a palavra como luto e como luta Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Essa fumaça estéril de palavras não me faz justiça
Tarde de domingo, leio a frase de Lucrécia, que conclui pela inanidade do interminável monólogo com que tenta justificar seu suicídio.1 Tarde em que rumino, num interminável monólogo interior, sobre a paisagem de silêncio que contemplo em minha volta. Lá fora, no bairro de classe média em que vivo, a sensação é de profundo vazio e desalento. As ruas desertadas, já não emitem as mesmas sonoridades estridentes de costume. Apenas uma motocicleta passa furtiva, como que fugindo do inimigo invisível que parece perseguir a todos. Estamos diante de uma paisagem do medo e da angústia, e o silêncio é o signo mais eloquente de que algo se passa, de que algo incomum acontece.2 A piscina do prédio ao lado, sempre ruidosa e festiva, nos longos fins de semana, que costumam começar nas quintas-feiras à noite, queda abandonada, esvaziada e como que devastada pelo toque de recolher, que parece ter atingido a todos. Numa casa ao lado, alguém enche o ar com o som de uma flauta, que aprofunda a melancolia desse final de tarde. Enfadado de assistir televisão, de ficar a frente do computador, por horas a fio, de ouvir música, desligo todos os aparelhos domésticos, voltados para preencher o tempo e impedir que o silêncio se instale no apartamento. Com o silêncio, a solidão, o abandono e o desamparo, que são a condição mesma do ser humano, parecem se materializar à minha frente.3 E me ponho a recordar uma das teses do livro de David Le Breton sobre o silêncio: os homens criaram as palavras para evitarem o silêncio aterrador, esses 1 SHAKESPEARE, William. La violación de Lucrecia. Bogotá: Norma, 2004. 2 TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: UNESP, 2006. 3 Ver: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
momentos em que a divindade parecia estar prestes a fazer sua aparição tremenda, esses momentos de encontro consigo mesmo, em que todas as questões acerca do sentido do existir nos assaltam e nos dilaceram.4 Nessa tarde, em que o latido distante de um cachorro, parece ser o eco de uma forma de vida que se esgotou, parece remeter para um tempo findo, medito, como Lucrécia, sobre a esterilidade da palavra, sobre a futilidade do dizer, em dadas situações. O mundo, devastado pela pandemia do coronavírus, parece ter reencontrado o silêncio, que a ruidosa modernidade tentou exorcizar, de todas as formas. As grandes metrópoles, refúgios majestosos daqueles que buscam a fuga do silencioso e do silenciamento, voltam a se deparar com o fantasma que tentaram sepultar. Inimigo silencioso, invisível, insidioso, o vírus não respeita barreiras de som e nem se deixa afugentar pelo ruído. O vírus se instala, silencioso, em nossas entranhas e inicia seu trabalho de reprodução silente. Quando as gargantas e os pulmões começam a emitir sons: tosse, pigarro, chiado, descobre-se aterrado que o agente silencioso fez o seu trabalho. Mas, contraditoriamente, a pandemia e seu agente invisível, silencioso, inodoro, insípido, intáctil, portanto, quase inexistente, fez brotar um turbilhão de palavras. É impossível não se ler, escutar, dizer algo acerca do coronavírus. Importantes filósofos contemporâneos não tardaram a publicar livros e textos sobre o assunto.5 4 LE BRETON, David. Do silêncio. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. 5 AGAMBEN, Giorgio. A invenção de uma epidemia; NANCY Jean-Luc. Exceção viral; ESPOSITO, Roberto. Curado até o fim amargo; BENVENUTO, Sérgio. Bem-vindo à reclusão; DWIVEDI, Divya e MOHAN, Shaj. A comunidade dos abandonados: uma resposta a Agamben e Nancy; RONCHI, Ronco. As virtudes do vírus; AGAMBEN, Giorgio. Esclarecimentos; BENVENUTO, Sergio. Esqueça Agamben; DE CAROLIS, Massimo. A ameaça de contágio; MOHAN, Shaj. O que nos leva; NANCY, Jean-Luc. Um vírus muito humano; In: EuropeanJournalofPsychoanalysis. Nova York, 2020. https://www.journalpsychoanalysis.eu/coronavirus-and-philosophers/. Acesso 16/04/2020.
Ensaístas relacionam a pandemia com os mais variados aspectos da vida social.6 Os jornalistas, nos meios impressos, digitais e audiovisuais, nos cumulam de informações, a cada minuto, sobre a peste.7 Nas redes sociais debate-se acaloradamente o assunto e seus desdobramentos. Nossos celulares não param de receber mensagens relacionadas com o tema. O vírus já foi pensado à luz do capitalismo, do neoliberalismo, da luta de classes e, inclusive, como agente de um possível novo comunismo. O agente silencioso parece ter desatado a nossa compulsão por dizer, por falar, por utilizar as palavras, na tentativa de compreender, entender, explicar, especular, na tentativa de dizer o que nos está acontecendo. O vírus fez a palavra viralizar, fez com que, mais uma vez, tentemos, desesperadamente, tamponar o silêncio, que nos apavora, justamente, por nos lembrar da morte, por trazer para muito perto de nós, assim como faz a pandemia, o espectro do cadáver, o corpo definitivamente entregue ao silêncio. Creio que uma narrativa mítica para a origem da linguagem, para a pronunciação pioneira da palavra, bem poderia pôr em cena um grupo de humanoides reunidos em torno do corpo de um companheiro que, de repente, se prostrou no solo e se quedou inerte. Aturdidos e aterrorizados, cada membro do grupo, procurando no rosto do outro, do companheiro ao lado, uma explicação para aquele corpo que silenciara, completamente, até mesmo em seus ruídos corporais. Na aflição 6 HARVEY, David; ZIZEK, Slavoj; BADIOU, Alan; DAVIS, Mike; BIHR, Alain; ZIBECHI, Raúl. Coronavírus e a luta de classes. Fortaleza/Teresina: Terra sem Amos, 2020; HARARI, YuvalNoah. Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020; SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Rio de Janeiro: Boitempo, 2020 7GRAEBER, David. Pandemia expõe a Era dos Empregos de Merda. Entrevista a Von Lars Weisbroad. Outras Palavras: jornalismo de profundidade e pós-capitalismo, 06/04/2020. Acesso em 16/04/2020; MONBIOT, George. Na pandemia fermenta o Comum. Outras Palavras: jornalismo de profundidade e pós-capitalismo, 03/04/2020. Acesso em 16/04/2020. ZIZEK, Slavoj. O nascimento de um novo comunismo. Outras Palavras: jornalismo de profundidade e pós-capitalismo, 09/04/2020. Acesso em 16/04/2020.
de entender o ocorrido, de buscar uma resposta, emitiam sons interrogativos, ensaiavam, quiçá, o primeiro debate metafísico. Talvez, as primeiras manifestações da linguagem humana, tenham nascido da tentativa de explicar o inexplicável, de tentar entender o fato ontologicamente doloroso e trágico da morte. A linguagem primeira dos homens talvez tenha tido a forma de interrogação sobre aquilo mesmo que é indizível, tenha sido uma pergunta que nunca deixou de ser feita, que por mais respostas que tenha gerado, queda irrespondida. Toda vez que a morte, negada e alijada para longe de nosso cotidiano, nas sociedades contemporâneas, parece se aproximar de nós, parece reafirmar a sua existência, tentamos dela nos defender, evitando toda forma de silêncio. Muitas culturas humanas elaboraram estridentes formas rituais, para esconjurar, para levar para longe os espíritos dos mortos e, com eles, a presença mesma da morte. Emitir sons está associado a própria vida, estar vivo é se fazer ouvir de alguma forma, o vivo é sonoro, só o morto é silencioso.8 A quarentena, imposta pela circulação do coronavírus, baseia-se, sobretudo, no isolamento social. O vínculo social, a relação entre as pessoas, o convívio, são garantidos pelas palavras. Os laços sociais são linguísticos e linguageiros, é a palavra que nos conecta, que nos articula, que nos engaja na vida coletiva. O isolamento social, imposto pelo vírus, implica o cessar da fala, o limitar da comunicação, da interação verbal. Isolados, estamos sós com nós mesmos, estamos diante de uma situação que muitos temem, aquela que nos obriga a conversarmos conosco mesmos. Muitos evitam o estar só, a solidão, o encontro consigo mesmo, preferindo se dispersar, o divertir-se, o descentrar-se no ruído, no barulho, na falação, no aturdimento dos 8 INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.
sentidos. A solidão, condição mesma da existência de cada um de nós, é conjurada, nem que seja pela televisão ligada, pelo som nas alturas, pelo fone estridente, socado nos ouvidos. A alienação sonora é um dos traços da nossa forma de existir contemporânea.9 Muitas vezes, deitamos falação, não paramos de tagarelar, preferimos dizer qualquer coisa, a ficar calados, a escutar e auscultar a nós mesmos. O vírus trouxe, para muitos, essa situação incômoda da solidão, do conviver somente consigo mesmo, de ter de conversar com seus variados rostos e personagens. Os diferentes sujeitos, que cada um performatiza, em diferentes situações, estão todos, agora, sozinhos, tendo que mirar uns aos outros, tendo que manter, entre si, uma conversação constrangedora. Nós, que não paramos de escutar a nossa própria voz, será que realmente nos ouvimos, será que realmente meditamos sobre o que dizemos? Ou falamos pelos cotovelos, coisas para encher linguiça, somente para nos livrarmos de dizer, para nós mesmos, coisas que tememos dizer ou admitir? O vírus instaurou momentos em que o silêncio dá para cortar de faca, momentos em que o silêncio nos perfura como uma lâmina, remoendo feridas que pareciam cicatrizadas. Se a palavra nos reúne, se a palavra nos une, nos atrai, nos relaciona, o silêncio instaura a possibilidade de distanciamento, de separação, de diferenciação. O silêncio permite a reavaliação, o passo a trás, a desconfiança em relação, inclusive, àquilo que se diz e se performatiza como sendo o si mesmo. Se olhar de fora é uma experiência dolorosa, muitas vezes, e ela só é possível quando o palavreado assertivo e indubitável sobre si mesmo cessa, quando se cai em si num momento de silêncio.10 9 SCHAFFER, R. Murray. Ouvir cantar: 75 exercícios para ouvir e criar música. São Paulo: UNESP, 2018; A afinação do mundo, 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2012. 10 HANH, ThichNhat. Silêncio: o poder da quietude em um mundo barulhento. Rio de Janeiro: HapperCollins Brasil, 2016; KAGGE, Erling. Silêncio: na era do ruído. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.
O vírus nos fez redescobrir o silêncio e, com ele, a própria palavra. Tantos puderam escrever e dizer tanto, em tão pouco tempo, porque o vírus permitiu que assim fosse. Ao instaurar o isolamento social, a solidão, ao encenar o abandono, ao explicitar o próprio desamparo humano, o vírus fez emergir as próprias condições que convocam os humanos ao falar. O vírus é o real assustador que deve ser domado, dominado, domesticado em seu caráter intempestivo, com o recurso do símbolo e da imaginação.11 A palavra é a maneira encontrada pelos humanos de tentar controlar e dar regularidade a um real selvagem e impiedoso. A angústia, condição mesma da existência humana, encontra na palavra o gesto de sublimação. A solidão, como dizia Maurice Blanchot, é a condição mesma da escrita, da palavra literária.12 O estar sozinho, o parar de falar, estimula o escrever, o exercício da palavra escrita. Impossibilitados de falar para grandes auditórios e plateias, impedidos mesmo da fala professoral para seus alunos, reduzidos, muitas vezes, à solidão de sua própria existência, os intelectuais se põem a escrever. O que mais se pode fazer senão criar essa “fumaça estéril de palavras”, no dizer cético de Lucrécia? Muitas obras de arte, muitas peças literárias nascerão da pandemia e do silêncio que se instaurou na vida individual e coletiva. Numa época em que não se pode, sequer, enterrar e chorar seus mortos, serão as palavras as depositárias do luto, pessoal e social. Mais do que nunca, a palavra, o discurso, exercerá a sua função tumular, para lembrar Michel de Certeau, que um dia escreveu sobre o levante das palavras, elas serão a única 11 LACAN, Jacques. Le seminaire, livre XXII: RSI (1974- 1975). (Seminário inédito, transcrição em francês disponível na internet na página do psicanalista Patrick Valas: http://www.valas.fr/Jacques-LacanRSI-1974-1975. 12 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011; O livro por vir. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
lápide para o luto de muitos.13 Nas palavras desses dias, desses meses, ficarão depositados os traços, as marcas deixadas por esse grande trauma coletivo. Em muitas situações, elas quedarão curtas, incapazes de dizer, em sua inteireza, as experiências limites vividas nesses dias. Elas naufragarão no intuito de dizer das inúmeras dores, dos inúmeros dramas, reduzidos a frias cifras de estatísticas de mortos e salvados. Elas se tornarão silêncio, choro, soluço, como as do repórter equatoriano, diante dos corpos espalhados por ruas, casas e praças da cidade de Guayaquil, ameaçados de ser estraçalhados por cachorros e urubus.14Elas darão passo ao silêncio que as ronda e as torna possíveis. Sim, porque sem silêncio seria impossível a palavra, elas não seriam audíveis. Para que sejam compreensíveis, para que, uma vez num discurso, possam fazer sentido, é preciso que estejam separadas por intervalos de silêncio, mesmo que breves e fugazes. Uma vez, escrevi um texto em elogio à vírgula, por instaurar esse momento de pausa, de cesse do discurso, esse momento indispensável para que o sentido se faça. Diante da tragédia coletiva, essas pausas parecem se alongar, as palavras parecem hesitar em ser ditas. Diante da grandiosidade do que se tem que dizer, elas parecem vacilar, se emudecer, se fazerem silêncio. Há momentos em que as palavras parecem lutar consigo mesmas, para poderem expressar o que têm à sua frente. Elas quedam trôpegas, indecisas, titubeantes, balbuciantes. Nesses momentos o silêncio as entrecorta, indiciando que algo de muito difícil de ser dito, de ser expresso está 13 CERTEAU, Michel de. O lugar do morto e o lugar do leitor. In: A escrita da história. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 106-119; La toma de lapalabra. In: La toma de la palavra y otros escritos políticos. México: UniversidadIberoamericana, 1995, p. 29-109. 14 VIEIRA, Renan. Repórter cai no choro ao vivo ao falar de mortes provocadas pelo novo coronavírus. In: https://observatoriodatv.uol. com.br/noticias/reporter-cai-no-choro-ao-vivo-ao-falar-de-mortesprovocadas-pelo-novo-coronavirus. Acessoem 10/04/2020.
acontecendo. Como encontrar palavras adequadas para falar do cortejo de caixões a transportar as vítimas da pandemia, dos cemitérios colapsados, dos fornos crematórios abarrotados de esquifes lacrados com fita adesiva, dos idosos que permanecem, após morrerem, por horas, no leito da casa de repouso onde viviam? Diante da impossibilidade de dizer isso, na espessura mesma de seu acontecer, os discursos giram em seu entorno, a verborragia dos discursos oficiais tenta tamponar o vazio que se vê abrir à nossa frente. Atarantados, os profissionais da saúde, os cientistas, tentam dizer o que ainda não pode ser dito, tentam construir, com palavras, um futuro que o presente não autoriza, tentam fazer previsões sobre o imprevisível. A arrogância da palavra humana derrotada por um microrganismo, pelo silencioso trabalho da natureza. A palavra do Senhor, o verbo divino, que teria criado, em uma semana, toda a inteireza e majestade da natureza, terminando, para coroar sua obra, por criar um ser à sua imagem e semelhança, se vê confrontado com o fato que a natureza não parou de se criar e recriar, ao longo de todo tempo. Perplexos diante da capacidade de criação da natureza, os humanos que, em dado momento, se proclamaram seus dominadores, seu rei e senhor, se dão conta de que a natureza não é estática e está longe de obedecer às vontades e poderes humanos ou divinos. Todas as grandes nações, os poderosos Estados, o centro do império, derrotados e humilhados por um pequeno vírus. O coronavírus já matou mais empáfias do que matou gente. A natureza, agredida, explorada, poluída, destruída, nos fala silenciosamente, sem precisar emitir uma só palavra, nos avisa de que irá se livrar de nós, se continuarmos a fazer de conta que ela não existe e não importa.15 15 WULF, Andrea. A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. 2 ed. São Paulo: Crítica, 2019; THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
Diante daquilo contra o qual nada podemos, flagrados na absoluta impotência, os humanos se dão conta da fragilidade de suas existências. Diante da morte em cadeia, do adoecimento iminente, das sequelas que se podem carregar para o restante da vida, a sensação de desamparo se agiganta. Não é por mera coincidência que muitos se entregam, bovinamente, a crendices de toda ordem, a charlatanismos de todos os matizes políticos e religiosos, que buscam no milagre divino, o amparo que nos falta.16 Para os desamparados, resta o amparo das palavras, dos discursos, dos mais farisaicos e tranquilizadores, até os mais racionais e intimidadores. O vírus silencioso desatou uma verborragia sem limites, parece que o falar, o dizer, o repassar, o divulgar falas de todos os conteúdos, garante que sobreviveremos a esse silêncio ameaçador. Tagarelamos para nos convencermos que continuamos vivos e ainda não estamos com insuficiência respiratória grave. O vírus age atacando a nossa possibilidade de fala, todo o aparelho fonador queda atingido, vai sendo minada nossa capacidade de respirar, de falar, o nosso alento. Atacando os pulmões, nos retirando o ar, o vírus nos impõe o silêncio, nos caça a palavra, até mesmo o grito de socorro queda, paulatinamente, impedido. Passa-se apenas a gemer, a emitir sons estentóricos, a chiar e tossir. O vírus parece ter vindo para explicitar que o nosso tempo está doente por excesso de falas, que a proclamação absoluta da liberdade de expressão, o fato de que qualquer energúmeno pode, hoje, ter opinião sobre tudo, pode deitar falação nas redes sociais, sobre aquilo que nunca estudou, que nunca experimentou, de que nunca ouviu falar, faz que nosso tempo esteja adoecido de verborragia galopante. Antes da infestação do vírus mortal, bobagens mis já viralizavam pelas 16 BROTTO, Rodrigo. O exílio do coronavírus: quando Deus tirou o seu culto de sua igreja. s/l: NadereReformaties, 2020.
redes e pelos meios de comunicação, fakenews, mentiras, teorias da conspiração, falsas teorias científicas, versões negacionistas do passado, já tinham livre curso nas infovias da internet. Nesse mundo em que a palavra foi adoecida, foi contaminada pelo uso abusivo, foi corroída pela baba gosmenta dos fascismos, vilipendiada pelos discursos de perversos sanguinários, de charlatões despudorados, o silêncio fez sua reentrada espetaculosa. Os vendilhões da Palavra continuam resistindo a abandonar os púlpitos, levando seus rebanhos ao matadouro, contanto que a arrecadação não diminua. Nas carreatas da morte, um desfile de privilegiados brancos gritam palavras de ordem, voltadas a colocar os seus empregados, pretos e pardos, para retornarem ao moedor de carne do sistema capitalista, apesar da morte de muitos deles. A palavra, aprendemos todos nesses dias, pode ser mistificação e embuste, mesmo quando no diminutivo: “gripezinha”, “resfriadinho”, morrerão “alguns velhinhos”, pessoinhas com “comorbidades”. Palavras diminutas e mortais como o vírus, contagiosas e letais como a pandemia. A sensação de desamparo é maior porque a pandemia veio contradizer e revelar as fragilidades de muitas de nossas certezas, de muitas de nossas verdades, talvez, por isso, só os mentirosos compulsivos, aqueles que se guiam por uma imaginação delirante e descontrolada, continuam pontificando, contra ventos e marés, com suas teses e ideias estapafúrdias e ignaras. Diante de tantas incertezas, pregam a sua palavra autoritária, as suas verdades de polichinelo, suas falas-panaceias, seus discursos-cloroquina, para tentar esconder o medo e a angústia, diante de um mundo que desaba e do qual não se sabe o que restará. A certeza de que tínhamos o domínio sobre a natureza, de que a ciência tem respostas para todos os problemas, ruiu com a pandemia. A verdade neoliberal de que deveríamos ter cada
vez menos Estado e da excelência da iniciativa privada para resolver todos os problemas, quedaram desmoralizadas pela constatação óbvia de que só o Estado é capaz de dar, minimamente, respostas num momento como esse. A iniciativa privada se mostrou incapaz de subsistir por si mesma, tendo que recorrer aos cofres públicos para poder se manter, dada a desorganização econômica e social que a pandemia veio provocar. O comportamento de muitos empresários e da maioria das empresas explicitou que o interesse privado, a centralidade do desejo de lucro e acumulação, são incompatíveis com a necessária solidariedade e gestão coletiva, de uma crise que atinge a todos. Preocupados apenas com seu lucro, muitos advogaram que seus trabalhadores perdessem todos os direitos ou retornassem às atividades, mesmo que isso pudesse significar a morte de muitos. A pandemia explicitou a face desumana do capitalismo, que em nome da preservação da economia, do PIB, da rentabilidade da Bolsa de Valores, é capaz de sacrificar milhares de vidas humanas. A dicotomia economia versus vida humana explicitou o grau de precariedade e de desamparo em que uma grande parcela da humanidade vive, num modo de produção como o capitalismo. A pandemia foi pretexto para a precarização, ainda maior, das condições de trabalho e do emprego, em muitos países, pretexto para que, de uma hora para outra, milhares de trabalhadores precarizados fossem despedidos ou expostos impunemente à contaminação pelo vírus. Quando uma criança se vê sozinha, num quarto escuro, diante dos fantasmas que o medo pode lhe fazer imaginar, ela cantarola uma canção, para se sentir segura. O seu canto lhe serve de companhia, simula um território para habitar, rompe o silêncio amedrontador de sua solidão. Ela se sente amparada por sua própria voz, ela preenche o vazio que poderia dar passagem para as figuras do medo. Estamos fazendo, hoje, coletivamente,
o mesmo gesto. Meu vizinho toca sua flauta na tentativa de criar um território menos hostil para habitar, uma forma de exorcizar seus medos e angústias, uma forma de impedir que elas cresçam no silêncio. O latido do cão ao longe, o ruído passante da motocicleta, o som da música tocada pelo vizinho, preenchem o vazio de minha tarde de domingo e me sinto menos solitário e desamparado. Diante do medo, trazido pela pandemia, diante da solidão e do desamparo, lançamos mão da palavra, da sonoridade das palavras, para reduzirmos a nossa angústia, para darmos sentido a esses dias que correm, a nossas vidas vividas sob ameaça. Em todo mundo, as pessoas fazem das janelas, palcos, espaços de comunicação com o outro, elas são o local onde se rompe o silêncio de morte que parece rondar a todos. Tocando um instrumento, cantando uma canção, batendo panelas, batendo palmas, gritando palavras de ordem, os humanos resistem, lutam contra a ameaça de morte, fazem o luto das muitas perdas com que estamos tendo que lidar. Os especialistas de todos os quadrantes são unânimes em afirmar que perdemos, definitivamente, o mundo em que vivíamos, em dizer que não retornaremos ao mundo que deixamos, no início da epidemia. A morte que é perda e as perdas que cheiram à morte se sucedem, fazendo com que emerja essa necessidade de luto coletivo e, ao mesmo tempo, de luta para reerguer a vida, para fazê-la distinta daquela que possibilitou que dado desastre global fosse possível. Reavaliar o fim dos Estados de Bem-Estar Social, reavaliar a privatização dos serviços de saúde e assistência social. Os abrigos públicos para idosos, entregues à gestão de organizações privadas que se mostraram negligentes e incapazes, motivaram a mortandade de boa parte dos internos, na Espanha, na França e em outros países. Será preciso repensar e recriar as nossas relações com os velhos e com a velhice. O desprezo com que muitos genocidas, inclusive com faixa presidencial, se referiram à possível
morte dos idosos, explicita que o vírus veio apenas explicitar as doenças da sociedade em que vivemos. Quando Fernand Deligny, ainda nos anos quarenta, do século passado, afirmava que a criança considerada delinquente, anormal, inadaptada, enlouquecida, era apenas o resultado de uma ordem social doente, ele parecia antever o que vivemos hoje.17 As doenças do egoísmo, do individualismo, da falta de solidariedade, da incapacidade de sobrepor os interesses coletivos aos interesses e desejos pessoais, são infecções mais graves do tecido social, do que a pneumonia causada pelo covide-19. Políticos, empresários, banqueiros, pastores, que colocam seus interesses individuais e privados acima da existência das próprias pessoas, são mais letais que o próprio vírus. A morte dos idosos não causa nenhuma comoção, porque, na verdade, eles já estão socialmente mortos, já são vistos como moribundos em vida.18 O silêncio a que são submetidos, a impaciência e o desprezo com que suas palavras são recebidas, o incômodo que causam o que seriam seus resmungos e seus reclamos de ranzinzisse, são indícios de que são mortos-vivos. Ainda mais aqueles empilhados em abrigos, onde suas falas cansadas e anacrônicas poderão circular entre muros, sem incomodar os vivos-mortos que circulam lá fora. Assim como os presidiários, os indígenas, os quilombolas, os bandidos, que, se morrerem com o coronavírus, se forem definitivamente sepultados no silêncio da morte, sem que seus reclamos e revoltas possam ser ouvidos, as suas palavras fora da ordem, da língua pátria, da normalidade, seriam, para muitos, uma limpeza. Uma sociedade tomada pela perversão do fascismo é uma sociedade embriagada pelo desejo de morte. O meme com a dança dos caixões, que circula na internet, com o rosto presidencial, 17 DELIGNY, Fernand. Os vagabundos eficazes: operários, artistas, revolucionários: educadores. São Paulo: N-1, 2018. 18 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
divulgado por órgão do próprio governo, reproduzida em passeata na Avenida Paulista, pelos debiloides que não sabem fazer silêncio na hora devida, indicia uma sociedade tomada pelo desejo de morte, que a pandemia veio satisfazer e desmascarar. O comportamento de desprezo ao conhecimento científico, inclusive de muitas das mais importantes lideranças mundiais, diante das ameaças trazidas pelo aquecimento global, como agora, diante da pandemia, nos coloca frente a uma humanidade que caminha na direção de sua morte coletiva, de sua destruição como espécie. Agora, alguém, no prédio ao lado, ouve canções dos anos oitenta. Esses também são tempos de nostalgias e saudades. Os sons que vêm do passado ajudam, muitos, a saírem desse agora, desse tempo de perigo em que vivemos, da prisão a um presente desolador, para viajarem imaginariamente de volta a um passado mais feliz e prometedor do que esse tempo em que estamos. Os celulares não param de receber, pelo Whatsapp, antigas canções, performances memoráveis de nossos artistas, muitos deles, agora, emudecidos pela morte ou pela pandemia. Muitos se dedicam a folhear os antigos álbuns de fotografias, a assistir os vídeos caseiros, a rever imagens de tempos menos sufocantes e menos tediosos. As páginas individuais no Facebook têm sido povoadas por essas fotos antigas, em preto-e-branco, amareladas, que remetem a tempos mais amenos. Muitos retornam a seus escritos de adolescência, redescobrem seus diários, suas cartas, seus cartões postais, sorriem e choram, novamente, com as emoções ali registradas. As velhas coleções de discos, de jornais, de revistas, os livros que quedavam eternamente sem leitura, agora são convocados para preencher um tempo que, antes tão escasso, agora se alongou, ganhou espessura, se dilatou em horas intermináveis. Ler e escrever, se socorrer das palavras, para preencher esse
enorme vazio, esse enorme silêncio em que se tornaram os segundos, os minutos, as horas, os dias. Conversas alongadas por Skype, falação pelos celulares, inúmeras mensagens de voz e de vídeo, postagens no Youtube, lives pelo Instagram, a palavra à distância, a palavra mediada, a palavra enviada, tentando lutar contra o silêncio de morte que constitui a paisagem de nossas vidas de quarentena. Empreendemos, também, uma luta contra a morte da palavra, da comunicação, da interlocução, por isso, talvez, nunca tenhamos escrito tanto, falado tanto, mesmo que seja, como esse texto, sobre o excesso de palavras. Sinto cheiro de pipoca, de bolo sendo assado, de leite derramado. Muitos, nessa pandemia, ganham peso, comem para tamponar o vazio do estômago, provocado pela angústia, e o vazio existencial. A paisagem sonora cede lugar à paisagem olfativa, os cheiros ganham importância, ainda mais numa pandemia em que a perda do olfato é indício de contaminação. Muitos redescobriram as antigas receitas, escritas em cadernos amarelados e manchados de gordura, redescobriram o prazer de fazer aquele pudim e aquele manjar, que há muito não faziam. A maioria viu suas compras minguarem, acabarem, viu a movimentada rua, a praia, o cruzamento, a feira, o mercado em que vendia suas bugigangas, suas mercadorias, seus produtos, se esvaziarem de fregueses, silenciarem. A algazarra dos fregueses, a gritaria dos vendedores, o disse-me-disse sobre a vida dos vizinhos e sobre as próprias vidas, os palavrões gritados nos conflitos, emudeceram, até que a falta total de qualquer assistência por parte do governo os lançou novamente, desconfiados, medrosos ou imprudentes e até desafiadores, nas praças e ruas, sujeitos à infecção e à morte. Agora, aglomerados, disputam em desespero, literalmente a tapas, os seiscentos caraminguás de ajuda emergencial, enquanto os bancos recebem bilhões de recursos
públicos, que não repassam ou emprestam a ninguém. As palavras de revolta e de insatisfação rompem a bolha de silêncio, que ameaçava engolfar a todos, mas às custas de uma transmissão descontrolada do vírus que custará muitas vidas. Mas, nesses dias, redescobrimos, talvez por causa do silêncio e da solidão, do isolamento, os nossos outros sentidos, embotados pelo excesso de imagens e o excesso de palavras. Vivemos numa cultura onde a visão e a audição dominam e obscurecem o olfato, o paladar e o tato como formas de acesso ao mundo.19 Muitos, obrigados ao silêncio, em maior contato com seu próprio corpo, pela ausência de contato com outros corpos, até mesmo de contatos sexuais e afetivos, podem ter redescoberto, neles, possibilidades e habilidades ainda insuspeitas. Nessa tarde em que todos os aparelhos audiovisuais estão desligados, em que sozinho, me aparto da palavra e da imagem, eis que meu corpo se abre para outras presenças do mundo exterior: os sons, os cheiros, até mesmo o farfalhar do vento nas folhas das palmeiras que cercam o prédio onde resido. Num mundo que parece sucumbir, outro nasce, para a surpresa de meus sentidos. Mas, como muitos, eis-me aqui escrevendo esse texto, preenchendo com palavras esse silêncio de morte que, como uma mancha de óleo, parece ir aportando à nossa praia. Por que tantos se puseram a escrever, por esses dias? Por que tantos se puseram a falar, nesse momento? A existência do sujeito humano se dá e se faz pela linguagem, é no interior da linguagem que assumimos o lugar de sujeito e que elaboramos, para nós mesmos, uma narrativa sobre o nosso ser e a apresentamos como sendo aquilo que somos. Num momento em que a ameaça da morte se faz 19 CORBIN, Alain. Saberes e odores. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016; GAY, Peter. A educação dos sentidos: a experiência burguesa da Rainha Vitória à Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
mais presente, afirmar a existência é se alojar na palavra, é fazer dela instrumento de luto e de luta. À medida que ainda não existe nenhum medicamento comprovadamente eficaz contra o vírus, à medida que contra ele ainda não podemos tomar remédio, tomamos a palavra e tomamos da palavra, para remediar o quase irremediável. Num país entregue a um governo dominado pelo desejo de morte, de onde partem discursos e mensagens que desvalorizam a vida e minimizam a tragédia que se abate sobre a sociedade brasileira, usar da palavra, tomar da palavra para protestar, para criticar, para denunciar, para divergir, para desmentir, tem sido a única forma de afirmarmos o valor da vida, de fazermos a vida se apresentar, naquilo que é a sua própria substância, o poder de criação e mutação. O vivo afirma a vida na criação, na invenção, na mutação, como faz o próprio vírus, que para permanecer vivo, para se adaptar às novas condições ambientais e do hospedeiro, sofre mutações.20 Criar, inventar, produzir, se pôr em movimento através da palavra, é a forma que temos de afirmar que estamos vivos. Nesses dias de suspense e assombro, se alguém desaparece das redes sociais, se alguém deixa de falar com seus parentes, amigos, familiares, com seus companheiros e amores, logo o sinal de alerta acende, logo a suspeita de doença e morte se apodera de todos. Daí a importância que a palavra assumiu, no próprio cotidiano, como uma forma, inclusive, de não se romper os laços de sociabilidade, impedidos, obstaculizados pelo isolamento imposto pelo vírus. Numa sociedade onde as famílias são cada vez mais diminutas, em que muitos vivem sozinhos, o isolamento significa, quase, a quebra dos laços sociais, que só se reafirmam pela comunicação, pela relação 20 CANGUILHEM, Georges. Estudos de história e filosofia da ciência: concernentes aos vivos e à vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
discursiva. Em momentos de ameaça coletiva, a reação também deve se fazer coletivamente, para isso a comunicação é indispensável. A solidariedade, o agir junto, o caminhar na mesma direção, em busca dos mesmos objetivos, quase impossível num país em que no interior do próprio Estado se atira para todos os lados e ninguém se entende sobre o que fazer, em que as rivalidades mesquinhas se sobrepõem ao problema social, a palavra é fundamental para estabelecer essas redes de apoio e ajuda mútua. Se nos quedamos afogados no silêncio do luto, não conseguiremos nos tornar agentes da luta. Se naufragarmos, como sujeitos, no lodaçal silente da dor e do desespero, não conseguiremos construir alternativas para essa realidade, que parece tragar a todos num redemoinho de desesperança e desânimo. Só a palavra do outro é estímulo e ânimo, só a palavra do outro se aloja em minha alma, movimenta minha subjetividade, me anima a agir e a resistir. Como sabemos, pelo menos desde que surgiu a psicanálise, a palavra é curativa, a palavra é recurso contra o trauma e contra a dor.21 Há momentos em que silenciar, em que não abrir a boca, é delituoso, é se tornar cúmplice de um crime e de uma tragédia. Quando todos os direitos cessam, quando se está entregue à condição de carne nua, ainda resta o gritar, o espernear, o imprecar, o gemer, como forma de resistência.22 Todos os poderes e poderosos amam e apostam no silêncio cúmplice, na covardia expressa no ato de ficar calado. Cortar o ar com uma palavra, emiti-la com toda a força que nos resta, atirá-la na cara do opressor, do algoz, do torturador, pode ser o último gesto de afirmação da existência. Quantos não estão, nesse momento, tentando emitir a sua última palavra em meio ao afogamento causado pelo 21 FREUD, Sigmund. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. 22 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
colapso dos pulmões, trazido pelo vírus. É para eles e por eles que nós, que ainda temos alento em nossos peitos e em nossas entranhas, temos que falar, temos que escolher e fazer circular as palavras que façam, pelo menos, mais inteligíveis, mais entendíveis o acontecimento que lhes está tragando e levando para longe de nós. Mais do que nunca é preciso que tomemos a palavra, para fazer a todos os poderes e poderosos, as perguntas incômodas que não querem calar: como chegamos ao ponto de escutarmos um presidente de Banco Central dizer que achatar a curva de contaminação pelo vírus é pior para a economia? Como foi possível que os sistemas de saúde fossem precarizados a ponto de milhares de profissionais da área se infectarem ou morrerem por falta de uma máscara de proteção, de uma bata, de um avental, de uma luva? Como é possível que abramos a boca, que rompamos o silêncio, para dizer que o vírus é uma invenção comunista, é um plano maquiavélico da China para acabar com a economia e a civilização ocidental? Como chegamos a esse estágio de ignorância, fanatismo e imbecilização, a ponto de fazermos das palavras, veículos de delírios paranoides, fantasias perversas, afirmações mentirosas e cruéis? Como podemos usar a palavra para atrair um morador de rua, a pretexto de lhe dar um auxílio, para em seguida espancá-lo no rosto e nomeá-lo de vagabundo? Como aceitar que se use a palavra para dizer que vidas de jovens têm preferência em relação à vida de idosos? Como se pode vir a público afirmar que toda crise é cheia de oportunidades, que é do que se mais gosta? Como se pode usar o verbo, e quase sempre mal, para fazer pouco caso do milhar de pessoas que já tiveram a vida ceifada pelo vírus, dizendo que não enxerga, ainda, uma pilha de mortos? Diante de declarações como essa ficamos com a certeza de que as palavras vida, povo, pessoa, só aparecem nos discursos de certas lideranças políticas e empresariais,
de certas autoridades, para fazer demagogia. A palavra monstruosidade queda quase incapacitada para dar sentido e significado a muitas atitudes e discursos que escutamos a nossa volta. Nesse momento, redescobrimos o quão valioso pode ser o silêncio, como, a despeito da importância da palavra, o silêncio pode não significar, apenas, cumplicidade ou omissão, ele pode significar censura e recusa, rejeição de fazer parte, de secundar, de seguir, de compactuar, com aquilo que está sendo dito para nós ou por nós. Quando Lucrécia pronuncia a frase, em que desqualifica a nuvem de palavras estéreis com que tentava dar sentido ao gesto que iria realizar, ela estava à beira do suicídio, de mergulhar no silêncio da morte. A recusa da palavra se dá por aquele que já escolheu o silêncio eterno. Por mais que saibamos, hoje, mais do que nunca, sobre os limites da palavra, por mais que todas as ciências e saberes que se debruçaram sobre a linguagem como objeto de estudo, tenham evidenciado sua incapacidade de tudo dizer, sua impossibilidade de dizer as coisas tal como elas são, em toda sua complexidade, as palavras continuam sendo fundamentais para que os homens e mulheres deem sentido para o que ocorre à sua volta, para o que fazem, para o que lhes acontece. A fumaça das palavras, tanto pode tamponar nossos olhos, tornar, às vezes, irrespirável o mundo em que estamos mergulhados, como pode preencher o vazio, o sem sentido que seria o existir sem o concurso delas, na oferta de narrativas, conceitos, enunciados que justifiquem e deem significado ao próprio viver. As palavras tanto podem ser estéreis, como férteis, dependendo das circunstâncias e das intenções com que são proferidas. As palavras tanto obscurecem, como aclaram os motivos para o próprio viver. Nesse momento, em que muitos, na sociedade brasileira, parecem desejar ou se encaminhar para um suicídio
coletivo, em que muitos demonstram certo fascínio patético e patológico em relação à morte, cabe repetir o gesto de Lucrécia, que proferiu, antes do gesto fatídico, um longo discurso de justificação. É preciso que ergamos a voz contra esse desejo coletivo de morte, esse desejo de silêncio eterno, que subjetividades autoritárias e perversas querem impor àqueles que consideram indignos de viver. É preciso tomar a palavra para lutar contra essa pulsão de morte coletiva, que faz dos fascismos, inimigos da vida humana. É preciso, nesse momento, em que a dor da perda, o desespero pelo mergulho no silêncio definitivo, de milhares de pessoas, com quem convivíamos ou não, fazer da palavra veículo do trabalho do luto, da manducação subjetiva dessas ausências coletivas. Não deixando de valorizar aquele silêncio que nos permite ter outra experiência do mundo e que faça nascer, virgem e intempestiva, a palavra novidadeira, a palavra não esperada, a palavra criativa, inventiva, em movimento, como a própria vida, criando e restabelecendo laços sociais, modificando modos de relação, fazendo a humanidade sair da rota do suicídio, da morte coletiva, para a qual parecemos caminhar celeremente. Em meio ao silêncio que provocou e, por causa dele, freando a nossa tagarelice alienada, sejamos capazes de ouvir o discurso e o alerta silenciosos trazidos pelo Covid-19. Que ouçamos a sua mensagem de que algo de muito errado se passa com os humanos, que o caminho que tomamos parece nos reservar um futuro de destruição, adoecimento e catástrofe. Que saibamos ouvir o discurso silente do vírus, silêncio que vale mais do que milhares de palavras, fúteis e estéreis, que constituem uma verdadeira cortina de fumaça, que nos impede de ver que caminhamos para o suicídio coletivo da espécie.
Durval Muniz é Doutor em História pela Unicamp, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor permanente na Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de A invenção do Nordeste (Cortez, 1999) e de Xenofobia (Cortez, 2016), entre outros.