o estranho silêncio antes da tempestade Franco “Bifo” Berardi
Tradução Damian Kraus e Francisco Freitas
4a parte
4 de abril Lucia encontrou uma foto em preto e branco e me manda por telefone. Na foto, uma mulher jovem, belíssima, vestida como nos anos trinta se vestiam as garotas nos dias de descanso. Com ela está uma menina. Ao fundo, um edifício que reconheço facilmente. A mulher e a menina caminham pela rua Ugo Bassi, atrás está o frontão triangular do edifício que separa a rua del Pratello da rua San Felice. A jovem olha adiante, com o olhar um tanto ausente, e a menina quase se aferra à sua mão, parece reclamar atenção, mas a mulher não a olha, não se volta para ela, olha adiante, fixa seu olhar na distância. Essa mulher é minha mãe, e a menina é a sua prima, Maria. Imediatamente me pergunto quem tirou essa foto, quem segura a câmera. É Marcello, com certeza, seu prometido Marcello. O avô Ernesto permitia Dora sair com ele nos dias de descanso, mas só se fosse acompanhada de alguém, um irmão ou uma menina. Dora parece incomodada, um tanto aborrecida, talvez chateada pela presença indesejada de sua prima. Não se volta para olhá-la, olha para ele, para o fotógrafo que capturou esse instante. Fixa seu olhar na distância, para o futuro que imagina, nesse dia de descanso primaveril nos fins dos anos 1930, quando a minha mãe tinha pouco mais de vinte anos, e a tragédia parecia estar distante. Logo veio a tragédia da guerra que devastou a vida e convulsionou o futuro que ela esperava.
6 de abril A grim calculus. A manchete do Economist dessa semana diz tudo. Grim significa tétrico, sombrio, e também feroz. Um cálculo triste que somos obrigados a fazer. É fácil entender de que cálculo fala a revista que há um século e meio representa o pensamento econômico liberal. Quanto nos custará em termos econômicos a pandemia de coronavírus, e que tipo de raciocínio nos vemos obrigados a fazer, tendo que escolher entre duas decisões alternativas: fechar tudo e bloquear quase por completo a produção, a distribuição, em resumo, toda a máquina da economia, ou bem aceitar a possibilidade de uma hecatombe. Leio na revista londrina: “O governador de Nova York, Andrew Cuomo, declarou que não devemos pôr um preço à vida humana. Isto significou um grito de guerra de um homem valente à frente de um Estado quebrado. No entanto, ao deixar de lado os sacrifícios, Cuomo reivindica de fato uma decisão que não leva em conta a quantidade de consequências que trará para toda sua comunidade em termos amplos. Pode soar impiedoso, mas pôr um preço à vida é precisamente o que os líderes terão de fazer se quiserem encontrar uma saída durante os tormentosos meses por vir. Como uma unidade de terapia intensiva, às vezes sacrifícios são inevitáveis [...]. Por enquanto, o esforço para combater o vírus parece estar destinado a consumir todos os nossos recursos [...]. Tanto em uma guerra como em uma pandemia, os líderes não podem escapar ao fato de que cada curso de ação irá impor grandes custos econômicos e sociais [...].
Para o verão, as economias terão sofrido quedas de dois dígitos em termos do Produto Interno Bruto. As pessoas terão suportado meses de fechamento, danificando tanto a coesão social quanto sua saúde mental. Confinamentos de um ano custariam tanto aos Estados Unidos como à Europa um terço ou mais do Produto Interno Bruto, os mercados decairiam e os investimentos seriam postergados. A economia poderia se enfraquecer porque a inovação se estancaria. Finalmente, o custo do distanciamento social poderia superar os benefícios. Este é um aspecto dos sacrifícios que todavia ninguém está disposto a admitir.” Totalmente claro: The Economist nos põe diante de um raciocínio que pode parecer brutal, mas que é simplesmente realista. Um destaque da revista diz “Hard-headed is not hard-hearted”. Ser sensato não significa ser insensível. Como negar? Graças à decisão de interromper o fluxo da atividade social e o ciclo da economia, os dirigentes políticos certamente salvaram milhões de vidas nos próximos três, seis, doze meses. Mas – observa The Economist com uma coerência intransigente – isto nos custará um número de vidas muito maior no tempo que vem. Estamos evitando a hecatombe que o vírus poderia nos custar, mas que cenários preparamos para os próximos anos, em escala global, em termos de desocupação, ruptura das cadeias de produção e distribuição, em termos de dívida e de falências, de empobrecimento e desespero? Paremos um pouco. O editorial de The Economist é razoável, coerente, irrefutável. Mas apenas dentro de um contexto de critérios e de prioridades que corresponde à forma econômica que temos chamado de capitalismo. Uma
forma econômica que faz a alocação de recursos e a distribuição dos bens depender da participação na acumulação de capital. Em outras palavras, que faz a possibilidade concreta de acesso a bens úteis depender da posse de títulos monetários abstratos. Bem, este modelo que tornou possível a mobilização de enormes recursos para a construção da sociedade moderna, hoje se transformou em uma armadilha lógica e prática da qual não encontramos saída. Mas agora a saída se impôs por si só, automaticamente, com violência, infelizmente. Não a violência das revoluções políticas, mas a violência de um vírus. Não a decisão consciente de forças dotadas de vontade humana, mas sim a inserção de um corpúsculo heterogêneo como é a vespa em relação à orquídea, um corpúsculo que começou a se proliferar até tornar o organismo coletivo incapaz de entender e desejar, incapaz de produzir, incapaz de continuar. Isso parou a reprodução, absorveu enormes somas de dinheiro que revelaram servir para pouco ou nada. Temos deixado de consumir e de produzir, e agora estamos aqui, olhando o céu azul desde a janela e nos perguntamos como terminará tudo isso. Mal, muito mal, diz The Economist, para quem a interrupção do ciclo do crescimento e da acumulação parece ser um evento catastrófico que pagaremos com fome, miséria e violência. Permito-me discordar do catastrofismo do Economist, porque entendo de maneira diferente a palavra “catástrofe”, que significa em sua etimologia “desvio além do qual se enxerga um outro panorama”. Kata se pode traduzir como “além”, e strofein significa “mover-se”, “deslocar-se”. Então temos ido além, temos cumprido finalmente esse movimento que as lutas conscientes, determinadas e loquazes de cinquenta anos não
chegaram a cumprir. Tudo se deteve ou quase tudo, agora se trata de reiniciar o processo, mas segundo um outro princípio, o princípio do útil e não o da acumulação do abstrato. O princípio da igualdade frugal de todos, não o da competição e da desigualdade. Seremos capazes de desenvolver esse princípio para fazer com que a máquina volte a funcionar – não essa máquina que antes funcionava sem parar, mas uma máquina elástica, uma máquina talvez um pouco mais instável, e certamente mais frugal, mas amiga? Seremos capazes? Não sei, e sobretudo não sei quem seria esse “nós” a que estou aludindo com a minha pergunta. Seremos capazes quem? Não mais a política, não a arte do governo. A política é incapaz de qualquer governo e, sobretudo, é incapaz de compreender. Os pobres políticos parecem estar atordoados, vacilantes, ansiosos. O novo jogo, o da proliferação rizomática de corpúsculos ingovernáveis, põe em campo o saber, não a vontade. Não mais a política, portanto; mas o saber. E qual saber? Não o saber dos economistas, incapazes de sair da casa de espelhos da valorização, que traduz o produto nos termos abstratos do cálculo monetário e aumenta o volume de destruição a fim de aumentar o volume de valor abstrato. Mas um saber concreto, um saber que não traduz o útil em valor, mas em prazer, em riqueza.
Precisamos de aviões de combate F35? Não, não precisamos, não servem para nada a não ser para fechar as contas de uma aliança militar inútil e para fazer trabalhar operários que poderiam produzir com mais utilidade latas de atum. E também porque com um único avião de combate F35, sabem quantas unidades de terapia intensiva podem ser criadas? Duzentas. Eu sei, é discurso de preguiçoso que não sabe quão complexas são as interdependências, etc. etc. Está certo, vou ficar quieto, e escutemos então o discurso dos realistas que repetem a mesma ladainha: se quisermos manter a ocupação nos níveis atuais, devemos produzir armas, não é?, dizem os realistas do Economist e aqueles da direita e da esquerda. Então continuaremos a produzir armas para fazer trabalhar toda essa gente oito, nove horas por dia. E dentro de um mês ou um ano de epidemia seguirá a miséria em massa e logo a guerra. E a extinção, da qual, desta vez, tivemos só uma amostra, virá ao nosso encontro sobre seu belo cavalo branco como no triunfo da morte, que pode ser visto em Palermo, dentro do Palazzo Abatellis. E se, ao contrário, decidimos fazer as pessoas trabalharem só o tempo necessário para produzir o que for útil? E se dermos a todos uma renda, prescindindo do tempo de trabalho (inútil)? E se interrompermos o pagamento dos aviões inúteis que já compramos? E se pouco nos fodemos para as obrigações internacionais que impõem o pagamento de quantias enormes para a guerra? É isto: esses discursos não são mais os delírios de um extremista, mas o único realismo possível.
There is no alternative ;) Me escreve desde Londres minha amiga Penny: “I just sit and write – this strange life has become familiar and calming but there is always calm before the storm”. [“Eu apenas sento e escrevo – esta vida estranha se tornou familiar e calma, mas sempre há calma antes da tempestade”. N.T.] Há sempre um estranho silêncio antes de começar a tempestade. É como dizer: o melhor virá quando o cansado vírus se retirar. Nesse ponto, os estúpidos pensarão que é o momento de voltar à normalidade. Os sábios se preparam para a tempestade maior. 7 de abril Após dois meses de quase total clandestinidade, hoje voltou a asma, e me perseguiu o dia todo. Deitado na cama, ofeguei sem oxigênio e sem forças para fazer nada. À noite saí para tirar o lixo: orgânico, vidro, indiferenciado. Caminho lentamente pela praça perto de casa. O Hotel San Donato Best Western está fechado, trancado com grades asseguradas. Caminho um pouco pela via Zamboni para ver as torres. Não tem ninguém nessa rua onde desde o século XII, na primavera, amontoam-se e se cortejam estudantes. 8 de abril Tomo café e olho para fora, a praça cheia de sol. Também hoje está essa garota que sai de baixo da arcada, talvez vive só em uma quitinete na
rua del Carro. Tem uma camiseta negra com bordas amarelas, o celular na mão e faz movimentos de ginasta. Movimentos um pouco torpes; levanta a perna direita e permanece assim por uns segundos, mas o telefone atrai sua atenção e então levanta a perna esquerda olhando o celular, logo vira para a parede, apoia os braços e realiza alguns movimentos pra frente e pra trás com a cabeça. Meu telefone toca e me afasto. Chamam de Milão para pedir se posso enviar ainda hoje uma gravação para a Rádio Virus. Volto à janela, a garota não está mais. Se não fosse porque seu representante terreno proibiu considerar a doença um castigo de Deus, assumiria que o Senhor é um velho engraçado. Primeiro enviou [Boris] Johnson para a terapia intensiva, depois fez o mesmo com o ministro homofóbico Litzman, do Estado de Israel. Infelizmente, esta é a única notícia reconfortante que vem daquele país de racistas. No mais, a crônica política israelense fala da disputa interminável entre o torturador Ganz, o corrupto Netanyahu e o nazista de Lieberman. Talvez irão para a quarta eleição em um ano, enquanto o mundo se dissolve ao seu redor, mas eles estão ocupados demais em suas rixas para se darem conta disso. Segundo a Organização Internacional do Trabalho de Genebra (OIT), a pandemia provocará no ano que vem um aumento do desemprego calculável em torno de 25 milhões. Nos Estados Unidos houve mais de dez milhões de demissões em duas semanas, e se espera que o número aumente nos próximos dias. Tratase de números sem precedentes, para usar uma das expressões mais em voga nos últimos dias.
Para fazer frente a um fenômeno desse tipo, não serão suficientes as políticas econômicas tradicionais. Ou se recorre à marginalização violenta de uma parte enorme de uma população de miseráveis que protestam nas periferias das cidades, ou se abandona por completo o discurso da economia moderna, a velha utopia do pleno emprego, o prejuízo do trabalho assalariado, e se volta a começar literalmente do zero. Resta apenas uma certeza: a do saber científico acumulado, e sobretudo a da potência viva do trabalho cognitivo, da invenção técnica e da palavra poética. Mas o critério econômico que até agora regulou as relações e as prioridades enlouqueceu definitivamente e ficou fora do ar. E para sempre. Porque se procurarmos de reestabelecer a antiga relação entre aqueles que detêm riqueza e aqueles que devem trabalhar para ganhar a vida, então a miséria está destinada a gerar rios de violência, e o desemprego a alimentar exércitos de desesperados dispostos a qualquer coisa. A questão seria proceder à confiscação de espaços e de estruturas produtivas. A questão seria regular o acesso aos recursos disponíveis em condições de igualdade. Não podemos perder tempo com a ilusão de voltar à normalidade passada, porque esta ilusão corre o riso de arrastar o que resta a uma espiral de devastação sem retorno. O que os consumidores esperavam nos últimos cinquenta anos não existe mais e, justamente, não deve voltar. É o sistema de expectativas que deve mudar radicalmente.
Se me pedissem para indicar um evento, uma data e um lugar que está na origem do apocalipse, diria que esse evento é a Conferência da Terra no Rio de Janeiro em junho de 1992. Pela primeira vez, as grandes nações se encontraram para avaliar a necessidade de enfrentar os perigos que o crescimento econômico começava a revelar. Naquela ocasião, o presidente dos Estados Unidos, George Bush pai, declarou que “o nível de vida dos estadunidenses não pode ser objeto de negociação”. Todos estamos pagando por sua perversidade, que talvez seja inerente à existência mesma dessa nação nascida do genocídio, e cuja riqueza depende da deportação, da escravidão, da guerra e da rapina dos recursos e do trabalho de outros. Essa nação enfrentará em breve uma devastadora guerra interna e, merecidamente, não sobreviverá. 9 de abril Após um mês de clausura e, sobretudo, de incerteza pelos resultados próximos da situação, percebese certo nervosismo na voz dos amigos que ligam, e também nos testemunhos escritos ou nas análises que me chegam todos os dias às dezenas. Certamente, não leio tudo que me chega, mas leio muitíssimo. Na lista de mensagens chamada Neurogreen, hoje recebi um artigo de Laurie Penny, publicado na Itália pelo Internazionale, mas publicado originalmente na revista californiana WIRED, que durante muitos anos foi a pioneira da imaginação digital futurista e visionária, e, em última instância, ultraliberal. É estranho ler nessa revista geralmente ultraotimista um artigo desse tipo, que antes
de tudo é um relato de uma experiência vivida bastante dramática. Laurie Penny está sabe-se lá onde, longe de casa, e é surpreendida pela tempestade viral. “O capitalismo não pode imaginar um futuro além de si que não seja uma carnificina total [...]. A socialdemocracia foi reinstalada de apuro porque, parafraseando Margaret Thatcher, realmente não há alternativa”. 150 membros da família real saudita afetados pelo vírus. Bernie Sanders se retira, Biden perderá as eleições (o talvez as ganhe?), assumindo que as eleições estadunidenses se realizem. Oito médicos morreram na Grã-Bretanha tratando de pessoas infectadas pelo vírus. Todos eram estrangeiros, procedentes de Egito, Índia, Nigéria, Paquistão, Sri Lanka e Sudão. O céu de Deli é o mais límpido já visto em anos. De noite se veem as estrelas. Mas a Confederação Nacional da Indústria italiana, Confindustria, tem pressa para retomar a atividade, ainda que as notícias procedentes da China não sejam tranquilizadoras: Wuhan reabre, mas fecha Heilongjiang. A batalha contra o coronavírus é como tentar esvaziar o mar com um balde: abrir aqui, fechar lá. Talvez nem mesmo deveríamos combater, pois a guerra se perdeu ao princípio: precisaríamos reduzir ao mínimo nossos movimentos, precisaríamos reconhecer que se esgotou a potência com a qual nos embriagamos na era moderna. Os que pagarão mais caro por ela são aqueles que acreditaram e seguem acreditando na ilimitada potência da vontade humana. Compreensivelmente, os homens
esperneiam, querem voltar a tomar o cetro em suas mãos, querem governar seu futuro tal como, enganando-se a si mesmos, acreditaram que faziam num passado glorioso. Mas o vírus nos ensina que a potência ilimitada era um conto de fadas e que esse conto de fadas terminou. 10 de abril A ANPI [Associazione Nazionale Partigiani d’Italia, fundada em 1944 pela resistência contra a ocupação nazifascista na Segunda Guerra Mundial] lança a proposta de fazer em 25 de abril um encontro pela democracia. Aceito a convocatória e fico à disposição para o que for preciso. Cantarei também o hino de Mameli [Il Canto degli Italiani] no começo das celebrações? Espero o 25 de abril com o mesmo espírito com o qual espero a Missa de Páscoa do Papa Francisco. Apesar de meu ateísmo, me fez bem escutar Francisco aquela noite na praça deserta. Com o mesmo espírito participarei da manifestação virtual do 25 de abril. A divindade que adoram os democratas é tão ilusória como o deus de Francisco, mas vai ser bom sentir a proximidade de um milhão de pessoas. 11 de abril Na via Castiglione, nas colinas de Bolonha, a dois quilômetros do centro da cidade, alguém filmou uma javalina seguida de seis pequenos javalis. Em Bruxelas, os holandeses reiteram que quem precisar de dinheiro deve assinar um letra de câmbio que diga: pagarei. A Itália esteve de
acordo com os holandeses quando, em 2015, tratava de se impor à Grécia o respeito pela lei do credor. Hoje é compreensível que a Itália queira evitar o tratamento que se lhe infligiu à Grécia. Mas as noções de dívida e de crédito parecem hoje bastante incoerentes. A insolvência está destinada a destruir o sistema de comércio. Aqui também: there is no alternative. Por falar em Grécia, em julho Stella e Dimitri nos esperam na ilhota esporádica. Há mais de dez anos alugamos uma casinha em meio às oliveiras. O que será do verão, das viagens, do mar? Com Billi rondamos o tema com cautela. Talvez não haja viagens este verão. 12 de abril Depois das descortesias explícitas de Rutte [primeiro ministro holandês] e de Hoekstra [ministro de finanças holandês], a Sra. Ursula [presidenta da Comissão Europeia] tenta dourar a pílula dos italianos, que estão muito irritados pela mesquinharia um tanto ofensiva dos holandeses. Concedem um “Fundo Salva-Estados” [Mecanismo Europeu de Estabilidade] sem condições? De coronabônus nem se fala? Em uma coisa, no entanto, estão todos de acordo: não se deve passar a borracha e fazer conta nova do passado. Escutei isso várias vezes dos negociantes europeus. É que todos acham ruim passar a borracha e fazer conta nova? Talvez seria melhor resignar-se à borracha e à conta nova. “Chi ha avuto ha avuto ha avuto / chi ha dato ha dato ha dato / scurdammoce ‘o passato / simm’e Napule paisà” [“Quem teve teve teve / quem deu deu deu / esqueçamos o passado /
somos de Nápoles, paisano” – refrão da tarantela Simmo ‘e Napule, paisà]: a profunda sabedoria destes versos napolitanos é incompreensível para os economistas. 14 de abril O velho socialista Rino Formica, em uma entrevista publicada por Il Manifesto, observa que não devemos acreditar que neste momento sobreviver seja mais importante que pensar, como sugere o lema latino primum vivere deinde philosophari [“primeiro viver, depois filosofar”]. Se não filosofamos, analisa o sábio Formica, corremos o perigo de não saber quais decisões tomar para, logo, viver. Marco Bascetta, por sua parte, sempre no Manifesto, publica uma reflexão (confusa, porém instigante) sobre o mesmo tema latino, ligeiramente modificado: primum vivere deinde laborare [“primeiro viver, depois trabalhar”]. E com justeza observa que sem vida não há mercado. Agamben escreveu várias vezes que, em nome da vida nua, estamos dispostos a renunciar à vida, e me vem à mente outra máxima latina, que sempre preferi à mencionada por Formica: navigare necesse est, vivere non est necesse [“navegar é preciso, viver não é preciso”]. Para que vivermos se não formos mais capazes de navegar? Pela segunda vez, o presidente dos Estados Unidos late ameaçando suspender ou cancelar o financiamento para a Organização Mundial de Saúde, porque diz que ela reagiu lenta e equivocadamente ante o advento da pandemia, ou talvez porque adotou uma posição pró-China. Também ameaça sub-repticiamente demitir o especialista mais
respeitado do sistema de saúde estadunidense, o virologista Anthony Fauci. Do seu país, nos últimos dias têm chegado fotos de sacos que contêm cadáveres, que terminam lançados em valas comuns escavadas para aqueles que não têm nem meios para se permitir um funeral e uma sepultura. Isto perto da metrópole cosmopolita de Nova York. Muitos se escandalizaram pensando que se trata de uma consequência do vírus maldito, que obriga os norte-americanos a renunciar aos devidos funerais e ao respeito pelos falecidos. Erro. Essas fotos não são uma notícia, não têm muito a ver com a epidemia. Nesse país, de fato, aqueles que não têm nada e morrem como cães geralmente são sepultados dessa maneira, por coveiros − detentos em alguma prisão, em uma vala comum na periferia fétida de uma cidade muito rica. Eis a normalidade a que muitos desejam rapidamente voltar. 15 de abril Na Califórnia, grupos de sem-teto ocupam apartamentos e casas à venda que, a esta altura, ninguém jamais comprará. Notícia reconfortante. Em Lagos, os cidadãos de alguns bairros se armam para se defender de hordas de ladrões que, à noite, roubam onde podem roubar, aproveitando o toque de recolher. Notícia inquietante. Mas talvez seja a mesma questão; talvez seja que, em tempos como esses, em tempos como os que se preparam, a propriedade privada se torne algo instável, débil, frágil. Algo retorcido.
Li no Facebook: “Que clima feio foi criado. Você sai com máscara e luvas para comprar comida ou jornais e, preste atenção, todo mundo se olha suspeitando e, se alguém se aproximar demais, há uma atitude de pânico, quase de terror. Se sairmos desse vírus, também sairemos desse comportamento? Não sei. Vamos nos olhar torto para sempre?”
Franco Berardi, também conhecido como “Bifo”, fundador da famosa Radio Alice em Bolonha e importante figura no movimento Autonomia Italiana, é escritor, teórico de mídia e ativista social.