Pandemia Crítica 029 - Contingência, solidão, interrupção

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contingência, solidão, interrup¢ão Ideias isoladas sobre um tempo com o qual não contávamos Eduardo Pellejero


Em verdade é difícil pensar noutra coisa. Encerrados em casa, bombardeados vinte e quatro sobre vinte e quatro horas pelas notícias sobre os avanços do vírus e a negligência do governo para tratar da epidemia, a vida ameaça reduzir-se a uma ininterrupta reflexão sobre a sobrevivência (a nossa, a dos nossos familiares e amigos, a do neoliberalismo, a do estado de direito, etc., etc.). De resto, furtar-nos ao problema seria desonesto - um crime, como dizia Bataille. A questão é: como se endereçar ao que acontece através de uma experiência não mediada? Sou capaz, somos capazes de escrever algo sobre o que está acontecendo a partir da empobrecida textura da experiência à qual nos submete a quarentena? O que dizer para fazer contar este tempo com o qual não contávamos? Três ideias recorrentes assaltaram-me durante os dias que levo confinado: a ideia da contingência, a ideia da solidão, a ideia da interrupção. Contingência Antes de que tudo isto começasse já me assombravam as questões que levanta a linguagem da contingência, quero dizer os modos problemáticos em que o pensamento humano é capaz de forjar formas capazes de articular o mundo sem obliterar o fundo sem fundo sobre o qual conduzimos a nossa existência. Nietzsche e o dorso do tigre ao qual nos aferramos, pendentes dos nossos sonhos, é uma referência comum quando nos confrontamos com o factum de que o que é poderia não ser - e eventualmente não será. Mas nas aulas, algumas vezes, as formas filosóficas do problema davam lugar a uma consideração sobre os modos em que o impercetível é capaz de pôr em causa todos os nossos projetos, confundindo-os num mesmo e prometido fracasso; por exemplo, um mosquito, um mosquito de nada põe fim às aspirações de centenas


de pessoas, e isso ano após ano, sem trégua: canções, arquiteturas, revoltas desvanecem-se no ar pela picada de um inseto que habitualmente espantamos com um gesto distraído da mão, silenciando ao mesmo tempo o zumbido que nos impede o sono. Agora essa consciência trágica, em si perturbadora, não nos deixa, manifestandose em cifras e figuras que afirmam sem ambages que, como numa roleta russa, podemos ser os próximos. Daí a negação desesperada e perigosa dos que se manifestam nas ruas mascarados de morte. O certo é que logo não haverá ninguém que não tenha perdido alguém próximo, alguém querido e, em geral, todos teremos perdido demasiado. O mundo, tal como o conhecemos, terá desaparecido. Seguramente as estruturas tentarão seguir reproduzindo-se sem variações, mas algo importante terá mudado para sempre: o cinismo no qual nos comprazemos terá dado lugar a outras formas de encarar o real e as representações que fazemos sobre a realidade. Arriscar qualquer hipótese seria inconsequente. É certo que especular não custa nada e muitos fazem as suas apostas. Mas é como apostar na roleta russa - um gesto repugnante. Solidão Este tempo com o qual não contávamos, e que tanto contamos, como diz Carmen1, também transfigurou para 1 “A gata entrou duas vezes empapada do horto. Carmen Porris teve duas vezes medo de que a gata morresse de resfriado. O cachorro tentou oito vezes subir ao sofá, três vezes conseguiu e três vezes tive que dizerlhe para descer. Carmen Porris viu dois episódios repetidos de Colombo e um filme sombrio sobre Cinderela. Fizemos exercício vinte e seis minutos. Lavámos a louça três vezes. Cozinhamos duas vezes. Lorena levou a passear o cachorro duas vezes, eu uma. Ouvimos dezanove mariachis. Recebi uma chamada telefónica da minha amiga Lucía. Falei com Marina um bocado. Li quatro vezes uma carta de Kafka. Calculei vagamente quatro vezes quanto tempo poderemos continuar pagando as contas e a comida. Li zero artigos da imprensa. Me imaginei uma vez trabalhando como professora num futuro que não consigo ver com claridade. Lembrei duas vezes o caminho a casa da minha amiga Irene. Planeei uma vez com Pedro encontrar-nos às escondidas na sua loja. Me imaginei de maneira difusa ao longo de todo o dia deitada sobre outro corpo nu. Fizemos hoje, devagar, um número indeterminado de coisas minúsculas que não lembro, neste tempo que tanto estamos contando.” (Carmen Rivera Parra, Múrcia, 28/03/2020)


mim, não apenas a ideia, mas o próprio hábito da solidão. A solidão sempre foi uma necessidade para mim, a melhor forma de resguardar-me do mundo e de ir ao seu encontro, a atmosfera irrespirável sem a qual perco o fôlego, a clausura que me abre aos outros e me permite ver além do meu nariz, o lugar onde se consuma a morte de deus e se torna possível conduzir o pensamento além das identificações imaginárias que cobram a nossa adesão total à realidade e suas mistificações. Procurar e encontrar a solidão ocuparam-me toda a minha vida; o resto, nela, nunca exigiu senão o resto de mim. Mas a solidão não é o isolamento, nem físico nem social. A solidão não é a redução do mundo ao pessoal, ao familiar o ao caseiro. De fato, a solidão torna-se quase impossível quando somos privados do mundo. A consumação da morte de deus só ganha sentido como consequência da afirmação do mundo. E essa afirmação leva semanas em suspenso. Logo, a solidão converteuse em algo obsceno e me envergonho de não ser capaz de transpor as suas fronteiras. Necessito, necessitamos reinventar a solidão, indo ao encontro dos outros; por exemplo, através da escrita, da música, da imaginação política - sem imagens de um objeto ou um fim a alcançar. Interrupção As vidas estão feitas de interrupções. Por exemplo, viajamos e o tempo deixa de fluir da maneira em que o faz habitualmente: tomamos tempo, vemos as coisas de outro modo. Não sei aonde chegaríamos sem isso: as viagens - incluídas as viagens que fazemos sem sair do lugar. Soa uma música de fundo - Zorzal, de Alex Krieger -, deixo-me embalar pela melodia e o grão da voz, fecho os olhos, viajo! As interrupções são também o próprio da crítica; a sua forma mínima desdobra o nosso olhar num piscar de olhos. As próprias


imagens que fazemos do real são uma interrupção das estruturas simbólicas através das quais o real nos é dado e confiscado. Até o mundo vive de interrupções, e assim se oferece ao mundo sob as formas da utopia. A greve geral é a figura absoluta desse espaçamento do desejo, mas certamente todos temos numerosas experiências de interrupções menores, porém não menos radicais, que, pausando a vida, a relançam ou reinventam aí onde têm lugar. Por exemplo, no ano que passamos no México os estudantes fizeram uma paralisação contra o aumento dos transportes; não apenas ficaram desertos os colégios e as universidades, os estudantes tomaram as ruas e, dispondo-se estrategicamente em algumas esquinas, fecharam o centro histórico; sem trânsito, a cidade transfigurou-se por completo e as pessoas, mesmo as pessoas que em geral se posicionam contra esse tipo de manifestações, viveram intensamente essa pausa, experimentando em ato a utopia de uma cidade à escala humana - e caminhavam pelas ruas inesperadamente silenciosas, patinavam, encontravam-se, riam. Como fazer para explorar o potencial utópico da pausa que nos impõe, sem objeto, esta crise? O que podemos fazer para que não se reduza a ser mais uma forma de colocar as nossas vidas em perspectiva ou ordenar os nossos assuntos pendentes (mesmo que isso possa contribuir também, sem lugar para dúvidas, para a mudança do impessoal)? Não há nada que possamos fazer para nos precaver da contingência, mas seguramente podemos fazer jogar a contingência contra tudo aquilo que se pretende impor como necessário no mundo e em nós. O possível e o necessário são meras figuras da nossa humanidade. Apenas o existente é comum a nós e ao universo. E o existente põe em causa a necessidade ao mesmo tempo que volta a colocar em jogo o possível. Fá-lo agora, como a cada


momento, incansavelmente, impercetivelmente, violentando a nossa sensibilidade e pondo em movimento a nossa imaginação. Me pergunto se, em meio deste isolamento forçado, seremos capazes de encontrar a solidão necessária para contribuir de alguma maneira para que, entre nós e o universo, o mundo se converta em algo mais do que uma mistificação encobridora da máquina capitalista; se essa estúpida e mortífera manifestação da contingência conseguirá revelarnos algo mais do que a finitude que assombra até os nossos sonhos mais nobres, mais honestos; se esta interrupção das vidas que conduzíamos sem questionar e das ideias que carregávamos sem consciência crítica será suficiente para agitar mais uma vez a imponderável chama da liberdade. Eduardo Pellejero é professor de Estética Filosófica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de O que vi - Diário de um espectador comum (2018) e Justiça poética – palavras e imagens fora de ordem (2019).


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