palavras sapienciais Lelê Teles
CORONAVÍRUS, UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA pega teu copo, senta um pouco e presta atenção nessa, meu camarada. “as pessoas devem ficar em casa”, recomenda o coro, no teatro a céu aberto, vocalizando num megafone. e lá vão as pessoas, obedientes, trancafiarem-se em suas casas. vemos, nas varandas e nas sacadas italianas, as pessoas tomando vinho, cantando óperas, corificando o bella ciao. beleza: varanda ok, vinho ok, sobrancelha ok. aí você olha aquilo e fala: “vejam, as pessoas!” ilze scamparini, coração sangrando, chora pelas pessoas; guga chacra, todo arrepiado, vai aos prantos pelas pessoas. compreensível, são seus iguais. o vírus, insensível, nômade e ubíquo, pilotando sua retroescavadeira anárquica, derruba fronteiras e invade países. espera passar o carnaval, que ele não é muito de festas, e chega ao brasil. “as pessoas devem ficar em casa”, grita o guarda municipal, com o apito na mão, numa praça em são paulo. aí surgem as perguntas, tipicamente brasileiras: “onde é a minha casa?”, indaga o sem-teto. “o que é uma pessoa?”, pergunta o “menino de rua”. questões enigmáticas. marcel mauss, antropologizando a parada, tentou responder à pergunta do garoto andrajoso,
escarafunchou diversas culturas mundo afora e saiu mais confuso que o moleque descamisado, ouça-o: “são raras as sociedades que fizeram da pessoa humana uma entidade completa, independente de qualquer outra, exceto de deus”. hummm
. pessoa humana?
e tem pessoa inumana?
heidegger ainda tentou organizar a coisa, categorizando essa abstração nas formas ônticas e ontológicas. mas sabemos que o velho martin é como o velho guerreiro e, tal qual o chacrinha, veio mais para confundir do que para explicar. nada é mais didático do que aquelas fotografias em preto e branco dos pretos estadunidenses marchando pelas ruas com um cartaz no pescoço onde se lia: “i’m a man.” hummm
.
essa doeu hein, man? fanon, o gigante, já havia dito que o homem negro não é um homem, é um homem negro. e há, ainda, mesmo depois de fanon, quem se pergunte: “por que diabos uma pessoa tem que gritar que é uma pessoa?” e você aí, todo sabichão, achou que sabia essa. mas... você tá redondamente enganado, meu camarada. há as pessoas e as não-pessoas. recorda-te que o estado de direito brasileiro, época escravagista, já havia categorizado o negro como um semovente. logo, conclua descárticamente, uma não-pessoahumana!
nada como um vírus para te ensinar o que lhe ocultaram na escola. agora, imagina você que algumas pessoas, obedecendo ao guarda da esquina, estão em quarentena em casa; porém, com as suas empregadas domésticas que, obviamente, aquarentenaram-se involuntariamente na casa alheia. eis aí as não-pessoas, tal qual o sem-teto e o “menino de rua”. lembra-te que lauro jardim nos relatou que um casal de são conrado está trancafiado em casa sem contato com “outras pessoas”? com o médico eles só falam ao telefone, relata o sabe-tudo. o diabo é que a mulher que lava os pratos dessas pessoas estava lá, lavando pratos e fazendo a mamadeira do casal de marmanjos. lembra que eles não tinham contato com “outras pessoas?” então, percebe a placa gritando no pescoço daquela mulher de avental? “i’m a man!” na casa da isis valverde flagraram uma mulher negra, torneira da pia aberta, com a mesma placa. uma lava-pratos acaba de morrer na casa de um casal coronavirizado no ridejanêro. é só o começo. ilze scamparini e guga chacra, até agora, não derramaram uma única gota de lágrima. percebe? em brasília, um burguezóide, vindo da suíça com a esposa, caronavirizados, resolveu desfilar pelas ruas da capital, e o sacana, ignorando uma ordem do chefe do executivo local, foi ao show do maroon
5. “am i wrong”?, ele cantava com a multidão, jogando saliva virótica em seus colegas de classe, todos pessoas. mas ele, claro, estava ali para demonstrar que era ainda mais pessoa do que aquelas pessoas; eis a razão da sua insolência. o mesmo fez um empresário em trancoso, ignorou o aviso do guarda e foi à praia. “nada que um mergulho no mar não resolva”, zombou. no brasil tem as pessoas, as não-não pessoas e as superpessoas; estas, são aquelas dos camarotes vips. esclareçamos logo que o textão tá longo: a definição de pessoa vem do teatro, e designa não o ator, mas o personagem que ele personifica. persona é mais a máscara que o mascarado. e no teatro do absurdo brazuca, os papéis estão muito bem definidos. há os figurões, os figuraças e os figurantes. pessoas, superpessoas e não-pessoas. dessas últimas os metrôs, os ônibus e os trens estão abarrotados no horário de pico. “as pessoas devem ficar em casa”, lembra? se as pessoas ficam em casa, quem lhes leva o lanchinho para beliscar durante o intervalo de uma série na netflix e na globoplay? um robô? um drone, uma libélula com o macacão da firma? ora, uma não-pessoa, montada numa bike enferrujada e carregando uma caixa quadrada nas costas. pra que essa não-pessoa coma é preciso levar
comida para as pessoas comerem, ou cozinhar pra elas e fazer aviãozinho para que elas engulam sem reclamar. outro dia uma não-pessoa quase se mata nadando contra uma enchente para levar o sushi para uma pessoa ilhada em casa. concluindo: a cidade, ou a rua, como a nomeia o roberto damatta, tá cheia de puteiros, botecos, consultórios de psicologia e farmácias, e as pessoas estão cada vez mais doentes, solitárias e tristes. a casa das pessoas é como a gaiola de um pássaro, lá as pessoas não cantam, não dançam e não fodem. vai ser muito difícil para as pessoas se adaptarem a elas mesmas, em pouco tempo todos passarão a gritar nas varandas, saudosos da solidão compartilhada na multidão. vão preferir voltar aos puteiros, aos botecos e às farmácias. morrerão abraçados, espirrando e cuspindo uns nos outros; as personas precisam do palco, ou do picadeiro, ou da área vip. em casa não dá. há espelhos demais, e ninguém vai botar uma máscara para ficar sentado na frente da TV e, sem a máscara, o que diferencia uma pessoa de uma não-pessoa? o cabra do show do maroon 5 e o praieiro de trancoso não guentaram nem meia hora. um vírus, amigo, a porra de um vírus dando uma aula magna de antropologia social e sambando na cara da pessoa humana. palavra da salvação.
COLÓQUIOS EM TEMPOS DE CORONGA “tá com saudades da macumba, né minha filha?” (meme do dráuzio)
liga a câmera, mulher. aêêê. puxa a cadeira aí, minha preta. com açúcar ou sem acúcar? ah, aqui em casa também é sempre sem açúcar. pois é, minina, enquanto uns fazem lives outros fazem deaths. sabia que lá nos esteites o coronga mata muito mais os pretos que os brancos? não. tem nada de genética não, minha flor, é necropolítica na veia (o achille mbembe é quem tava certo); pretos têm menos empregos que permitem home office, por isso ficam mais expostos. né isso, amore? é o que eu tenho dito, essa de home office já é uma realidade mesmo, minina, os patrões perceberam que ao invés de pagarem aluguel de salas, água, luz, internet, vale refeição e o cacete, é melhor mandar os empregados pra casa, gastarem a água, a luz e a internet deles. essa fala de isolamento vertical, obsessão dessa alma sebosa que nos preside, é pra matar preto e pobre. quem você acha que vai voltar a trabalhar? o homem não tem voltado esse discurso genocida dele pro vendedor de churrasquinho, pro garçom, pro atendente da havan e pro chapeiro do madero? é com essa gente que eles querem voltar a entupir metrôs e ônibus. eles que lutem, que se cuspam e que se matem, é mais gente pra virar cobaia daquele cloroplaceboquina.
minina, não foi isso que eu falei lá no grupo da família? o presidente usar um pronunciamento à nação pra fazer propaganda de remédio, como se fosse o sílvio santos vendendo jequiti?! né isso, nega? o governo vai comprar aquele veneno com a grana do povo e dar pro povo tomar. e ele ainda teve o disparate de dizer que é como aplicar água de coco na veia! pois é, minina... e tu sabe como andam as coisas lá na África? pois num é isso que eu tenho falado? dizem que o mundo despertou mais humano, que o coronga fez as pessoas se importarem com a vida dos outros... era isso que eu ia dizer: vidas negras importam? só se fala na suíça, na itália, até com a vida daqueles parasitas da família real britânica eles estão se importando. nada sabemos sobre o continente negro: quantos mortos, quantos países em isolamento, chegou ajuda humanitária, teve envio de máscaras, montaram hospitais de campanha... quem se importa? viu lá, se não é o didier drogba e o samuel eto’o para pularem na jugular dos colonizadores franceses, já estavam a distribuir alguns tipos de cloroquinas em África? cobaia, fia, é desumanizador demais! como eu disse: uns fazendo lives e outros deaths. lembra daqueles atentados que rolaram na europa, daqueles mercenários disfarçados de muçulmanos? ataques ao charlie hebdo, à boate bataclan... lembra da comoção do mundo? aí os mesmos tarados atacaram a nigéria, o mali... e num teve essa comoção toda. tá acontecendo de novo.
e o povo dizendo que vai surgir uma nova humanidade pós-coronga, que o vírus veio com virulência para nos ensinar uma lição... como se vírus fosse chegado a master classes. num vai ter essa de humanidade ac/dc - antes e depois do coronga - o povo tá bonzinho, mas é com medo da morte, tão pensando mais em si que nos outros. gente boa e caridosa sempre teve. agora, esses que surgiram de uma hora pra outra, fazendo selfie com cesta básica e mendigo ao fundo, são os legítimos technosapiens, de humano esses aí só têm a forma; esses vão continuar sendo filhosdaputa pós-coronga. quem nasceu pra ser cachorro, há de morrer latindo. bom, xô preparar um lanchinho aqui porque a menina acabou de acordar; vai ser um longo caminho até me adaptar, mãe solo em home office e home schooling não é pra amadores não, amore. beijos. saravá. E AS PUTAS? “a mulher-sujeito é a antítese do homem abjeto” Lelê Teles
eu, thula, volto a falar de mim e das que estão à minha volta, porque se eles vêm de irmãodade a gente vai de irmandade. molha tua taça e vem, falemos das putas. confinadas e sem amparo, as prostitutas mostram como o patriarcado é cruel e hipócrita.
não, nenhum cliente quer saber se precisam de uma cesta básica enquanto estão impedidas de trabalhar; ninguém lhes é solidário em sua solidão. aqueles que comem as putas nem se importam se as putas comem. sim, falemos de fome, porque esse é o nome. não digo a fome do homem, esse insaciável desejo do comer metafórico, que deixa claro a visão da mulher como um pedaço de carne. falo da fome do estômago, esse órgão sensível que, também metaforicamente, tem boca, e que só fala quando não mastiga: “góioioióió...” daqui, do conforto da minha varanda, onde beberico taças de vinho, eu sempre observo o movimento das meninas lá embaixo, no trottoir. na penumbra da comercial, elas fazem ponto, seminuas; um frio desgraçado e elas lá, com pernas, busto, bunda, barriga, ombros... tudo de fora. às vezes, na solidão da madruga, desço pra conversar com elas; já tivemos deliciosas noites gargalhosas. mas nem tudo é riso, nem tudo é alegria; há lágrimas escorrendo na face do palhaço, é que a maquiagem oculta. nessas minhas descidas para papear, muitas vezes fui divã de divagações e devaneios tristes, já fui ombro de escombros d’alma, já fui o regaço quente e confortoso de cabeças chorosas... a mulher, quando confia na outra, desaba. na minha condição de privilegiada, de quem não vai perder o emprego por conta do coronga, que vai continuar recebendo o salário trabalhando em casa, penso nas sista que sumiram por esses dias. onde andarão, como estarão se virando?
muitas dessas mulheres têm filhos, umas têm esposos, algumas têm namorados, boa parte delas são arrimo de família e mandam o dinheirinho contado para uma avó doente no interior, outras sustentam os machos parasitas que fingem que as protegem enquanto as espancam. muitas ainda têm que prestar contas do pouco que ganham com algum rufião da esquina, com o cafetão dono da pousada, com a cafetina do cabaré... e ainda têm essas roupas de pouco pano pra comprar, a maquiagem, o cabelo, as unhas, os saltos, os cigarros e as drogas pra suportar o cansaço e o desaforo de alguns cretinos suados que não escovam os dentes e nem lavam o pau direito. né fácil, não fia! sei que muitas delas nem têm casa, moram nas pousadas e hotéis onde trabalham, e sofrem com a ameaça de despejo. as que pagam aluguel e vivem amontoadas com as colegas, para tentar juntar algum trocado, também sofrem a ameaça do despejo. e, sem trabalho, falta o pão do dia-a-dia; já acabou até o do miojo. pensar no glamour da garota de programa de luxo, da sugar baby cheia de presentes de homens endinheirados é deixar-se levar pela fantasia. as prostituas e travestis são, em sua grande maioria, trabalhadoras exploradas, cujos serviços, em grande parte, se resume em ser xingadas e humilhadas por canalhas na cama, a troco de poucos trocados. e é um paradoxo, uma vez que muitas delas estão nessa vida porque cansaram da fome no município insípido, enjoaram da vida dura e sem retorno, não suportaram mais apanhar dos pais, dos padrastos, dos namorados e ganharam o mundo.
ganharam o quê com isso? sabia que nas famosas red lights de amsterdam você dificilmente vai encontrar uma holandesa? elas são, as que se exibem nas vitrines iluminadas, mulheres pobres do leste europeu, ou asiáticas e latinas iludidas com uma vida futura com algum no bolso; o macho branco, você bem o sabe, traz consigo esse prazer atávico de violar mulheres de outras culturas; seus ancestrais sempre o faziam quando invadiam um país estrangeiro. o tráfico e o sequestro de mulheres para serviços sexuais é uma forma de escravidão. mas voltemos à fome e à vontade comer. os homens lamentam que as prostitutas tenham sumido das calçadas, confortam-se com as punhetas guiadas dos serviços sexuais virtuais, mas continuam não se importando se tem ou não uma mulher por dentro daqueles corpos, se sentem frio ou se sentem fome. a reificação, a objetificação da mulher que trabalha como profissional do sexo, fica mais visível nesses tempos doentes e amendrontosos. por onde andam, como estão se virando para comer e pagar aluguel, como estão alimentando os filhos? quem se importa? palavra da salvação. #ficaemcasa mas fica de boa!
Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista. Autor dos programas seriados Estação Periferia (TV Brasil) e De Quebrada em Quebrada (TV Cultura), autor da novela Lagoas, premiada na Primeira Bienal de Cultura da UNE, figura na ontologia Contos Natalinos (ed. Atlas) e prefaciou o livro de poesias de Marla de Queiróz (Quando as Palavras se Abraçam). É colunista do site Brasil 247 e tem um blog na Revista Forum onde escreve crônicas e faz análise do discurso midiático.