sete verbos para se conjugar o morar Por Carmen Silva*
Carmen Silva é baiana, mãe de 8 filhos, retirante que dormiu nas ruas da cidade de São Paulo no início dos anos 1990 e tornou-se líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro. O MSTC, que já tirou quase três mil pessoas de submoradias e dos baixos de viadutos, enxerga a falta de moradia para pobres como uma continuidade urbana do regime escravista.
1. Verbo ficar-em-casa Deixa eu explicar bem direitinho para todo mundo ouvir. O “fique em casa”, para mim, quando vindo dos governos, soa como uma hipocrisia. É muito fácil você dizer isso para uma população que tem casa, que tem um lugar para se abrigar. Mas há quanto anos que a gente grita que é necessário o Brasil garantir os direitos básicos, reais? Um deles é a moradia. É muito fácil mandar ficar em casa, mas quem não tem casa? Para mim isso soa como hipocrisia. 2. Verbo morar A Casa Verbo foi criada a partir de uma vontade de um grupo de pessoas, incluída eu, para podermos, juntas e juntos, ir além de um movimento por moradia. A moradia é o que importa, mas queremos enxergá-la além dela. A Casa Verbo surge da necessidade de realmente entender que morar não é apenas se cercar de paredes e ter um teto por cima. Mas é se cercar de direitos, de informações, de cidadania. Não basta partir de um assistencialismo. Não basta partir da ideia de que você precisa ter acesso às políticas públicas. A Casa Verbo surge como ideia de formar ativistas pela luta do direito à cidade. A Casa Verbo surge ainda com três eixos: a moradia como porta de entrada para outros direitos. Surge como ideia de formação política e de produzir informação para todas as pontas da cidade, como um desejo que todas as regiões se sintonizem e falem a mesma lingua, compartilhando e dividindo os mesmos problemas. O outro eixo é uma escola de jornalismo onde qualquer pessoa possa contribuir e produzir de fato a comunicação verdadeira. Porém, dentro da formação da Casa Verbo, o Covid 19 veio com tudo, numa intenção de urgência à qual me parece estamos podendo responder. É tanto que a Casa Verbo está agregando 60 núcleos de trabalhos que vão muito
além do assistencialismo, mas multiplicando também informação. São desde associações pequenas, de bairro, pequenas entidades criadas para receber doações até mesmo setores do governo, organizações não governamentais, grupos que estão por aí fazendo trabalhos sociais, de voluntariado, em varias pontas. A Casa Verbo está tendo a oportunidade de ligar todas essas pontas, neste momento, para distribuição de cestas básicas. 3. Verbo sustentar Eu vivo em casa e eu vivo na rua. Não dá para ficar dentro de casa. Eu fico em casa e eu fico na rua. Mas é preciso entender que quando eu estou na rua não estou negligenciando a postura do isolamento social. Mas é necessário atingir, chegar naqueles que são os menos ou os nada favorecidos. Aqui em São Paulo, nós temos muita população de rua vinda de todas as partes do Brasil e que revela o quão os governos são despreparados. Então é preciso a gente estar junto, é importante a gente estar ativo presencialmente em alguns locais na tentativa de conseguir fazer o mínimo, para que essas pessoas tenham alimentos, informações sobre os cuidados de higiene, além obviamente dos produtos de limpeza. Enfim, é preciso garantir a essa população o acesso mínimo ao que hoje está muito mais remoto do que já era. Estou indo para a rua então porque eu necessito agilizar as doações, direcionar estas doações para que cheguem até as pontas, agregar aos vários setores. Pois é necessário a gente fazer um ato grande de generosidade, de solidariedade. É necessário agilizar as compras e os sistemas de entrega, é necessário proteger as pessoas que estão indo diretamente fazer as entregas. E assim estamos vendo quanta gente ainda passa fome em São Paulo. Estamos distribuindo comidas nos viadutos, nos centros. Nós estamos com o
comércio fechado. As ruas estão desertas, a população de rua está deslocada, mais andarilha, tem muita gente, muitas mulheres, muitas crianças nas ruas. É necessário a gente ir levar comida para este povo. Eles estão mais andarilhos, se deslocando, justamente porque não têm mais onde ficar, onde comer; eles não contam mais com o apoio que contavam. A operação da Casa Verbo já atendeu mais de 6.5 mil famílias, cerca de 30 mil pessoas, enviando cestas básicas, verduras e legumes, ovos, kits de higiene e limpeza, máscaras de proteção, marmitas. A gente está conseguindo porque a Casa Verbo entrou com o pé e com o Movimento dos SemTeto do Centro (MSTC), coordenando também o Comitê Popular de Combate ao Covid-19. Estão trabalhando conosco a Fundação Tide Setúbal, Editora Bei, Arq Futuro, Itaú Social e a Prefeitura de São Paulo. A gente é o intermediário entre as pontas que eles não conseguem atingir. Ou seja, é verdade que a instituição financeira está nos dando aí algum apoio necessário para que a gente faça este trabalho. Fora os doadores individuais, ou seja, os pequenos doadores que, para nós, são tão necessários, pois cada 50 reais é tão importante quanto um milhão de reais. 4. Verbo ocupar Nossa primeira medida foi o isolamento, foi o de nos fechar. Descontinuamos momentaneamente as atividades públicas como os almoços de domingo e as assembléias. Por outro lado, a Ocupação 9 de Julho virou um pólo de vacinação em massa para todos os idosos da região do Centro. E estamos seguindo rigorosamente o que se recomenda. Mas é preciso pensar que aqueles que estão dentro das ocupações são os trabalhadores essenciais, ou seja, motoboys, cozinheiras, motoristas, caixas de supermercados. Mas estamos cumprindo com todas as regras e todos eles estão também recebendo as doações de cestas básicas. Agora entramos também
no Programa Cidade Solidária, um pacto entre Prefeitura de São Paulo, instituição financeira e movimentos, MSTC é um deles. A Ocupação 9 de Julho é um ponto crucial do Cidade Solidária, pois recebe as doações diretas, como por exemplo aquelas da Cruz Vermelha, que é a mediadora entre o poder publico e as pontas. 5. Verbo unir Dentro dessas duas e meia décadas do MSTC, a gente sempre foi parceiro da prefeitura, nunca estivemos à parte do Estado, muito pelo contrário, o Movimento sempre quis fazer parte do Estado. E agora, veja bem, depois de tudo aquilo de que eu fui acusada, e uma das acusações era que eu pedia para o povo ter titulo de eleitor e ir votar…. veja bem, aí hoje está o Brasil inteiro sofrendo porque tanta gente não tinha seu titulo de eleitor e então seu CPF está cancelado .a renda cidadã ninguém pode receber porque simplesmente não tem CPF. Então quando a Prefeitura de São Paulo nos chama para um pacto em um momento desses, ela entende que um movimento popular é que é o intermediário entre ela e as margens da cidade. A gente vê também o investidor financeiro acreditar que um movimento popular é capaz de levar o que eles querem até as pontas, as bases, as pessoas que realmente precisam. Mas aí tem gente falando assim: ah, mas os investidores, as grandes riquezas têm que ser repassadas. Eu acho que estou intuindo algo que é o seguinte: talvez os grandes investidores nunca tenham confiado realmente nos governos. Então foi necessário, através dos movimentos que eles julgam como corretos, que eles recorressem até nós para dar esta sustentabilidade que alcance as margens. É assistencialismo? É, óbvio. Mas é algo que a gente pode fazer agora para manter as famílias vivas neste momento tão crucial. E mais uma vez nós estamos provando ao poder publico que ele é ineficiente. E então vem
mais um receio: esta criminalização dos movimentos sociais pelo poder publico era na verdade o medo de nós provarmos que eles não têm experiência alguma em aplicar os recursos e as políticas de interesse público de verdade. Mas o momento pede também uma imensa cautela. Nós temos que pegar este momento de assistencialismo e transformar doações em informação e formação. Porque são três meses, isso é provisório, e vai acabar. E não podemos cair no erro que foram os 13 anos que a gente se apoderou e se esqueceu da formação política. Comunicação e formação é o que virá. Tem gente nova que está chegando, e a ideia é pegar os lideres desses núcleos e oferecer uma formação cidadã, tornando-o um agente multiplicador. 6. Verbo deambular A população de rua está se locomovendo. Os pontos que eles tinham fixos, os locais para pedir, ter comida, acesso a trocar de roupa, às vezes um prato, um banho, então esses locais estão fechados. A população de rua tende a circular mesmo. É óbvio que isso é uma falta do poder público de aplicar uma política de cuidado com essas pessoas. Agora seria a hora de reativar os hotéis sociais, com gestão técnica de saúde e de atendimento social. Se há falta de planejamento do poder público, então eles vão circular mesmo, eles vão andar. Primeiro temos que reconsiderar o direito de ir e vir da população de rua. Aquelas pessoas ali elas estão perdidas. Elas se sentem invisíveis. E são os atos de solidariedade, do aumento das pessoas distribuindo comida, que às vezes tornam essas pessoas um pouco mais dentro de uma sociedade. E ao mesmo tempo eles se juntam, e se sentem como família. Acima de tudo, não podemos julgar nem negligenciar o direito que eles têm de ir e vir, já que não lhes foram dados o direito de moradia,
ou ainda de alimentação, um lugar de abrigo. Na época em que eu estava moradora em situação de rua, eu tinha dentro de mim algo que me dizia que eu não iria ficar naquela condição nunca mais, eu iria ficar ali somente até eu me estabilizar. Essas pessoas que estão como andarilhas geralmente não são famílias novas, não são pessoas novas, são pessoas que estão na condição de andarilhas por muitos anos. Temos que respeitar o estado de espírito deles. 7. Verbo delirar Agora acontece que eles estão em êxtase por estarem sentindo falta do fluxo da cidade. A cidade está vazia. Para eles que estavam circulando no meio de muitos, apesar da invisibilidade, estavam em alguns ambientes, não é? Então o primeiro delírio é sentir que estão totalmente sozinhos. Essa solidão deles é a da falta, da falta daquilo que conseguiam. Agora o delírio vem de mais uma confirmação: de que realmente eles estão à margem da margem. Manda-se eles para casa e…eles não têm casa. Manda-se eles lavarem as mãos mas não existem torneiras, e a prefeitura fez alguns pontos de água que já estão quebrados. É um delírio que eles sentem a solidão real de serem seres invisíveis. É a solidão real. A cidade está vazia, eles eram os invisíveis que circulavam no meio da multidão. Antes eles gritavam para aquela multidão que não os enxergavam nem os escutavam. Agora eles gritam para eles mesmos, e a cidade que está silenciosa, talvez esteja enfim ouvindo as suas verdades, pois as frases que eles gritam têm um pé fincado na realidade. É fuga, é vergonha, é medo. O delírio passa por tudo isso. Para mim, todo o dia de madrugada eu pego coronavírus. Nós não temos nada que nos acalente. Pelo contrario, nós temos um poder público que não faz outra coisa a não ser nos apavorar. Quando eu chego em casa, eu carrego todo o amendrontamento
do mundo, todo o delírio de todo mundo, que é a fome, que meu marido está desempregado, que eu vou morrer, que meu filho está com fome. E quando eu chego em casa, e consigo tomar um banho e vou dormir, mas antes eu penso que vou amanhecer morta com o vírus do corona. Então imagina essas pessoas que nunca chegam em casa? * Carmen Silva Em conversa com Ana Catarina Mousinho, Edouard Fraipont, Joana Amador, Mariana Lacerda e Peter Pál Pelbart.