dissecando o autoritarismo relutante e capacitista frente ao coronavírus no Brasil Francisco Ortega e Michael Orsini
Os brasileiros, diz o presidente Jair Bolsonaro, são tão durões que podem se defender do irritante vírus COVID-19, o mesmo vírus que já matou mais de 154.800 pessoas no mundo todo e a cifra segue aumentando. Comparando o coronavírus com uma “gripezinha, o líder brasileiro expôs, mais uma vez, seu estilo de governar o país através de uma mistura tóxica de desconfiança populista em relação à ciência, capacitismo e uma dose de masculinidade, insuflada por um fervor nacionalista. Primeiro, Bolsonaro relutou em usar o punho de ferro do Estado para impor bloqueios a fim de impedir a disseminação da COVID-19, como fizeram líderes em países muito menos autoritários. Para não ser confundido com líderes que representam uma ameaça às liberdades civis ao imporem o distanciamento social, Bolsonaro riu da necessidade de medidas extremas, argumentando que o “isolamento vertical” de idosos ou outras pessoas vulneráveis é suficiente. Alguns comentaristas temem que líderes autoritários estejam usando a crise do COVID-19 para impor medidas draconianas, silenciar os críticos e garantir sua base de poder. Eles alertam que, depois que a crise de saúde pública diminuir, a consolidação do poder será o principal legado duradouro da pandemia. Exemplos notórios incluem o primeiro-ministro húngaro Orbán, que declarou o estado de emergência que lhe permite se consolidar e governar por decreto, e o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, que se concedeu poderes de emergência com a desculpa de silenciar disseminadores de ‘fakenews’. Enquanto o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu se amparou no coronavírus para suspender os tribunais, adiando efetivamente seu próprio julgamento por acusações de corrupção, outros governos, como os da Argélia e da Índia,
contam com a ameaça de uma pandemia para reprimir manifestações políticas. E outros como China, Coreia do Sul e Rússia usaram a pandemia da COVID-19 para fortalecer a vigilância digital (Roth, 2020). Todos eles compartilham um estilo de politização pandêmica que não nega a ciência; ao contrário, mobiliza evidências científicas para justificar e aplicar abordagens punitivas para o policiamento da pandemia. A politização da pandemia de Bolsonaro, em contrapartida, é curiosamente diferente. Ele exerce um tipo de autoritarismo relutante. É óbvio que gostaria de ser um ditador; no entanto, ele não pode usar o medo pandêmico como seus ‘amigos’ autoritários têm feito em outros países porque teme as consequências políticas da crise econômica. Ele não usou o coronavírus para tomar o poder e reprimir a sociedade e seus críticos. Uma coisa é clara, Bolsonaro não aprecia a democracia, nem os freios e contrapesos ao seu poder. Ele acredita firmemente que um golpe militar resolveria os problemas do país, mas também sabe que não tem o apoio da cúpula militar para transformar o Brasil em uma ditadura à imagem de Orbán, na Hungria. Obcecado com sua própria sobrevivência política, Bolsonaro forjou uma falsa dicotomia entre quarentena e economia. Nisso, ele segue uma certa lógica: o possível colapso da economia após o distanciamento social minaria seu futuro político e sua reeleição em 2022. Suas tentativas de concentrar o poder no governo federal e usálo para combater o distanciamento social e outras políticas para controlar a disseminação da COVID-19 até agora não tiveram êxito. As políticas para limitar a circulação de pessoas foram promulgadas pelas autoridades estaduais e municipais e foram endossadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Até alguns membros do
gabinete de Bolsonaro manifestaram preocupação com sua oposição às políticas de bloqueio, incluindo seu ministro da Saúde, que foi demitido abruptamente em 16 de abril pelo presidente. A disseminação global da COVID-19 introduziu uma importante mudança na posição do poder legislativo em relação ao discurso autoritário de Bolsonaro, que é tolerado enquanto as políticas econômicas neoliberais permanecerem em vigor. Agora Bolsonaro está isolado em sua defesa da quarentena vertical e em sua disseminação de mentiras sobre a pandemia. O cenário caótico atual é intencional para alguém que confia no ‘caos como método’ para manter a lealdade de seus seguidores e espalhar desinformação (Meyer e Bustamante, 2020). É difícil ignorar as características necropolíticas desse exercício grotesco de poder. Como explica o filósofo Achille Mbembe (2003, 40) em sua crítica à noção de biopoder e elaboração da noção de necropolítica e necropoder, “em nosso mundo contemporâneo, armas são empregadas no interesse da máxima destruição de pessoas e da criação de mundos-morte - novas e únicas formas de existência social nas quais vastas populações estão sujeitas a condições de vida que lhes conferem o status de mortos-vivos.” Os países que ignoraram ou atrasaram os pedidos de isolamento social agora devem enfrentar o empilhamento dos cadáveres. Como escreve um jornalista de The Intercept Brasil, “É assim que agem os adeptos da necropolítica: negociando em cima do número de cadáveres para sustentar uma narrativa política fabricada ao arrepio da ciência” (Filho, 2020). Para evitar a propagação caótica do vírus e um número crescente de mortes no país densamente povoado, a cúpula militar decidiu contornar Bolsonaro em todas as decisões importantes, transformando o presidente em um ‘monarca sem poder efetivo’ e o general Braga Netto no ‘presidente operacional’ (Rocha, 2020).
Mais um líder messiânico com uma propensão a pronunciamentos explosivos que geram choque e estupefação midiática, Bolsonaro aproveitou um desejo nacionalista e populista de posicionar ele próprio e seus compatriotas (misóginos não estão interessados em mulheres como sujeitos políticos) como duros e ‘self-made’ individualistas. O Brasil até tem vivido uma série de manifestações ‘própandêmicas’ e ‘coronafests’ de seus apoiadores proclamando uma nova versão do “medo vermelho”, com alegações de que o vírus faz parte de uma conspiração comunista maligna para desestabilizar o mundo e estimular mudanças de regime político. Segundo, Bolsonaro deu um passo além da exploração de uma profunda desconfiança em relação à ciência, que tem sido explorada por líderes como o presidente dos EUA, Donald Trump. Embora não seja surpreendente que Bolsonaro questione a legitimidade de conselhos de especialistas para manter um bloqueio e um distanciamento social, ele se cercou de uma série de personagens cujas opiniões são extremas - o equivalente a criacionistas e terraplanistas. Seu próprio cálculo político pode ser astuciosamente racional: focado diretamente em sua própria sobrevivência política, Bolsonaro pode estar justificadamente preocupado com a forma pela qual um ‘lockdown’, a suspensão total das atividades, pode acelerar o colapso econômico do país, algo de que ele quer se distanciar (política e socialmente). Manter uma forma de “ignorância estratégica” (ver McGoey 2012) sobre o desastre da saúde pública que se desenrola no país pode ser politicamente conveniente, embora moralmente repreensível. Isso inclui a intrigante declaração de Bolsonaro de que o fim da pandemia estava no horizonte, quando o consenso entre os especialistas em saúde pública é que o Brasil ainda não experimentou o pior que essa pandemia lhe reserva. Ou seja, como Linsey McGoey observa (2012, 3), “a negação de fatos
perturbadores, a percepção de que saber o mínimo possível é frequentemente a ferramenta mais indispensável para gerenciar riscos e exonerar-se da culpa após os eventos catastróficos”. O discurso político de Bolsonaro foi descrito como uma ‘guerra à verdade’ total pela cineasta brasileira indicada ao Oscar Petra Costa, que foi chamada de ‘canalha’ por Eduardo Bolsonaro. A negação das mudanças climáticas subjacente à sua política ambiental, sua visão revisionista da história que exalta a ditadura brasileira, uma política cultural baseada em valores conservadores, religiosos e familiares e a oposição à igualdade de gênero são alguns dos elementos dessa visão pós-verdade. Bolsonaro também vem trabalhando incansavelmente para minar as instituições públicas. Por exemplo, ele nomeou um criacionista para chefiar a CAPES, alguém que nega a existência de racismo para se encarregar da defesa dos Direitos dos Negros no Brasil e transferiu para o ministério de agricultura a tarefa de demarcar novas terras indígenas (Bustamante e Meyer, 2020). Se isso não bastasse, os principais membros de seu círculo interno se identificam com o terraplanismo, que renuncia a grande parte do consenso científico em que nosso mundo se baseia. Os terraplanistas são reforçados em suas crenças pelos evangélicos. O guarda-chuva ideológico do terraplanismo acomoda uma verdadeira sacola de lixo que inclui conspirações comunistas, movimentos de antivacinação, liberdade de expressão de gênero, kit gays y mamadeiras de pirocas, entre outros. A postura anticientífica de Bolsonaro não deve ser confundida com uma postura crítica em relação à ciência, que é uma característica necessária da governança democrática. Ele e membros de seu governo disseminaram deliberadamente notícias falsas sobre a COVID-19, como a promoção da
hidroxicloroquina como um possível tratamento ou a ideia de isolamento vertical para promover a imunidade do rebanho em oposição ao distanciamento social. Bolsonaro até distorceu uma declaração do diretor da OMS para defender a ideia de que os trabalhadores podem voltar à normalidade. Parte do desafio de interpretar o manejo de COVID-19 por Bolsonaro é que, embora sua oposição ao distanciamento social seja alimentada por uma rejeição da ciência e da experiência, países como a Suécia também relutam em impor um ‘lockdown’. Como, então, devemos caracterizar o estilo de governança de Bolsonaro, e o que isso significa para a resposta do Brasil a essa esmagadora crise de saúde pública, que muitos observadores concordam que provavelmente é mais significativa do que os dados oficiais estão comunicando? Por fim, afirmamos que o estilo de governança de Bolsonaro se baseia em uma mistura de capacitismo e masculinidade tóxica. O capacitismo referese a uma “rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de eu e de corpo (o padrão corporal) que é projetado como perfeito, típico da espécie e, portanto, essencial e totalmente humano. A deficiência é, então, apresentada como um estado diminuído de ser humano” (Campbell, 2001, 44 citado em Campbell 2009, 5). A retórica de Bolsonaro é fortemente investida em sua aptidão moral e física, que supostamente pode construir um muro contra essa ‘gripezinha’. O capacitismo, é claro, não se expressa simplesmente no nível do indivíduo. Ele irradia além e, neste caso, carrega consigo força simbólica como representante da saúde e vitalidade do povo brasileiro. Afinal, como proclamou Bolsonaro, os brasileiros são a personificação da preparação para uma pandemia: “Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.”
O capacitismo tem sido uma realidade proeminente dessa pandemia em muitos países. As sugestões iniciais de que a pandemia ‘afetaria’ apenas os idosos ou pessoas com condições subjacentes enviam uma mensagem dolorosa de que algumas vidas são mais importantes do que outras. Como os ativistas da deficiência se esforçam em explicar, ouvir que suas vidas são descartáveis ou prescindíveis, ou podem se dar mal na loteria de triagem, forneceu mais evidências do valor inferior atribuído à vida de indivíduos com deficiência. Como a filósofo Shelley Tremain explica (2020), embora seja comum mobilizar a linguagem da vulnerabilidade em relação à deficiência, em nossa compaixão por outros “vulneráveis”, devemos evitar naturalizar o termo “vulnerabilidade”. Os indivíduos, ela explica, “tornam-se vulneráveis” por sistemas e instituições: “Vulnerabilidade não é uma característica que certos indivíduos possuam ou incorporem. Como a deficiência, a vulnerabilidade é um aparato naturalizado de poder que produz indivíduos de maneira diferenciada, material, social, política e relacional.” Bolsonaro tem uma história vergonhosa de desrespeito aos direitos das pessoas com deficiência. Durante sua campanha eleitoral, ele classificou políticas criadas especificamente para grupos vulneráveis como ‘coitadismo’. Seus pronunciamentos são traduzidos para a linguagem de sinais, mas ele descartou a Secretaria responsável pela educação de surdos. Seu governo apresentou um projeto de lei que não exige mais que as empresas cumpram sua obrigação de contratar funcionários com deficiência. Além disso, ele vetou a expansão do auxílio emergencial de R$600 para idosos e deficientes de baixa renda. O auxílio foi originalmente projetado para apoiar trabalhadores informais e autônomos durante a pandemia. A marca de masculinidade tóxica de Bolsonaro é intensa, até rivalizando com a de seu irmão
de sangue, Donald Trump. “O vírus tá aí, vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque”, disse ele recentemente. Aparentemente, homens de verdade podem suportar muito e não deixariam um mero vírus interferir em suas importantes vidas. Bolsonaro, que diz que o vírus não é páreo para o seu eu virulento, foi testado duas vezes para a COVID-19. Ele, no entanto, se recusou a revelar os resultados dos testes. Porque homens de verdade têm direitos de privacidade! Por fim, parece que os traços masculinos tóxicos de líderes como Bolsonaro e Trump são a última coisa de que precisamos para gerenciar uma pandemia tão complexa e multifacetada quanto a COVID-19. Como foi apontado, países liderados por mulheres, incluindo Jacinta Ardern da Nova Zelândia e Angela Merkel da Alemanha, estão liderando com respostas coordenadas que não são apenas baseadas em evidências, mas também baseadas na empatia e em uma ética coletiva do cuidado. Bibliografia Bustamante, Thomas da Rosa & Meyer, Emilio Peluso Neder (2020), “Bolsonarism & Covid-19: Truth Strikes Back”, Int’l J. Const. L. Blog, 24 Março. 24.http://www.iconnectblog.com/2020/03/ bolsonarism-and-covid-19-truth-strikes-back/ Campbell, Fiona Kumari (2009), Contours of Ableism: The Production of Disability and Ableness. New York, NY: Palgrave Macmillan. Filho, Joao (2020), “Coronavírus: mentiras fabricadas pelo ‘gabinete do ódio’ ditam ações do presidente no combate à pandemia”, The Intercept Brasil. 12 Abril. https://theintercept. com/2020/04/12/gabinete-odio-coronavirusbolsonaro/ Mbembe, Achille (2003), (translated by Libby Meintjes) “Necropolitics”, Public Culture, (15) 1: 11-40.
McGoey, Linsey (2012), “Strategic unknowns: towards a sociology of ignorance”, Economy and Society, 41:1, 1-16. Meyer, Emilio Peluso Neder and Bustamante, Thomas (2020), “Authoritarianism Without Emergency Powers: Brazil Under COVID-19”, VerfBlog, 8 Abril. https://verfassungsblog.de/authoritarianismwithout-emergency-powers-brazil-under-covid-19/. Rocha, Lucas (2020), “Por pressão do Exército, Braga Netto atua como presidente no lugar de Bolsonaro”, Forum. 3 abril. https://revistaforum. com.br/politica/por-pressao-do-exercito-braganetto-atua-como-presidente-no-lugar-de-bolsonaro/ Tremain, Shelley (2020), “COVID-19 and the Naturalization of Vulnerability”, 1 Abril. https://biopoliticalphilosophy. com/2020/04/01/covid-19-and-the-naturalizationof-vulnerability/?fbclid=IwAR0KdKRjoeCkO_ jMPlAokKTdvxrA1YFmc6D1KVZOVJYJa7BJFmk_dkXugSA Publicado originalmente em http://somatosphere.net/2020/governing-covid-in-brazildissecting-the-ableist-and-reluctant-authoritarian.html/
Francisco Ortega é professor titular do Instituto de Medicina Social da UERJ e professor visitante do Department of Global Health and Social Medicine do King’s College, de Londres. Michael Orsini é professor titular do Institute of Feminist and Gender Studies e da School of Political Studies da Universidade de Ottawa (Canadá)