Pandemia Crítica 003 - Crônica da psicodeflação (Parte 2)

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crônica da psicodefla¢ão Franco Bifo Berardi Tradução Beatriz Sayad 2a parte

Franco Berardi, também conhecido como “Bifo”, fundador da famosa Radio Alice em Bolonha e importante figura no movimento Autonomia Italiana, é escritor, teórico de mídia e ativista social.


6 de março Naturalmente, podemos argumentar exatamente o contrário do que eu disse: o neoliberalismo, no seu casamento com o etnonacionalismo, deve dar um salto no processo de abstração total da vida. Eis então o vírus que obriga todos a ficarem em casa, mas não interrompe a circulação das mercadorias. Ei-nos no limiar de uma forma tecnototalitária na qual os corpos serão sempre distribuídos, controlados, telecomandados. No Internazionale sai um artigo de Srecko Horvat (tradução da New Statesman) Segundo Horvat, “o coronavírus não é uma ameaça para a economia neoliberal, mas ao contrário, cria o ambiente perfeito para essa ideologia. Mas do ponto de vista político, o vírus é um perigo, porque uma crise sanitária poderia favorecer o objetivo entonacionalista das fronteiras reforçadas e da exclusividade racial e o de interromper a livre circulação das pessoas (sobretudo se chegam de países em desenvolvimento) garantindo, no entanto, uma circulação fora de controle de mercadorias e capitais. O temor de uma pandemia é mais perigoso que o próprio vírus. As imagens apocalípticas dos meios de informação escondem uma ligação profunda entre a extrema-direita e a economia capitalista. Como um vírus precisa de uma célula viva para se reproduzir, o capital também se adaptará à nova biopolítica do século XXI. O novo coronavírus já impactou a economia global, mas não vai interromper a circulação e acumulação do capital. Se for o caso, logo nascerá uma forma mais perigosa de capitalismo, que vai se basear sobre um maior controle e uma maior purificação das populações.”


Naturalmente, a hipótese formulada por Horvat é realista. Mas eu acredito que essa hipótese mais realista não seja realista, porque subestima a dimensão subjetiva do colapso, e os efeitos a longo prazo da deflação psíquica sobre a estagnação econômica. O capitalismo pode sobreviver ao colapso financeiro de 2008 porque as condições do colapso eram todas internas à dimensão abstrata da relação entre linguagem, finança e economia. Não poderá sobreviver ao colapso da epidemia porque aqui entra em campo um fator extrassistêmico. 7 de março Alex, meu amigo matemático, me escreve: “Todos os recursos superinformáticos estão comprometidos a encontrar o antídoto do coronavírus. Esta noite sonhei com a batalha final entre o biovírus e os vírus simulados. Em todo caso, o humano já está fora, me parece.” A rede de informática mundial está declarando caça à fórmula capaz de enfrentar o infovírus contra o biovírus. É necessário descodificar, simular matematicamente, construir tecnicamente o corona killer, para logo difundi-lo. Enquanto isso, a energia se retira do corpo social, e a política mostra sua impotência constitutiva. A política é cada vez mais o lugar do não poder, porque a vontade não tem controle sobre o infovírus. O biovírus prolifera no corpo estressado da humanidade global.


Os pulmões são o ponto mais fraco, aparentemente. As doenças respiratórias se propagaram durante anos proporcionalmente à propagação na atmosfera de substâncias irrespiráveis. Mas o colapso ocorre quando, ao encontrar-se com o sistema midiático, ao entrelaçar-se com a rede semiótica, o biovírus transferiu sua potência debilitante ao sistema nervoso, ao cérebro coletivo, obrigado a diminuir a velocidade de seus ritmos. 8 de março Durante a noite, o presidente do conselho Conte comunicou a decisão de colocar um quarto da população italiana em quarentena. Piacenza, Parma, Reggio e Modena estão em quarentena. Bolonha não. Por enquanto. Nos últimos dias falei com Fabio, falei com Lucia, e tínhamos decidido nos encontrar para jantar. Fazemos isso de vez em quando, nos vemos em algum restaurante ou na casa do Fabio. São jantares um pouco tristes, mesmo se não falamos sobre isso, porque sabemos que se trata de um resíduo artificial do que antes acontecia de maneira natural, muitas vezes na semana, quando nos reuníamos na casa da mamãe. Esse hábito de nos encontrarmos para almoçar (ou, mais raramente, jantar) de minha mãe tinha permanecido, apesar de todos os eventos, os movimentos, as mudanças depois da morte de meu pai: nos encontrávamos para almoçar com mamãe sempre que possível.


Quando minha mãe já não podia mais preparar o almoço, esse hábito acabou. E pouco a pouco, a relação entre nós três mudou. Até então, apesar de já termos sessenta anos, tínhamos seguido vivendo de uma maneira natural, ocupando os mesmos lugares na mesa como quando tínhamos 10 anos. Em volta da mesa se davam os mesmos rituais. Mamãe sentada junto do fogão pois isso lhe permitia continuar cuidando da cozinha enquanto comia. Lucia e eu falávamos de política, mais ou menos como há cinquenta anos, quando ela era maoísta e eu era operaísta. Este hábito terminou quando minha mãe começou a agonizar. Desde então temos que nos organizar para jantar. Às vezes vamos a um restaurante asiático que fica no pé da colina perto do teleférico no caminho que leva até Casalecchio, outras vezes vamos ao apartamento do Fabio, no sétimo andar de um edifício popular depois da ponte grande, entre Casteldebole e Borgo Panigale. Da janela podemos ver os prados nas margens do rio, e ao longe vamos o monte de São Lucas e à esquerda vemos a cidade. Então, nos últimos dias tínhamos decidido nos ver nessa noite para jantar. Eu tinha que levar o queijo e o sorvete; Cristina, a mulher do Fabio, tinha preparado a lasanha. Hoje de manhã, pela primeira vez, tudo mudou — agora me dou conta — o coronavírus entrou em nossa vida, não mais como um objeto de reflexão filosófica, política, médica ou psicanalítica, senão como um perigo pessoal. Primeiro foi um telefonema da Tânia, filha da Lucia, que já há algum tempo vive em Sasso Marconi com a Rita.


Tânia me telefonou para me dizer: ouvi dizer que você, mamãe e Fábio querem jantar juntos, não o faça. Estou em quarentena por que uma de minhas alunas (Tânia dá aula de ioga) é médica em Santa Úrsula e fez há uns dias o teste do tampão, e deu positivo. Tenho um pouco de bronquite, então resolveram fazer o teste em mim também, na espera do resultado não posso sair de casa. Eu lhe respondi dando uma de cético, mas ela foi implacável, e me disse uma coisa muito impressionante, na qual não havia ainda pensado. Me disse que a taxa de transmissão de uma gripe comum é de 0,21%, enquanto a taxa de transmissão do coronavírus é de 0,80%. Para ser claro: no caso de uma gripe normal você deve encontrar 500 pessoas para encontrar o vírus, no caso do Corona basta encontrar 120. Interesting. Ademais ela parece estar muito informada porque fez o teste do tampão e portanto falou com aqueles que estão realmente na linha de frente do contágio, disse que a idade média dos mortos é 81 anos. Pois, eu bem que suspeitava, mas agora sei. O coronavírus mata os velhos, particularmente mata os velhos asmáticos (como eu). No seu último pronunciamento, Giuseppe Conte, que parece uma pessoa muito honesta, um presidente um pouco por acaso que nunca deixou de ter ares de alguém que tem pouco a ver com política, disse: “Pensemos na saúde dos nossos avós”. Comovente, visto que me encontro no papel constrangedor de avô que precisa ser protegido. Tenta abandonado o papel de cético, disse a Tânia que agradecia, que seguiria suas recomendações. Liguei para Lucia, falamos um pouco e decidimos adiar o jantar.


Me dei conta que me meti em um clássico duplo vínculo batesoniano. Se não ligo para cancelar o jantar, me ponho no lugar de ser um hóspede físico, de ser portador de um vírus que poderia matar o meu irmão. Se, por outro lado, ligo para cancelar o jantar, como estou fazendo, me ponho no lugar de um hóspede psíquico, ou seja, de propagar o vírus do medo, o vírus do isolamento. E se esta história durar muito tempo? 9 de março O problema mais grave é o da sobrecarga à qual está submetido o sistema de saúde: as unidades de terapia intensiva estão à beira do colapso. Existe o perigo de não conseguirmos curar a todos os que necessitam uma intervenção urgente, se fala da possibilidade escolher entre pacientes que podem ser curados e pacientes que não podem ser curados. Nos últimos 10 anos, cortaram 37 milhões do sistema de saúde pública, reduziram as unidades de cuidados intensivos e o número de médicos gerais diminuiu drasticamente. Segundo o site quotidianosanità.it, “em 2007, o serviço sanitário nacional público podia contar com 334 departamentos de emergência-urgência e 530 pronto-socorros. Pois bem, 10 anos depois a dieta foi drástica: 49 Dea foram fechados (-14%) e 116 pronto-socorros já não existem (-22%). Mas o corte mais evidente está nas ambulâncias, tanto as do Tipo A (emergência) como as do tipo B (Transporte sanitário). Em 2017 temos que as do Tipo A foram reduzidas em 4% em comparação com 10 anos antes, enquanto que as do Tipo B foram reduzidas à metade (-52%). Também devemos levar em conta como diminuíram


drasticamente as ambulâncias com o médico a bordo: em 2007, o médico estava presente em 22% dos veículos, enquanto que em 2017 só em 14,7%. As unidades móveis de reanimação também foram reduzidas em 37% (eram 329 em 2007, são 205 em 2017). O ajuste também afetou os asilos privados que, de qualquer modo, têm muito menos estrutura e ambulâncias do que os hospitais públicos. “A partir dos dados é possível ver como houve uma contração progressiva das camas em escala nacional, muito mais evidente e relevante no número de camas públicas em comparação com a proporção de camas administradas no sistema privado: o corte de 32.717 camas totais em sete anos remete principalmente ao serviço público, com 28.832 camas a menos que em 2010 (16,2%), em comparação com 4.335 camas a menos no sistema privado (-6,3%)”. 10 de março “Somos ondas do mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”. Isso está escrito nas dúzias de caixas que contém as máscaras que chegam da China. Aquelas mesmas máscaras que a Europa nos recusou. 11 de março Não fui à rua Mascarella, como faço geralmente no dia 11 de março de cada ano. Nos encontramos diante da lápide que lembra a morte de Francesco Lorusso, alguém faz um pequeno discurso, depositamos uma coroa de flores ou uma bandeira da Luta Continua que alguém conservou na cantina, e nos beijamos, nos abraçamos forte.


Não consegui ir dessa vez, porque eu não conseguiria dizer a um dos meus velhos companheiros que não podemos nos abraçar. Chegam fotos de Wuhan de pessoas festejando, todas rigorosamente com a mascarazinha verde. O último paciente afetado pelo coronavírus foi dispensado dos hospitais construídos rapidamente para conter o fluxo. No hospital de Huoshenshan, na primeira etapa de sua visita, Xi elogiou os médicos e os enfermeiros definindo-os “os anjos mais belos” e “os mensageiros de luz e esperança”. Os trabalhadores sanitários de primeira linha assumiram as missões mais árduas, disse, definindo-os como “as pessoas mais admiráveis da nova era, que merecem os mais altos elogios”. Entramos oficialmente na era biopolítica, na qual os presidentes não podem nada, só os médicos podem alguma coisa, e mesmo assim não tudo. 12 de março Itália. Todo o país entra em quarentena. O vírus corre mais rápido do que medidas de contenção. Eu e Billi colocamos as nossas máscaras, pegamos a bicicleta e vamos fazer compras. Só farmácias e mercados de alimentos podem ficar abertos. E também as bancas de jornal, compramos os jornais. E as tabacarias. Compro papel para fazer um baseado, mas falta hashish na sua caixa de madeira. Logo não terei mais droga, e na praça Verdi não há mais nenhum dos garotos africanos que vendem aos estudantes. Trump usou a expressão “foreing virus”


All viruses are foreing by definition, but the President has not read William Burroughs. [Todas as virose são estrangeiras por definição, mas o presidente não leu William Burroughs]. 13 de março No Facebook tem um cara espirituoso que postou no meu perfil a frase: “Ei, Bifo, aboliram o trabalho.” Na realidade, o trabalho é abolido só para uns poucos. Os trabalhadores das indústrias estão em pé de guerra porque têm que ir à fábrica como sempre, sem máscaras ou outras proteções, a meio metro de distância um do outro. O colapso, logo as longas férias. Ninguém pode dizer como sairemos desta. Poderíamos sair, como alguém previu, sob as condições de um estado tecnototalitário perfeito. No livro Black Earth, Timothy Snyder explica que não há melhor condição para a formação de regimes totalitários do que a situações de emergência extrema, onde a sobrevivência de todos está em jogo. A AIDS criou a condição para o apagamento do contato físico e para o lançamento de plataformas de comunicação sem contato… a Internet foi preparada para a mutação psíquica denominada AIDS. Agora poderíamos muito bem passar a uma condição de isolamento permanente dos indivíduos, e a nova geração poderia internalizar o terror do corpo dos outros. Mas o que é o terror?


O terror é uma condição na qual o imaginário domina completamente a imaginação. O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as imagens que a experiência nela depositou, a limitação do imaginável. A imaginação é a energia renovável e desprezada. Não utopia, se não recombinação dos possíveis. Existe uma divergência no tempo que vem: poderíamos sair desta situação imaginando uma possibilidade que até ontem parecia impensável: redistribuição de renda, redução do tempo de trabalho. Igualdade, frugalidade, abandono do paradigma do crescimento, inversão de energias sociais em investigação, em educação, em saúde. Não podemos saber como sairemos da pandemia cujas condições foram criadas pelo neoliberalismo, pelos cortes na saúde pública, pela hiperexploração nervosa. Poderíamos sair dela definitivamente sozinhos, agressivos, competitivos. Mas, ao contrário, poderíamos sair dela com um grande desejo de abraçar: solidariedade social, contato, igualdade. O vírus é a condição de um salto mental que nenhuma política tinha podido produzir. A igualdade voltou ao centro da cena. Vamos imaginá-la como o ponto de partida para o tempo que virá.


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