Pandemia Crítica 050 - Os morcegos e os pangolins se rebelam

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Os morcegos e os pangolins se rebelam Entrevista com Frédéric Keck Tradução Flavio Taam Revisão Pedro Taam


Em uma nova obra, a ser lançada quando o coronavírus o permitir, o antropólogo Frédéric Keck explora como a natureza se vinga dos humanos por meio dos vírus, que tornam obsoletas nossas técnicas de prevenção contra doenças e epidemias e provocam o caos na geopolítica mundial.

Entrevista No contexto das pandemias, você identifica três atitudes: prevenção, preparação e precaução. Qual é a diferença entre elas? Frédéric Keck: A prevenção lida com uma epidemia à maneira de uma guerra de trincheiras. Esperamos o inimigo do lado de cá da fronteira e, quando o avistamos, disparamos as armas. É como Pasteur contra os micróbios. A preparação considera que o inimigo é inteligente, que ele já está entre nós, invisível, e pode disparar a qualquer momento. A ideia é identificar os sinais o mais rápido possível, pois o efeito da explosão se mede menos com o número inicial de mortos que com o pânico provocado na opinião pública. É exatamente a situação na qual nos encontramos hoje. Quanto ao princípio da precaução, ele é menos fundamentado epistemologicamente. Meus colegas americanos observam com ceticismo nossas discussões, na Europa, sobre esse princípio, surgido na Alemanha na década de 1970 no contexto da energia nuclear e transposto dez anos mais tarde, na França, para a segurança alimentar, principalmente no caso da doença da vaca louca. De acordo com esse princípio, seria necessário guiar as ações tomadas pela taxa de risco mais elevada. É o que fazem hoje as autoridades


francesas ao impor o confinamento a todos, invocando modelos que preveem 500.000 mortes. Mas esse modo de pensar o risco está sempre sujeito a críticas, pois somos sempre acusados de agir ou muito pouco, ou em demasia. Na verdade, só há duas técnicas para prevenir riscos. A primeira é partir do parâmetro de um determinado território e população, com períodos de quarentena e vacinas, possibilitando o gerenciamento de epidemias como a tuberculose, a raiva ou a varíola: esse procedimento é a prevenção. Ou então você parte de um nível global, e não de um território ou Estado, emitindo alertas que se aproximam ao máximo do sinal de emergência de uma pandemia. É o que se faz há trinta anos com o ebola, as pandemias de gripe ou os coronavírus do tipo SARS. Como e por que, no começo dos anos 1970, a estratégia da OMS gerou uma mudança de paradigma, passando da prevenção para a preparação? FK: Porque a erradicação da varíola marcou o sucesso mundial das estratégias de prevenção: vacinamos a população, ensinamos os pequenos gestos necessários para se proteger e declaramos o fim da doença. Mas a varíola é uma das únicas doenças infecciosas que não são transmitidas dos animais aos humanos. Quando surgiram os vírus da aids e o ebola – vírus transmitidos de macacos para humanos na África –, a gripe h5n5 ou o sars – oriundo de pássaros ou morcegos na Ásia –, foi preciso recomeçar tudo outra vez. As técnicas de prevenção não funcionam para essas doenças emergentes. Nesses casos, os métodos de preparação são mais bem adequados: imaginamos a catástrofe, agimos como se ela já estivesse instaurada e enviamos


sinais de alerta, projetamos cenários e estocamos máscaras, vacinas e antivirais. Mas, no momento dessa passagem da prevenção à preparação, as coisas ficaram confusas na Europa por focarmos os debates sobre o princípio de precaução, quando seria necessário diferenciar duas técnicas de gestão de riscos que não têm nada em comum, que são heterogêneas, uma vez que concebem diferentemente os modos e os agentes de decisão, o local onde elas se aplicam, as relações entre os humanos e os não-humanos. Quando Emmanuel Macron afirma em seu discurso transmitido pela televisão que “estamos em guerra”, isso lhe parece uma maneira errada, ou pelo menos deficiente, de abordar o problema com o qual nos confrontamos hoje? FK: Dizer que estamos em guerra contra um vírus é uma boa maneira de mobilizar uma população, de tornar a ameaça real. É um meio de comunicação enfático, mas razoável, na medida em que é necessário fazer com que as pessoas aceitem se isolar em suas casas, passando da angústia difusa em relação a algo que está acontecendo na China para o medo de algo concreto. Emmanuel Macron não falou em “guerra contra o vírus”, como fez o Ministério da Saúde [francês] em 2009, quando nos enviaram uma carta convocando-nos a nos vacinar contra o h1n1, com uma organização bastante militar, com todos enfileirados em ginásios utilizados pelas prefeituras. Não se trata propriamente de “guerra” contra o novo coronavírus, já que ele só é movido pela autorreplicação. Mas é preciso encontrar um equilíbrio entre a guerra e o pacifismo. Se deixarmos a imunidade de massa ou de rebanho se estabelecer, como era a estratégia inicial de Boris Johnson, no Reino Unido, certamente


conseguiremos viver com o vírus, mas até lá haverá centenas de milhares de mortes. Se compararmos o discurso de guerra de Macron e o de Xi Jinping, podemos chegar à hipótese de que um presidente francês sempre traz mensagens simples e moralizantes, ao passo que um presidente chinês traz sempre mensagens propositalmente ambíguas, que podem ser entendidas de diversas maneiras. Mesmo quando fala em sacrifício, Xi Jinping não o concebe no sentido do sacrifício judaico-cristão, que atualiza uma transcendência na imanência: é um sacrifício de uma parcela do povo chinês a fim de ganhar a guerra secular contra o Ocidente. Você escreve que “os vírus não são entidades que intencionalmente visam matar humanos, mas o signo de um desequilíbrio entre as espécies de um ecossistema”. O coronavírus é o símbolo do desastre ecológico atual ou essa é uma maneira metafórica demais de enxergar as coisas? FK: Toda a questão da antropologia nos últimos quarenta anos foi passar do regime simbólico ao semiótico. Os antropólogos foram responsáveis por muito tempo por formular as leis inconscientes que regem o mundo social. A tarefa da semiótica é compreender como os signos funcionam pragmaticamente, como os humanos negociam suas relações com os não-humanos pela troca de signos. É o sentido da passagem da função simbólica analisada por Claude Lévi-Strauss às ontologias descritas por Philippe Descola ou a “antropologia além do humano” proposta por Eduardo Kohn. O coronavírus é, assim, um signo do que se passa entre a China, os Estados Unidos e a Europa, e não o símbolo da catástrofe ecológica em curso. Passar do símbolo ao signo pressupõe levar em conta a vida dos signos, que são mais dinâmicos que os símbolos, sempre estáticos. Hoje, os signos se aceleram. Todos


os cenários catastróficos que tínhamos imaginado para pensar o colapso estão se realizando sob nossos olhos, com a aviação parada, o sistema financeiro em colapso, o fim da poluição na China... Que cheguemos ao ponto de confinar as populações humanas de parar toda a economia para se proteger de um vírus respiratório diz muito do capitalismo tardio contemporâneo. Não estamos mais na mesma situação em que estávamos nos anos 1990, quando um capitalismo ainda bastante confiante pensava que as doenças dos animais podiam ser tratadas como defeitos de mercadorias das quais podíamos nos desfazer, como foi o caso dos abates em massa de gado e de aves durante as crises de vaca louca ou gripe aviária. Hoje, os morcegos e os pangolins se rebelam, e somos nós que corremos o risco de ir para o abate. Mas isso não quer dizer nada, simbolicamente, sobre uma conexão intangível entre a epidemia e a política. Na verdade, nos possibilita diagnosticar dinâmicas do capitalismo que são sinalizadas por doenças infecciosas que não são nunca as mesmas. No caso das zoonoses, ou seja, da transmissão de um patógeno entre espécies diferentes, podemos distinguir três tipos de reação: o abate em massa dos animais potencialmente infectados, o uso de vacinas para reforçar a imunidade e o acompanhamento das mutações dos patógenos por meio de coletas de amostras. Essas técnicas implicam concepções diferentes dos coletivos que ligam os humanos aos não-humanos, que diferencio com os termos de prevenção, precaução e preparação: o que chamo em meu livro de os três “P”. Você começa a introdução de seu livro com a seguinte frase: “A questão, segundo as autoridades globais de saúde, não é saber quando e onde a pandemia começará, mas se estamos prontos para enfrentar suas consequências catastróficas.” No fim do livro, você tem a resposta?


FK: Não, mas delineei a maneira com que a questão é colocada na China e nas fronteiras da China. Meus colegas americanos estudaram, nos Estados Unidos, as técnicas de preparação para catástrofes, desde o medo de um acidente nuclear nos anos 1950-1960 até o que chamamos, desde o fim da Guerra Fria, de ameaça genérica, marcada principalmente pelo terrorismo e as pandemias. O que mais me interessou foi a maneira com que essas técnicas de preparação, em cuja formulação e prescrição os Estados Unidos tiveram um papel pioneiro, principalmente na crise da sars, acabaram sendo apropriadas pela China ao ponto de esta poder, desde então, voltar essas mesmas técnicas contra os próprios Estados Unidos, a grande potência cuja hegemonia é contestada por Beijing. A preparação, seja para um acidente nuclear, seja para catástrofes naturais, implica três técnicas principais: sentinelas, simulações e armazenamento. Wuhan, por exemplo, é uma sentinela, porque está equipada com um laboratório P4, construído em parceria francesa desde 2003 e inaugurado em 2017, e que possibilita identificar precocemente novas pandemias com possibilidade de contágio de animais para humanos. Assim, Wuhan desempenha, para a sars, o papel que teve Hong Kong para a gripe aviária. Desde a sars a China faz simulações, preparando seu pessoal hospitalar para a gestão de doenças respiratórias agudas como aquelas causadas pelos coronavírus. Singapura, que foi bastante afetada pelo medo da sars, investiu muito nessas simulações. Quanto ao armazenamento de máscaras, vimos que os chineses as tinham em quantidade muito superior a os países ocidentais, a ponto de poder oferecê-las para outros países, inclusive aos Estados Unidos. Dessa maneira, a China tem meios mais eficientes de se preparar para as epidemias que os americanos ou os europeus. Taiwan é igualmente avançado no quesito de armazenamento de antivirais, e utiliza, neste


momento, um protocolo sanitário semelhante ao de Beijing. A ideia que estrutura meu livro é a de que todas e todos nós nos encontramos, na realidade, nas fronteiras da China, que é o novo centro da globalização, e onde as condições de vida produzem novas patologias. No entanto, há territórios, onde conduzi essa pesquisa, que já se encontram há mais tempo nas fronteiras da china: Hong Kong, Singapura, Taiwan. Esses territórios desenvolveram estratégias sanitárias entre a tradição chinesa e a tradição ocidental. Se eles nos interessam, hoje, é sobretudo porque são capazes de conter a epidemia, mas com medidas mais compatíveis com nossa tradição liberal do que aquelas impostas pela China à sua população. O que as pandemias revelam sobre as novas configurações geopolíticas? FK: Pode-se ter a impressão de que a preparação para as pandemias implica sobretudo as relações entre Estados Unidos, a Europa e a Ásia. No entanto, o caso da gripe aviária se passou muito mais entre a Indonésia, que foi a porta de entrada, a China, que foi o epicentro, e a Austrália, que antecipou a epidemia, sem que tenha havido grande envolvimento por parte da Europa ou dos Estados Unidos. Frente a essa epidemia de coronavírus, os africanos nos ensinam sobre a mobilização contra um vírus que ainda não chegou a seu território, cortando as ligações com a Europa e adotando contra ela medidas relativas à imigração que há trinta anos eram empregadas por países europeus com relação aos africanos. As relações Norte/ Sul se recompõem sob o efeito das pandemias: não são mais apenas relações de dominação, estamos realmente num mundo de relações pós-coloniais.


Enquanto as técnicas de prevenção foram sempre guiadas pelo Ocidente, que estabelecia o parâmetro para o resto do mundo, em nome da ciência e de sua habilidade em gerenciar as populações, as técnicas de preparação são muito mais plásticas: o dominado pode voltá-las contra o dominante. Você escreve também que é necessário “se preparar para as pandemias para limitar não somente o número de vítimas humanas, mas também seus efeitos econômicos, políticos e morais”. Essas preparações são as mesmas no Ocidente e na Ásia? FK: Nos preparamos para as pandemias em função de nossas tradições culturais, ou, nas palavras do antropólogo Philippe Descola, de nossas ontologias, ou seja, de nossas relações estabelecidas entre humanos e não-humanos. Os Estados Unidos, obcecados pelo inimigo soviético e pelo terrorismo, se concentraram no inimigo bacteriológico e no bioterrorismo. Os europeus, por sua vez, focaram na segurança alimentar, sobretudo com o princípio de precaução. Os chineses não têm nem essas obsessões, nem a cisão que há dois séculos se estabeleceu no Ocidente entre humanos e animais. Assim, eles podem pensar com muito mais facilidade que os animais enviam sinais de desequilíbrios ecológicos, e que é necessário captar rapidamente esses sinais para antecipar as catástrofes. Fiquei surpreso de ver meus interlocutores sobre esse assunto se apropriarem tão facilmente da expressão “vingança da natureza” para explicar as doenças emergentes, transmitidas dos animais para os humanos. Nós nos preparamos de maneiras diferentes para uma pandemia de acordo com as relações que travamos historicamente com a natureza. Em meu livro, resumo esta ideia por meio da distinção entre uma relação pastoral com a natureza, como


em Michel Foucault, quando há um pastor, superior a seu rebanho, pronto a sacrificar uma parte para salvar o todo, e uma relação de caça, na qual os caçadores-coletores negociam com os animais e as plantas que devem matar para comer. As técnicas de caça e as técnicas pastorais constituem duas maneiras diferentes de controlar as incertezas entre as relações entre animais e humanos. Em sua pesquisa, como você abordou simultaneamente sentinelas, simulações e armazenamento, bases das técnicas de preparação para pandemias? FK: Estudei as técnicas sentinelas sobretudo em campo, em Hong Kong. Desde a reincorporação da colônia britânica à China em 1997, Hong Kong se definia como um território sentinela, alertando o resto do mundo sobre as doenças que surgem no sul da China. É lá que, nas fazendas ou nos mercados, encontramos “aves sentinelas” não vacinadas que permitem detectar tipos de gripe que poderiam ser transmitidas aos humanos. Em seguida, relacionei essas técnicas com os estudos imunológicos que mostram que certas células de nosso organismo desempenham o papel de sentinela, captando a informação viral em primeira linha. Esses estudos mostram que, enquanto as células são atraídas ou contornadas pelo vírus, o organismo não morre do vírus propriamente dito, mas de sua reação de pânico. As simulações são cenários do pior caso. São mais uma origem ritual, porque são práticas codificadas e repetitivas, e por isso são menos interessantes e diversas para a antropologia que as sentinelas, que comparo, nesse sentido, aos mitos. Essas simulações de catástrofes, sobretudo de pandemias, consistem em cenários encenados com atores, e sua principal função é a de preparar as equipes hospitalares para não entrarem em pânico em uma situação como a de hoje, por exemplo.


No caso do armazenamento, tive acesso a menos dados e cenários etnográficos, pois estes envolvem segredos de Estado – armazenamento de vacinas, máscaras, antivirais. Colaborei em congressos de indústrias farmacêuticas, o que permite entender que o armazenamento de vacinas ou antivirais produz valor econômico ­ – isso em um mundo em que valores de cooperação e de transparência são, ainda, essenciais. O armazenamento envolve técnicas de gestão de populações que produzem cenários de ilegalidade, como podemos constatar pelas situações de urgência que vivemos hoje, com triagens de pacientes e a questão de saber se médicos ou políticos devem ter prioridade no acesso à vacina. Em suma, meu trabalho consiste em fazer a genealogia da preparação para as pandemias e mostrar as diferenças entre as técnicas utilizadas. Se, por um lado, a noção de sentinela pode apresentar a oportunidade de uma relação mais equitativa entre humanos e não humanos, uma vez que os animais nos enviam sinais em relações reversíveis (o predador pode ser morto por sua presa), por outro, o armazenamento cria desigualdades entre humanos, e também entre humanos e não-humanos, uma vez que o pastor é sempre superior a seu rebanho. Para mim, é assim que as questões de dominação e domesticação estão ligadas. Em quê? FK: O interesse pelas sentinelas nos leva obrigatoriamente a nos questionarmos sobre a domesticação. Com isso, tento aprofundar a ideia do geógrafo Jared Diamond, que se interessou pelos efeitos da dominação/domesticação de certos animais pelos humanos. Os animais nos dão bens: alimento, couro, força de trabalho... Mas, se os maltratamos, eles também nos dão


vírus e bactérias. As doenças infecciosas emergentes revelam as desigualdades do contrato de domesticação e são o sinal de que a natureza se vinga. Minha ideia das sentinelas visa o reestabelecimento de melhores condições de domesticação, uma vez que os humanos trocam sinais de alerta com os animais não-humanos sobre doenças que nos infectam em comum. Para evitar a multiplicação de pandemias devastadoras no futuro, é preciso separar mais uma vez os humanos e os animais? FK: Não, não é preciso separá-los novamente, mas forjar um novo pacto. Não penso que esse novo pacto possa se apoiar no reconhecimento dos direitos dos animais. Tenho críticas à corrente animalista iniciada por Peter Singer, que é apenas uma extensão aos animais de nossa concepção ocidental de direito. Acredito, sim, na ideia de refundar esse pacto sobre a troca de sinais de alerta entre humanos e não-humanos. Que diferença você estabelece entre as “sentinelas” e os “denunciantes”? FK: No que diz respeito à sars, Hong Kong desempenhou o papel de sentinela e de denunciante. Agora, a diferença foi mais clara. Wuhan foi uma sentinela, ao detectar sinais de alerta precoces de formação do coronavírus e de sua transmissão para o homem. Mas os denunciadores foram bloqueados pelas autoridades locais, segundo afirma o presidente chinês Xi Jinping, que endossa a narrativa de que o Estado chinês agiu segundo deveria e que as falhas ocorridas foram locais. A questão, entretanto, é saber se Li Wenliang, o oftalmologista que foi um dos primeiros a se dar


conta da situação e a denunciá-la, antes de morrer ele mesmo de covid-19, será canonizado como um novo herói maoísta ou se será algum tipo de Edward Snowden chinês, ostracizado por ter tido razão antes de todos os outros. Hoje na China há uma tensão e uma reflexão sobre o fato de dar status aos denunciadores, o que é completamente novo. Para combater melhor a epidemia é preciso adotar o ponto de vista dos vírus? Isso é possível? FK: Essa é precisamente toda a questão. Não posso dar uma resposta firme. Enquanto antropólogo, isso não é possível, pois não manipulo vírus. Mas pude constatar que os virologistas o sabem, e se divertem em certos congressos ao explicar como eles fariam, enquanto vírus, para infectar uma cidade ou um território. Em meu trabalho, vejo como as relações entre humanos e não-humanos são transformadas pelos vírus. Para isso, me baseio nos discursos e nas práticas dos virologistas, mas também no que dizem os ornitólogos, que conversam muito mais com os antropólogos. Assim, mesmo que eu intelectualmente consiga entender o que pode significar “adotar a perspectiva de um vírus”, eu tenho muito mais facilidade em adotar o ponto de vista de um pássaro. No fim de fevereiro, você escreveu um posfácio para sua obra sobre as “sentinelas das pandemias”, levando em consideração o coronavírus, que se espalha hoje na França e no mundo. Se você tivesse que escrever um posfácio para esse posfácio, três semanas mais tarde, o que você adicionaria? FK: A questão essencial é, agora, saber como pensar em uma solidariedade internacional entre humanos e entre humanos e não-humanos. Mas, na


verdade, cada Estado está se escondendo atrás de suas fronteiras e afirmando que o vizinho não está fazendo o suficiente. Essa lógica de escalada nas medidas de confinamento é insuportável. O confinamento deve ser visto apenas como uma etapa inicial para que, então, se possa discutir como reorganizar profundamente os coletivos de humanos e não-humanos. O título do texto acima é uma citação extraída de Joseph Confavreux. Frédéric Keck é diretor de pesquisa no cnrs e responsável pelo Laboratório de Antropologia Social, também ligado ao Collège de France e à ehess. Sua pesquisa desenvolve-se atualmente em Hong Kong, Singapura e Taiwan. Seu livro no prelo intitula-se Les Sentinelles des pandémies – Chasseurs de virus et observateurs d’oiseaux aux frontières de la Chine [As sentinelas das pandemias: Caçadores de vírus e observadores de pássaros nas fronteiras da China].


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