Pandemia Crítica 044 - Agora somos todos indíos

Page 1

agora somos todos Índios Bruce Albert

Tradução Oiara Bonilla


Dia 9 de abril, a Covid-19 fez sua primeira vítima fatal entre os Yanomami. Trata-se de um adolescente de 15 anos, originário de uma comunidade da bacia do rio Uraricoera (RR), massivamente invadida por garimpeiros. Apresentando sintomas respiratórios característicos, o jovem, desnutrido e anêmico em razão de crises sucessivas de malária foi, ao longo de 21 dias de sofrimento, encaminhado em vão de uma instituição sanitária a outra, sem nunca ser submetido a um teste de Covid-19. O teste só foi realizado no dia 3 de abril, após nova hospitalização, quando já estava em estado crítico sendo necessário interná-lo na UTI. Faleceu em 9 de abril, vítima da incúria dos serviços de saúde locais, tornando-se possivelmente um « super-transmissor » da doença, já que passou três semanas circulando entre os membros de sua comunidade, seus amigos e diversos agentes de saúde. Paira, assim, sobre os Yanomami, a ameaça iminente de um novo desastre sanitário. Esse povo já sofreu várias epidemias letais de doenças virais a cada nova entrada dos Brancos em suas terras: com a Comissão de Limites nos anos 1940, com o Serviço de Proteção aos Índios nos anos 1950, com os missionários evangélicos nos anos 1960 e, nos anos 1970, com a abertura da estrada Perimetral Norte. A partir dos anos 1980 e, regularmente desde então, seu território vem sendo invadido por hordas de garimpeiros – hoje cerca de 25.000 – que, muito provavelmente, estão na origem desse primeiro caso letal de Covid-19, além de propagarem gripes, malária, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis.


O caso do jovem Yanomami constitui, portanto, um símbolo trágico da extrema vulnerabilidade na qual se encontram hoje os povos indígenas frente à alta virulência desta nova doença. Já maciçamente contaminados pelos Brancos que arrancam freneticamente de suas terras minérios, madeira ou animais selvagens, sem acesso a uma assistência sanitária digna deste nome, os Yanomami estão novamente abandonados a sua própria sorte e condenados à dizimação na indiferença quase total. Mas, com essa pandemia, algo subitamente mudou. De repente, nós, Brancos, estamos tão desamparados frente à Covid-19 quanto os Yanomami frente às epidemias letais e enigmáticas (xawara a wai) que nosso mundo lhes inflige ha décadas. Pouco sabemos dessa doença; não temos imunidade, remédios ou vacina para enfrentá-la. Só resta nos confinar com nossas famílias, na esperança de sair ilesos, com a mesma ansiedade e impotência que os Yanomami sentiam quando se isolavam, em pequenos grupos na floresta, para tentar escapar de Xawarari, o espírito canibal da epidemia. Essa catástrofe sanitária agora comum, causada pela emergência de um novo vírus favorecida pelo desmatamento e pela mercantilização dos animais selvagens, deve hoje, mais do que nunca, nos induzir a repensar o rumo de nosso mundo. Ao destruir cegamente as florestas tropicais, sua biodiversidade e os povos indígenas que as habitam com sabedoria, o « Povo da Mercadoria » (como nos rotulou Davi Kopenawa), acaba virando contra si mesmo as consequências de sua predação desenfreada, tornando-se, assim, a vítima final de sua própria hybris. Essa é a mensagem que os xamãs Yanomami tentam nos transmitir há décadas.1 1 Davi Kopenawa & Bruce Albert. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Cia das Letras, 2015.


De fato, torna-se cada dia mais claro que o destino trágico que reservamos aos Yanomami - a todos os povos indígenas - terá sido apenas uma prefiguração do que estamos hoje nos infligindo a nós mesmos, desta vez, em escala planetária. Como Lévi-Strauss o anunciou profeticamente enquanto denunciava « o regime de envenenamento interno » no qual estamos nos afogando : « (…) doravante todos Índios, estamos fazendo de nós mesmos o que fizemos deles ».2 Bruce Albert é antropólogo, trabalha com os Yanomami desde 1975.

2 Ver Salvatore d’Onofrio, Lévi-Strauss face à la catastrophe.

Paris: Éditions Mimésis, 2018.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.