragmentadas pelo desmatamento, macacos nativos do Novo Mundo suscetíveis à febre amarela do tipo selvagem, à qual foram expostos por pelo menos cem anos, estão perdendo a imunidade de manada e morrendo nas centenas de milhares [41]. Expansão Se somente por sua expansão global, o agronegócio já serve como propulsão e vetor através do qual patógenos de diversas origens migram dos reservatórios mais remotos para os centros populacionais mais internacionalizados [42]. É nele e ao longo do seu caminho que novos patógenos se infiltram nos portões cerrados da agricultura. Quanto mais longas as cadeias de suprimentos associadas e maior a extensão do desmatamento correlacionado, mais diversos (e exóticos) os patógenos zoonóticos que entrarão na cadeia alimentar. Entre os patógenos emergentes e reemergentes recentes de origem agrícola e alimentar, originários de todo o domínio antropogênico, estão a peste suína africana, o Campylobacter , o Cryptosporidium , a Cyclospora, o Ebola Reston, o E. coliO157:H7, a febre aftosa, a hepatite E, a Listeria , o vírus Nipah, a febre Q, a Salmonella, o Vibrio, a Yersinia e uma variedade de novos tipos de gripe, inclusive o H1N1 (2009), H1N2v, H3N2v, H5N1, H5N2, H5Nx, H6N1, H7N1, H7N3, H7N7, H7N9 e H9N2 [43]. Mesmo que não seja intencional, toda a linha de produção capitalista é organizada em torno de práticas que aceleram a evolução da virulência patogênica e sua subsequente transmissão [44].


As monoculturas genéticas em ascensão – animais e plantas com genomas quase idênticos – removem os mecanismos de segurança de imunidade que em populações mais diversas retardam a transmissão [45]. Patógenos agora podem evoluir rapidamente desimpedidos pelos padrões comuns de genótipos de imunidade dos hospedeiros. Enquanto isso, condições de aglomeração deprimem a resposta imune dos indivíduos [46]. Populações maiores de animais agrícolas e as altas densidades das fazendas industriais facilitam uma maior transmissão e uma infecção recorrente [47]. O alto rendimento, parte de qualquer produção industrial, fornece um suprimento continuamente renovado de casos suscetíveis em celeiros, fazendas e em cenários regionais, removendo o limite da evolução da mortalidade por patógenos [48]. Alojar muitos animais juntos recompensa as linhagens que podem se propagar melhor através deles. A redução da idade de abate – para seis semanas em galinhas – provavelmente seleciona patógenos capazes de sobreviver a sistemas imunológicos mais robustos [49]. O aumento da extensão geográfica do comércio e da exportação de animais vivos aumentou a diversidade de segmentos genômicos que seus patógenos associados trocam, aumentando a taxa com que agentes causadores de doenças exploram suas possibilidades evolutivas [50]. Mesmo com a evolução dos patógenos avançando de todas essas formas, há, no entanto, pouca ou nenhuma intervenção, por demanda mesmo da própria indústria, exceto quando se faz necessário resguardar as margens fiscais de um trimestre atingido pela emergência repentina de um surto [51]. A tendência é de que haja menos inspeções governamentais em fazendas e indústrias de processamento de alimentos, legislação contra a vigilância governamental e a exposição por ativistas e legislação contra a divulgação na mídia de informações específicas sobre surtos


mortais. Apesar das recentes vitórias em processos contra a poluição por pesticidas e pela produção de suínos, o comando privado da produção permanece inteiramente focado no lucro. Os danos causados pelos surtos resultantes são externalizados à pecuária, às lavouras, à vida selvagem, aos trabalhadores, aos governos locais e nacionais, aos sistemas de saúde pública e aos sistemas agrários alternativos no exterior como uma questão de prioridade nacional. Nos Estados Unidos, o CDC relata que surtos de origem alimentar estão se expandindo em número de estados afetados e pessoas infectadas [52]. Ou seja, a alienação do capital está jogando a favor dos patógenos. Enquanto o interesse público é filtrado nos portões das fábricas agrícolas e alimentares, os patógenos escoam através da biossegurança que a indústria está disposta a pagar e garantir para o público. A produção cotidiana representa um perigo moral lucrativo que se alimenta da nossa saúde pública. Libertação Há uma ironia reveladora em Nova York, uma das maiores cidades do mundo que se protege contra o COVID-19 a um hemisfério de distância da origem do vírus. Milhões de nova-iorquinos estão se escondendo em empreendimentos habitacionais recentemente coordenados por Alicia Glen, a secretária encarregada por habitação e desenvolvimento econômico em NY até 2018 [53]. Glen é uma ex-executiva da Goldman Sachs que chefiou a empresa de investimentos Urban Investment Group, responsável por financiar projetos de comunidades desse tipo que as outras unidades da empresa ajudaram a precarizar [54]. Glen, obviamente, não é pessoalmente responsável pelo surto, mas é mais um símbolo de como a conexão não está distante de nós. Três anos


antes da cidade contratá-la, em meio a uma crise imobiliária e à Grande Recessão criada em parte por ela mesma, seu ex-empregador, juntamente com o o JPMorgan, o Bank of America, o Citigroup, o Wells Fargo & Co. e o Morgan Stanley, receberam 63% dos fundos para financiamento federal emergencial de empréstimos [55]. O Goldman Sachs, isento de despesas operacionais, apressou-se para diversificar suas participações e sair da crise. O Goldman Sachs adquiriu 60% das ações da Shuanghui Investment and Development, parte do gigante agronegócio chinês que comprou a americana Smithfield Foods, a maior produtora de suínos do mundo [56]. Por US$ 300 milhões obteve também a propriedade total de dez granjas em Fujian e Hunan, uma província de Wuhan localizada bem no meio da área de coleta de alimentos silvestres da cidade [57]. Investiu ainda outros US$ 300 milhões juntamente com o Deutsche Bank para a criação de suínos nas mesmas províncias [58]. As geografias relacionais expostas acima refizeram todo o circuito de volta. Atualmente, existe uma pandemia que afeta os distritos eleitorais de Glen, de apartamento em apartamento, em Nova York, o maior epicentro do COVID-19 dos EUA. Mas também é preciso reconhecer que o torvelinho de causas do surto se origina em parte na própria Nova York, por menor que seja o investimento do Goldman Sachs em um sistema do tamanho da agricultura chinesa. O apontar de dedo nacionalista e racista, desde o “vírus chinês” de Trump e ao longo do espectro liberal, obscurece as diretivas globais interligadas de estado e capital [59]. “Os irmãos inimigos”, como descreveu Karl Marx [60]. As mortes e o dano infligido aos trabalhadores no campo de batalha, na economia e agora em seus sofás lutando para recuperar o fôlego, manifestam duplamente a competição entre as elites para manejar recursos naturais finitos, como também meios compartilhados para dividir e conquistar a


massa da humanidade presa nas engrenagens dessas maquinações. De fato, uma pandemia que surge do modo de produção capitalista e que se espera que o Estado administre, pode por outro lado oferecer uma oportunidade para que os gerentes e beneficiários do sistema possam prosperar. Em meados de fevereiro, cinco senadores dos EUA e vinte deputados despejaram milhões de dólares em ações de propriedade privada em indústrias que provavelmente serão atingidas pela pandemia que se aproxima [61]. Os políticos basearam suas negociações internas em informações confidenciais, mesmo enquanto alguns continuavam a repetir publicamente missivas do regime de que a pandemia não representava tal ameaça. Além dos tais grosseiros atropelamentos, a corrupção tornou-se sistêmica, o que é um marcador do fim do ciclo de acumulação dos EUAs quando o capital remove seus investimentos. Há algo comparativamente anacrônico nos esforços para manter a máquina girando, mesmo se estruturados a partir da ideia de elevar a economia acima da realidade das ecologias primárias (e epidemiologias relacionadas) nas quais se baseia. Para o próprio Goldman Sachs, a pandemia, como as crises anteriores, oferece “espaço para crescer”: Compartilhamos o otimismo de vários especialistas em vacinas e pesquisadores de empresas de biotecnologia com base no bom progresso que foi feito em vários tratamentos e vacinas até o momento. Acreditamos que o medo diminuirá na primeira evidência significativa de tal progresso (...). Tentar investir com base em uma possível meta negativa, quando a meta do final do ano tende a ser substancialmente mais alta, é adequado para os day traders, para os seguidores de


micro tendências e para alguns gerentes de fundos de hedge, mas não para investidores de longo prazo. Como também, não há garantia de que o mercado atingirá níveis mais baixos que possam ser utilizados para justificar vendas hoje. Por outro lado, estamos mais confiantes de que o mercado acabará atingindo a meta mais alta, dada a resiliência e a preeminência da economia norte-americana. E, finalmente, pensamos que os níveis atuais oferecem uma oportunidade de aumentar lentamente os níveis de risco de um portfólio. Para aqueles que estão sentados em um excesso de recursos e têm a capacidade de permanência com a alocação estratégica correta de ativos, este é o momento de começar a aumentar gradualmente as ações da S&P [62].

Chocadas com a carnificina em curso, pessoas de todo o mundo tiram diferentes conclusões [63]. Esses circuitos do capital e de produção que os patógenos marcam com etiquetas radioativas, um após o outro, são considerados injustos. Como caracterizar tais sistemas além do episódico e circunstancial, como fizemos acima? Nosso grupo se esforça para sair de um modelo que parte dos esforços da medicina colonial moderna e que encontra ressonâncias na eco-saúde e na One Health para continuar a culpar os pequenos agricultores indígenas e outras populações nativas pelo desmatamento que leva ao surgimento de doenças mortais [64]. Nossa teoria geral do surgimento neoliberal de doenças, de que a China participa sim, combina: ▪ circuitos globais de capital; ▪ implantação do referido capital para destruir a complexidade ambiental regional que mantém o crescimento da população de patógenos virulentos sob controle;


▪ os consequentes aumentos da incidência e da amplitude taxonômica dos eventos de transmissão; ▪ os crescentes circuitos periurbanos de mercadorias que transportam esses patógenos recém-transmitidos para a pecuária e para o trabalhador, do mais profundo interior às cidades maiores; ▪ as crescentes redes globais de transporte (e de comércio pecuário) que enviam os patógenos dessas cidades para o resto do mundo em tempo recorde; ▪ as maneiras como essas redes reduzem o atrito de transmissão, selecionando espécies de forma a favorecer evolução de patógenos mais mortais para os animais e para as pessoas; ▪ e, entre outras imposições, a de redução da reprodução local da pecuária direcionada para a produção industrial, de forma a reduzir a seleção natural como um recurso do ecossistema para se proteger contra doenças de forma rápida (e quase gratuita). A premissa operacional subjacente é que a causa do COVID-19 e de outros patógenos não se encontra apenas no objeto de qualquer agente infeccioso ou em seu curso clínico, mas também no campo das relações ecossistêmicas que o capital e outras causas estruturais removeram em sua vantagem [65]. A grande variedade de patógenos, de diferentes taxonomias, hospedeiros de origem, modos de transmissão, cursos clínicos e resultados epidemiológicos, e todos os indicadores que direcionam nossos olhos arregalados para os nossos motores de busca a cada surto, marcam diferentes partes e caminhos ao longo dos mesmos tipos de circuitos de uso da terra e acumulação de capital. Um programa geral de intervenção é executado em paralelo muito além da capacidade de um único vírus.


Para evitar os piores resultados daqui em diante, a desalienação indica a próxima grande transição humana: o abandono das ideologias coloniais, a reintrodução da humanidade nos ciclos de regeneração da Terra e a redescoberta do nosso senso de individuação em multidões para além do estado e do capital [66]. Nesse sentido, o economismo, a crença de que todas as causas são apenas econômicas, não será suficiente. O capitalismo global é uma hidra de muitas cabeças que ocupa, internaliza e ordena múltiplas camadas de relação social [67]. O capitalismo opera em terrenos complexos e interligados de raça, classe e gênero a medida em que atualiza os regimes regionais de valores. Sob o risco de aceitar os preceitos do que a historiadora Donna Haraway acusou se tratar de história da salvação – “podemos desarmar a bomba a tempo?” – a desalienação deveria desmantelar essas múltiplas hierarquias de opressão e as formas regionais específicas com que elas contribuem para a acumulação [68]. Nesse curso, deveríamos desviar do caminho das reapropriações expansivas do capital e de seus materialismos produtivos, sociais e simbólicos [69]. Ou seja, na direção oposta do que levaria ao totalitarismo. O capitalismo mercantiliza tudo – a exploração de Marte aqui, o sono ali, as lagoas de lítio, o reparo de respiradores, até a própria sustentabilidade, e assim por diante, essas muitas permutações são encontradas muito além da fábrica e da fazenda. De várias maneiras, quase todo mundo está sujeito ao mercado, o que em um tempo como esse se torna cada vez mais antropomorfizado pelos políticos e não poderia se dar de forma mais clara [70]. Em suma, uma intervenção bem-sucedida que impeça qualquer um dos muitos patógenos que aguardam enfileirados no circuito agroeconômico de matar um bilhão de pessoas, deverá atravessar a porta de um confronto global com o capital e seus


representantes locais, por mais que qualquer soldado individual da burguesia, Glen entre eles, tente mitigar os danos. Como nosso grupo descreve em alguns de nossos trabalhos mais recentes, o agronegócio está em guerra com a saúde pública [71]. E a saúde pública está perdendo. No entanto, se a maioria da humanidade vencer tamanho conflito geracional, podemos voltar a nos reintegrar a um metabolismo planetário que, embora expresso de maneiras diferente de um lugar para o outro, reconecte nossas ecologias e nossas economias [72]. Tais ideais são mais do que questões utópicas. Ao fazer isso, convergiremos para soluções imediatas. Protegeremos a complexidade da floresta e isso evitará que patógenos mortais recrutem hospedeiros em série e os atirem em uma rede mundial de viagens [73]. Reintroduziremos a diversidade de espécies e cultivos, e reintegraremos culturas pecuárias e agrícolas em escalas que impeçam que os patógenos se expandam em termos de virulência e extensão geográfica [74]. Permitiremos que nossos animais se reproduzam no local, recuperando a seleção natural que permitirá que a evolução imunológica rastreie patógenos com rapidez. Em termos gerais, pararemos de tratar a natureza e a comunidade, plenas de tudo o que precisamos para sobreviver, como apenas mais um concorrente a ser eliminado pelo mercado. A saída é nada menos do que permitir o nascimento de um mundo (ou ainda no sentido de um retorno à Terra). Isso ajudará também a resolver – de mangas arregaçadas – muitos dos nossos problemas mais prementes. Nenhum de nós presos em nossas salas de estar de Nova York a Pequim, ou, pior ainda, em luto por nossos mortos, quer passar por um surto desses novamente. Sim, as doenças infecciosas, que na maior parte da história humana foram nossa maior fonte de mortalidade prematura, continuarão sendo uma ameaça. Mas, dado o bestiário de patógenos atualmente em circulação,


com transmissões piores a cada ano, provavelmente estaremos enfrentando outra pandemia mortal em um tempo muito mais curto do que a pausa de cem anos desde 1918. Seria possível mudar fundamentalmente os modos pelos quais nos apropriamos da natureza e chegar ao que seria uma trégua com essas infecções?


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