saco plástico na cabe¢a: a gambiarra na pandemia Sabrina Sedlmayer
1. Desbunde experimental As máscaras protetoras recomendadas para o enfrentamento do coronavírus sumiram das farmácias e, quando encontradas, apresentavam um preço exorbitante. Este fato desencadeou, a partir do mês de março de 2020, uma miríade de manifestações no seio do cotidiano que, como é possível verificar nas imagens aqui coletadas por cerca de quarenta dias, sempre por meio das redes sociais, nos surpreendem pelo intenso improviso, pela plástica criatividade e às vezes pelo gesto de invenção. Nesses exemplos percebemos o que nós, brasileiros, apelidamos de “gambiarra”: uma improvisação feita com o que se tem em mãos para sanar uma específica necessidade. Quase sempre originada de forma espontânea, a gambiarra parte de algum produto ou material preexistente e o transforma. Altera a forma anterior para adequá-lo aquela nova emergência. Com isso, cria-se um outro objeto. Geralmente não tem valor algum de troca no mercado porque não faz parte do sistema econômico do capitalismo. Mas consegue carregar consigo o traço da falta, da escassez, do precário, da fome, do provisório. As máscaras “customizadas” pelos inventores do cotidiano falam muitas coisas. Há aquelas que estampam principalmente o medo do contágio. Outras exprimem bizarrice à espera da aprovação do olhar do outro: épateur les bourgeois. Algumas funcionam como símbolos identitários das preferências culturais de quem as porta. Já tantas querem somente provocar o riso de quem as vê. Tem também algumas que conseguem sair do esquema da imitação da máscara anteriormente exclusiva dos profissionais de saúde e transmitirem recados políticos precisos. Reconheço também alguns traços de lirismo, como aquelas artimanhas que os italianos fizeram (e ainda fazem) para driblar
a distância e se sentirem mais perto do vizinho do apartamento: estender uma toalha entre as varandas, improvisarem uma mesa, e comerem em companhia, mesmo que cada um em seu balcone. Os materiais dessas máscaras-gambiarra são os mais diversos possíveis e anteriormente, antes da crise, inimagináveis: lixeira de plástico, garrafa PET, bucha de limpeza, livro, cano PVC, papelão, cone de sinalização, lençol, bandana de tecido, sombrinha, cueca, soutien, absorvente, máscara de mergulho, copo plástico e até certos alimentos, como a couve e o repolho. Foi difícil dividi-las e agrupá-las como estão aqui porque algumas são da ordem da performance e, paralisadas em fotografias, perdem o frescor. Menos complicado foi descartar dezenas que só tentam reforçar a piada de gosto duvidoso ou do apelo grotesco a procura de likes e visualizações. Hoje, à medida que escrevo este texto, abundam posts ou perfis inteiros no Instagram dedicados à estilizações das máscaras, em selfies com forte pendor estético, justamente como João Cabral de Mello Neto identificava o mal poema: aquele que perfumava a flor, aquele que poetizava o poema. Os posers nada comungam com a arraia miúda que está nas ruas, que desfila nos supermercados, nos metrôs. Vejo aí táticas que respondem ao surto do vírus não com impotência e vulnerabilidade, mas com irreverência e humor. Ressalvam a surrealidade dos dias extraordinários de então.
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2. Carnavalização da técnica As máscaras protetoras marcam distanciamento, minimizam o contato físico e enfraquecem a comunicação espontânea entre as pessoas. Mas são muitos os tipos e os usos. O grande teórico da carnavalização, Mikhail Bakhtin, ignorou um dado importante: todas as máscaras são ambíguas. Preferiu salientar os aspectos cômicos e positivos do uso desses artefatos durante os dias da festa carnavalesca pois, para ele, o carnaval era um acontecimento democrático onde todos se tornam um só, todos se tornam iguais, todos conversam de um mesmo lugar. Defendia que se tratava de um rito folclórico típico do renascimento, uma festa livre e familiar, bem diferente do carnaval moderno que, para ele, virara um mero espetáculo. O que se evidencia nessas reflexões do início do século XX que deram origem a um feixe de derivações luminosas que reverberam até hoje nos estudos teóricos, nas manifestações artísticas e culturais que versam sobre intertextualidade, Antropofagia e o Tropicalismo, é a importância da ferramenta chamada paródia: um canto paralelo que, através da negação, refaz, deforma e recria um determinado referente. Sempre com caráter duplo, oblíquo, a paródia é uma resposta, é uma consciência dessacralizadora. A pandemia do Covid-19 chegou como fato no Brasil justamente depois do Carnaval 2020, quando máscaras foram utilizadas como fantasia, símbolo de alegria, liberdade crítica, como campo possível para assumir papéis distintos daqueles da rotina. Conta-se, num borrão entre ficção e realidade típico dos relatos que tentam marcar uma origem, que tais artefatos saíram do circuito médico e pulularam no Carnaval de Veneza devido a peste bubônica, que foi uma doença que dizimou um terço da população da
Europa. O primeiro surto aconteceu no século 14, o segundo no século 17. Nesse último, os médicos começaram a usar máscaras com formato de “bico de pássaro” como medida preventiva para se protegerem do miasma. Acreditava-se que o miasma, o mal cheiro, era responsável pela transmissão das doenças. Não sabiam das bactérias que instalavam nos animais pequenos, principalmente nos ratos. Depois de controlada a peste negra, a fantasia com máscaras, no Carnaval, passou a funcionar como uma destronização do poder e das ideologias hegemônicas, em nada relacionado à proteção contra a doença. Esse relato pode explicar uma parcela do repertório que inundou os nossos dias, a desenfreada confecção de máscaras para se proteger do Coronavírus.
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3. Pernas para que te quero Linda Hutcheon talvez tenha razão ao definir a paródia como um ethos, uma reação intencional, um diálogo intrinsecamente afinado com o objeto referido. Diferente da intertextualidade que almeja acessar o repertório do leitor, a paródia é direta com a sua fonte, não faz rodeios, e o escracha. E o que se percebe nesse múltiplo arsenal de máscaras surgidas nos últimos dois meses no Brasil (e no mundo) é mais que jogo ou brincadeira. A hipótese que gostaria de lançar é que há potentes gestos – práticas, táticas, políticas – que se alicerçam justamente na escassez de produtos, de recursos e/ou serviços. Nesse paradoxo, na transformação do negativo em positivo, percebe-se uma potência singular na qual a falta é transformada. Essa prática configura um aspecto um tanto original de procedimentos para driblar as adversidades que vão da ordem econômica à técnica. Os exemplos aqui trazidos demonstram que a gambiarra não é um fenômeno exclusivamente brasileiro e que se deve relativizar a leitura que a encarcera somente como um traço da identidade local. Ernesto Oroza ao discorrer sobre as geringonças em Cuba as denomina como “arquitetura da necessidade” e “tecnologia desobediente”. No México também a palavra rasquache, derivada do nahuatl foi transformada em movimento estético. O uso pejorativo, pobre, vulgar e inferior passou a ser relacionado a espontaneidade e irreverência. Curiosamente, segundo o Houaiss, mesmo a etimologia da palavra gambiarra sendo “obscura e duvidosa” poderá ter relação com “gâmbias”, pernas. Na língua espanhola, uma palavra muito utilizada na língua falada é gamberro, que apresenta conexões fonéticas com o termo gambiarra. No Dicionário crítico etimológico castellano e hispánico encontramos que gamberro
tem origem incerta, mas é utilizada para descrever um libertino, dissoluto, um sujeito marginal. O curioso é que no verbete etimológico há menção também à “gâmbia”, perna e remissão ao uso alentejano, à língua portuguesa. Seriam pernas de homens capazes de fugir, correr, escapar? Para outros, o termo se relaciona com “gambiarã” que, em tupi-guarani, designa “acampamento provisório”. Algo relacionado à marginalidade e ao mesmo tempo esperteza surge nessa breve pesquisa etimológica. No entanto, em tempos de pandemia, a precariedade é globalizada. Os enfermeiros ingleses, na falta de máscaras, usaram saco plástico na cabeça (fato lembrado pelo ex ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, no discurso de despedida do cargo). Nas fotografias aqui reunidas, reconhecemos norte-americanos nos supermercados, super mascarados. Outras tantas imagens vieram da Espanha. A gambiarra das máscaras do Covid-19 não é exclusividade dos somente países periféricos, cuja desigualdade econômica é aguda. No áspero, há ainda devaneio.
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4. Fantasmagorias de identidade A gambiarra na pandemia pode ser entendida, assim, como uma reserva infinita de manifestações que estão soltas, desencadernadas, nômades, na existência humana, em qualquer confim. Algumas imagens aqui coletadas nos remetem ao object trouvé e a outras intervenções das Vanguardas. Ready-made, collage, bricolage dialogam pontualmente com essa cena que não estabelece fronteiras entre arte popular e arte erudita. Nem sequer talvez almejem pensar em termos artísticos. O que vemos aqui nessas imagens é bem diferente de uma robusta cena artística brasileira que emprega materiais que fazem referência aos meios-limites (odds and ends, des bribes et des morceaux, hecho de retazos, feito com os restos) ou com determinados trabalhos cujo modus operandi é a gambiarra. Algumas imagens dessa antologia estampam exemplos de vida nua e interrogam a reclusão social. Há desejo de passear pela crise rindo, e não chorando, como cantava Cartola. As máscaras parecem não ter CEP’s. Saíram dos hospitais e das clínicas e perambulam. No movimento das apressadas idas às farmácias ou aos supermercados, questionam o #iorestoacasa #emcasa #stayinhome. Um arquivo mascarado e anônimo que fala de tentativas de rasura do vazio, do tempo lento da pandemia. O caráter contingente e intempestivo dessa crise abre brechas para o uso de personas, palavra grega que nomeia justamente a máscara que o ator usava no palco quando tinha que desempenhar um determinado papel.
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Dedicato ai miei amici in Italia: Roberto, Isa e Vincenzo
Sabrina Sedlmayer é professora da Faculdade de Letras da UFMG. As suas pesquisas situam-se no campo da literatura comparada, atuando principalmente na linha Políticas do Contemporâneo. Agradecimento pela ajuda na coleta de imagens das máscaras-gambiarra: Alexandre Amaro / Antônio Valladares de Andrade / Nathália Valentin / Rafael Climent-Espino / Rivane Neueschwander / Sofia Maria Pires