Pandemia Crítica 046 - Corpo isolado, revolta e poesia

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corpo isolado, revolta e poesia Salvador Schavelzon


Em perigo, a holotúria se divide em duas: com uma metade se entrega à voracidade do mundo, com a outra foge. Desintegra-se violentamente em ruína e salvação, em multa e prêmio, no que foi e no que será. No meio do corpo da holotúria se abre um abismo com duas margens subitamente estranhas. Em uma margem a morte, na outra a vida. Aqui o desespero, lá o alento. Se existe uma balança, os pratos não oscilam. Se existe justiça, é esta. Morrer só o necessário, sem exceder a medida. Regenerar quanto for preciso da parte que restou. Também nós, é verdade, sabemos nos dividir. Mas somente em corpo e sussurro interrompido. Em corpo e poesia. De um lado a garganta, do outro o riso, leve, logo sufocado. Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar, três palavrinhas apenas como três penas em voo. O abismo não nos divide. O abismo nos circunda. AUTONOMIA, poema de Wislawa Szymborska, 1972 In memoriam Halina Poświatowska

O poema acima chegou até mim via whatsapp como corrente iniciada por amigos que organizaram a leitura diária de poemas para levar a quarentena melhor. Ele me tocou porque dialoga com a fratura que vejo hoje percorrer nosso mundo. Vivemos um momento em que o corte das rotinas anteriores abre um estado de interrogação, onde somos convocados a pensar no fim de muitas coisas, com dificuldades extraordinárias e não previstas que nos junta e nos divide, nos aproxima numa causa comum, mas nos separa na forma em que cada um consegue exercitar uma boa distância.


Com o confinamento, fica em evidência a artificialidade do arranjo em que vivemos quando toda função, atividade ou serviço é redefinido ou continuado só após nova e sucessiva confirmação. O pacto social se explicita e, mesmo que aparentemente estejamos impossibilitados de discutir seus termos, ele parece estar sendo modificado para ser assinado novamente. Temos o Leviatã do outro lado da mesa exigindo novos condicionamentos, antes de restabelecer a segurança e a dinâmica da ordem social. Será que podemos nos manter sem assinar? O poema é dedicado à memória da poeta polonesa Halina Poświatowska, que morreu com 32 anos em decorrência de cardiopatia e problemas respiratórios adquiridos quando criança, durante a ocupação nazista da Polônia. Impossível separar funcionamento biológico da vida político social. Esse texto busca pensar nessa interseção, na encruzilhada em que nos encontramos. A holotúria, também chamada de pepino do mar, é um equinodermo tentacular utilizado no Oriente como iguaria gastronômica e também na medicina tradicional, inclusive contra a malária e a artrite, da mesma forma que a hidroxicloroquina... Segundo uma pesquisa rápida da Internet, vemos que este ser do fundo do mar tem capacidade de se auto desmembrar em caso de perigo, depois se regenerando a partir do corpo restante. Em caso de ameaça, a holotúria expele partes do abdome, genitais, intestino e pulmão através do ânus ou de fendas da pele, como modo de amputação que distrai os inimigos. Na poesia de Szymborska, a expressão latina “non omnis moriar”, provinda de um verso de Horácio, se traduz por “não morrerei completamente”.


Qual é a fissura que, como no corpo da holotúria, separa hoje a vida da morte, o perigo da possibilidade de sobreviver? Pensando no nível do funcionamento da vida social, a poesia permite entender o desafio da necessidade de revolta que se impõe para além ou junto com a urgência da preservação física. Significa manter em pé a necessidade de luta que a nova situação não posterga, nem suspende na sua urgência. Na pandemia, renunciamos, de forma voluntária ou proposta pelo Estado, a muito do que nos era familiar. Não nos aproximamos uns aos outros como antes e paramos de circular territorialmente fora dos lugares onde dormimos. O inédito das medidas alcança também a interrupção da produção, a venda e a distribuição de variadas mercadorias. Mesmo que momentaneamente notavelmente se interrompe aquilo que não era suposto de poder parar. O planeta volta a se mostrar mais difícil de acabar do que o capitalismo e a espécie humana, ambos fragilizados simultaneamente. A nossa espécie se diferencia agora não pelas qualidades específicas da sua civilização (capacidade de linguagem e comunicação, de trabalho, de história) mas por uma nova fragilidade respiratória que exige interromper tudo. Forçada a sair momentaneamente da arrogante ideia do controle da natureza, reaparece nossa conexão com o restante do ambiente como algo inocultável. Nos encontramos num universo onde não estamos sós, e gotículas, vírus, remédios, morcegos e oxigênio produzido por florestas se conectam num único tecido. O capitalismo não se mostra desarticulado, mas inesperadamente mostra sua subordinação à vida, quase nunca em evidência.


Na pandemia, encontramos uma igualação de todas as pessoas imposta pela dependência de iguais condições pulmonares para poder respirar mas, como a holotúria frente ao perigo, ela também nos divide. Apesar dos discursos de união e um imaginado corpo social coeso que nos convoca como população, como País, como família, suspendendo a individualidade pela possibilidade de qualquer um de contagiar, na realidade muitos são obrigados a ter que continuar circulando. Quem deve garantir o fornecimento de bens essenciais e cuidado da saúde se vincula ainda à ideia recuperada de que somos um “social”, mas por uma lógica de sobrevivência outros devem circular com efeitos em direção contrária do novo consenso geral. Enquanto um rumo único revitaliza a ideia de welfare State a realidade - respiratória e económica - de muitos mostra a inevitável falência de qualquer Estado para lidar com o que nos desafia viralmente. A resistência que a holotúria nos propõe, ejetando parte dela para se preservar, pode ser lida com perversidade neoliberal ou evolucionista, de sobrevivência dos mais aptos, os mais fortes ou com mais recursos para superar a enfermidade conseguir uma vaga no hospital caso precise, frente ao descarte dos que não consigam, os perdedores na concorrência de todos com todos por não adoecer até que a curva de óbitos se estabilize. A biologia se encontra com a economia e a sociedade nas mãos do Estado, como administração de leitos, cidadãos, mortes e vírus no ar. Mas a holotúria inspira a poeta também de outra maneira.


Quando o poema de Szymborska se refere à autonomização defensiva da holotúria presente também entre nós, os humanos, o que o corpo emite e deixa ir, como sussurro sufocado, é o riso e o poema. O abismo não nos divide de forma simples, afastando a morte de nós: o perigo nos circunda. Entre nós, o que não morre parece não ser apenas nosso corpo, que se protege, mas também o que sai de dentro de nós. Pensando na pandemia, podemos encontrar por esse caminho um lugar que está além da proteção mais imediata do corpo e da saúde. A experiência de viver em quarentena nos permite imaginar pequenos atos que se encontram nesse lugar, todo dia, entre o heroísmo, a transgressão, para além do enquadramento. Para além do Leviatã e sua tentativa de administrar a natureza na busca de um antídoto que elimine o perigo e nos devolva os poderes de super homens dominantes do planeta, não encontramos apenas a irresponsabilidade de alguns capitalistas, a ignorância da verdade da ciência, a inconsciência ou cansaço que avança contra o social. Para além do cuidado do corpo, entregue para as autoridades sanitárias, existe também agora, quando tudo é reavaliado, a possibilidade de superação dessa ordem social onde o que hoje nos ataca foi engendrado. Sem questionar a organização do mundo que hoje é suspenso, encontramos a posição homicida de quem diz que o País não pode parar, mas também uma defesa hipócrita da quarentena que não leva em consideração a incapacidade de proteção frente ao vírus de quem é obrigado a sair, e não tem como adotar o confinamento. Não nos serve nenhuma dessas duas posições políticas que hoje organizam a discussão de gestão política estatal. O vírus se mantém no ar, mas só alguns o encontram. E dessa forma não discutimos como geramos coletivamente a obrigatoriedade dessa circulação de uma parte de nós que será sacrificada, como na defesa da holotúria.


Industriais e gestores do Estado assessorados por expertos medem se vai ter muito contágio, ou contam já com a previsão de ocorrência de infecções e mortes como parte do cálculo político ou empresarial. Comparam tabelas de contagem de infecção e morte em países, províncias, cidades, bairros, locais de trabalho. Milhões de corpos relacionados com o fornecimento e distribuição; com a sobrevivência e com a subordinação hierárquica no contexto do trabalho, já tiveram o botão de “continuar” acionado. Veem como até as pessoas mais próximas os tratam como apestados, sem o heroísmo reconhecido para os trabalhadores da saúde, que também devem se adequar a uma lógica de guerra sem os cuidados correspondentes. Pensando no corpo social único que se preserva para regenerar, a margem premiada no poema, a necessidade de defesa demarca um novo limiar civilizacional e de cidadania entre os que estão dentro e os que ficam de fora. Esses conceitos se aplicam porque envolvem sempre a definição de quem será excluído. Na quarentena, os de dentro são os que cuidam, os que podem cuidar de si e ser cuidados. Quem circula, tosse sem cuidado, ou promove a circulação não participará da civilização dos vencedores da pandemia. Junto com os dispensáveis pelo lucro ou a exclusão, a margem da vida delimita também um bom governo e outro que não contribui à curva achatar. Surpreende o tamanho da nova coalizão. E conhecendo os participantes, nos perguntamos até onde poderemos avançar juntos sem repensar a nossa vida no mundo. Ou será que nos exigem deixar qualquer diferença para depois? Assistiremos a regeneração de uma social-democracia cínica, que celebra a volta do Estado mas não vai se divorciar dos mercados e continuará apostando no mesmo modelo de produção.


O velho mito da comunidade nacional está hoje na ordem do dia, como um abraço com o cotovelo de empresários a busca de recursos públicos, trabalhadores obrigados a responder à pandemia a partir da margem de cuidado que lhes é permitida sem ser consultados, e um Estado especialmente dedicado a preservar a ordem. O novo pacto social, assim, estará mais perto das mensagens da nova etiqueta sanitária incorporada por marcas que não aplicam esses cuidados à circulação e trabalho que elas mesmas geram, ou pelas medidas de suspensão produto da necessidade de manter vivos a quem precisa voltar a trabalhar, antes que por uma mobilização social de força criativa. Se o Estado de modelo chinês, fascista ou progressista fracassa, e o capitalismo verde do Green New Deal não convence a ninguém, talvez encontremos um misto de formas velhas com um novo funcionamento pós pandemia que incorpora as transformações que já estavam encaminhadas e que, agora, se aceleram. Erguido da rapinha intercapitalista dos que se beneficiem das ruínas e da falência de um capitalismo “nacional”, um capitalismo menos controlável pelo Estado avança apostando fortemente nas novas condições de distribuição e venda, apoiadas na produção ubíqua e descentralizada que depende de uma precariedade da força de trabalho com custo zero e sem nenhum compromisso com a velha ideia do “social”. Por esse caminho, vemos uma cisão que redefine o capitalismo entre o assalariado e o precário, com ou sem renda, entre a fábrica e a plataforma de geolocalização, entre especulação financeira, serviços, informalidade e endividamento generalizado. O abismo nos circunda, e é outro o lugar onde devemos estar. Não há apenas um modo de enfrentar a pandemia, embora, como em tempos de guerra, existe apenas um único comando geral.


É no lugar das lutas onde é possível quebrar a hierarquia obrigatória do consenso e revisar as receitas e diagnósticos construídos com a força de estatísticas que opõem morte a vida mas não permitem perguntar qual vida. Contra a nova civilização que se mantém a mesma, ou como dilaceramento que sai de esta e toma outro rumo, nos perguntamos pelo espaço para uma insurgência que construa um mundo novo com outro ritmo e outra orientação principal. Como lutar, hoje, enquanto se impõem restrições ao encontro e as ferramentas de controle se aperfeiçoam. Como podemos questionar um modelo de desenvolvimento, de Estado e de ciência que, longe de melhorar os modos de existência e subsistência de milhões, se relaciona com as condições de possibilidade da pandemia, e com as dificuldades e despreparo para enfrentá-la em que nos encontramos. O perigo -mostra a holotúria- pode obrigar à invenção de algo novo. Um pouco de voracidade pelo mundo e um pouco de fuga, que nos permita voltar como fantasma que assombra qualquer novo pacto como escolha fatalista. Recusando que para preservar a vida seja necessário abrir mão do riso e da poesia, ou da revolta, a pandemia nos convoca a buscar caminhos para que uma mobilização semelhante e maior à atual se volte também para o questionamento da ordem social, com novas instituições a nascer, outro regime de relação com o mundo não humano, e que de forma independente possa ser também uma resposta à pandemia.


Se o capitalismo também mata, enfrentando os jovens que não podem ficar em quarentena com velhos sem UTIs suficientes, enquanto se eliminam as aposentadorias e os direitos laborais, é preciso manter no ar a possibilidade concreta, e não apenas imaginada, de reagir evitando trabalhar pelo restabelecimento daquilo mesmo que devemos desarticular. Se tudo que é viral se mantém no ar, não nos asfixiemos deixando a solução em mãos dos que apostam no caos do desespero, ou na ordem da repressão. Entre o ressentimento e a coragem, a resignação e a fuga, se abrem duas formas de agir, como duas metades. Uma vive o confinamento como fim do mundo, buscando desesperadamente repará-lo no sentido anterior. O outro é o desafio quase impossível, mas ao mesmo tempo imprescindível, de não transitar dentro de qualquer consenso se não for com autonomia, mantendo a luta no ar, contra todo novo pacto que nos imponham, para que todos possamos respirar. Salvador Schavelzon é antropólogo, docente e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo.


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