Pandemia Crítica 051 - Para além do colapso: três meditações sobre um possível depois

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para além do colapso: três medita¢ões sobre um possível depois Franco Bifo Berardi Tradução Ana Luiza Braga


De repente, o que temos pensado nos últimos cinquenta anos deverá ser repensado do zero. Graças a deus (será deus um vírus?), agora temos uma abundância de tempo extra, pois o velho negócio está fora de negócio. Direi algo a respeito de três assuntos distintos. Um: o fim da história humana, que está claramente se desenrolando diante de nossos olhos. Dois: a atual emancipação do capitalismo e/ou o iminente perigo do tecno-totalitarismo. Três: o retorno da morte (por fim) à cena do discurso filosófico, após a sua longa negação moderna; e a revitalização do corpo como dissipação. 1. Bichos Número um: a filósofa que melhor antecipou o atual apocalipse viral foi Donna Haraway. Em “Staying with the Trouble”, ela sugere que o agente da evolução não é mais o Homem, sujeito da História. O humano está perdendo a sua centralidade neste processo caótico e nós não devemos nos desesperar por isto, como fazem os nostálgicos do humanismo moderno. Ao mesmo tempo, não devemos buscar conforto nas ilusões de um reparo técnico, como fazem os tecnomaníacos transumanistas contemporâneos. A história humana acabou, e os novos agentes da história são os “bichos”, na linguagem de Haraway. A palavra “bicho” se refere a criaturas pequenas, criaturas pequenas e brincalhonas que fazem coisas estranhas, como provocar mutações. Bem: o vírus. Burroughs fala sobre os vírus como agentes de mutação: biológica, cultural e linguística. Os bichos não existem como indivíduos. Eles se espalham coletivamente, como parte de um processo de proliferação. O ano de 2020 deve ser visto como o ano em que a história humana se dissolveu - não porque os seres


humanos desapareceram do planeta Terra, mas porque o planeta Terra, cansado da arrogância humana, lançou uma micro-campanha para destruir seu Will zur Macht. A Terra está se rebelando contra o mundo, e seus agentes são as inundações, os incêndios e, sobretudo, os bichos. O agente da evolução, portanto, já não é mais o ser humano consciente, agressivo e determinado – mas a matéria molecular, os micro-fluxos de bichos incontroláveis que invadem o espaço da produção e do discurso, substituindo a História pela Herstory: o tempo em que a Razão teleológica será substituída pela Sensibilidade e pelo caótico devir sensual. O Humanismo se baseava na liberdade ontológica que os filósofos italianos do início do Renascimento identificavam com a ausência de determinismo teológico. O determinismo teológico acabou, e o vírus tomou o lugar de um deus teleológico. O fim da subjetividade como motor do processo histórico implica o fim do que temos chamado de “História” com H maiúsculo, e o começo de um processo no qual a teleologia consciente será substituída por múltiplas estratégias de proliferação. A proliferação, a disseminação de processos moleculares, substitui a história como macro-projeto. Pensamento, arte e política já não devem mais ser vistos como projetos de totalização (Totalizierung, no sentido de Hegel), mas como processos de proliferação sem totalidade. 2. Utilidade Depois de quarenta anos de aceleração neoliberal, a corrida do capitalismo financeiro subitamente se deteve. Um, dois, três meses de lockdown global; uma longa interrupção do processo de produção e


da circulação global de pessoas e bens; um longo período de reclusão; a tragédia da pandemia... tudo isso fará com que as dinâmicas capitalistas quebrem de uma forma que pode ser irremediável, irreversível. Os poderes que gerenciam o capital global nos níveis político e financeiro estão tentando desesperadamente salvar a economia, injetando quantias enormes de dinheiro nela. Bilhões, bilhões de bilhões... cifras, números que agora tendem a significar: zero. De repente, o dinheiro significa nada, ou muito pouco. Por que se está dando dinheiro a um cadáver? É possível reviver o corpo da economia global injetando dinheiro nela? Não. A questão é que tanto o lado da oferta quanto o lado da demanda são imunes ao estímulo monetário, porque a recessão não está acontecendo por razões financeiras (como em 2008), mas por causa do colapso dos corpos, e os corpos não têm nada a ver com estímulos financeiros. Estamos ultrapassando o limiar que conduz para além do ciclo trabalho-dinheiro-consumo. Quando, um dia, o corpo sair do confinamento da quarentena, o problema não será reequilibrar a relação entre tempo, trabalho e dinheiro, entre a dívida e o pagamento. A União Europeia foi fraturada e enfraquecida por sua obsessão por dívidas e equilíbrio, mas as pessoas estão morrendo, os hospitais estão ficando sem ventiladores e os médicos estão sobrecarregados por fadiga, ansiedade e medo de contágio. No momento, isso não pode ser alterado por dinheiro, porque dinheiro não é o problema. O problema é: quais são as nossas necessidades concretas? O que é útil para a vida humana, para a coletividade, para os cuidados? O valor de uso, expulso do campo da economia há muito, está de volta; e o útil agora é rei. O dinheiro não pode comprar a vacina que não


temos, não pode comprar as máscaras de proteção que não foram produzidas, não pode comprar os departamentos de cuidados intensivos que foram destruídos pela reforma neoliberal do sistema de saúde europeu. Não, o dinheiro não pode comprar o que não existe. Somente o conhecimento, o trabalho inteligente, pode comprar o que não existe. Então, o dinheiro é impotente agora. Apenas a solidariedade social e a inteligência científica estão vivas, e podem se tornar politicamente poderosas. Por isso, penso que, ao final da quarentena global, não voltaremos ao normal. O normal nunca voltará. O que acontecerá depois ainda não foi determinado e não é previsível. Estamos diante de duas alternativas políticas: um sistema tecno-totalitário que relançará a economia capitalista por meio da violência, ou a liberação da atividade humana da abstração capitalista e a criação de uma sociedade molecular baseada na utilidade. O governo chinês já está experimentando com o capitalismo tecno-totalitário em grande escala. Essa solução tecno-totalitária, antecipada pela abolição provisória da liberdade individual, pode vir a ser o sistema dominante no futuro, como corretamente apontou Agamben em seus controversos textos recentes. Mas o que Agamben diz é apenas uma descrição óbvia da emergência atual e do provável futuro. Quero ir além do provável, porque o possível me parece mais interessante. E o possível está contido no desmoronamento da abstração, e no retorno dramático do corpo concreto como um portador de necessidades concretas. O útil está de volta ao campo social. A utilidade, há muito esquecida e negada pelo processo capitalista de valorização abstrata, agora é a rainha da cena. O céu está limpo nestes dias de quarentena; a atmosfera está livre de partículas poluentes, pois as fábricas estão fechadas e os carros não


podem circular. Voltaremos à poluição da economia extrativista? Voltaremos ao frenesi normal da destruição por acumulação e da aceleração inútil pelo valor de troca? Não, precisamos seguir em frente, em direção à criação de uma sociedade baseada na produção do útil. Do que precisamos agora? Agora, no presente imediato, precisamos de uma vacina contra a doença, máscaras de proteção e equipamento de cuidado intensivo. A longo prazo, precisamos de comida, afeto e prazer. E de uma nova cultura de ternura, solidariedade e frugalidade. O que resta do poder capitalista tentará impor à sociedade um sistema tecno-totalitário de controle - isso é óbvio. Mas a alternativa está aqui agora: uma sociedade livre das compulsões de acumulação e crescimento econômico. 3. Prazer O terceiro ponto sobre o qual eu gostaria de refletir diz respeito ao retorno da mortalidade como característica definidora da vida humana. O capitalismo tem sido uma tentativa fantástica de superação da morte. A acumulação é o Ersatz que substitui a morte pela abstração do valor, a continuidade artificial da vida no mercado. A transição da produção industrial para o teletrabalho, o deslocamento da conjunção para a conexão na esfera da comunicação, é o ponto final da corrida em direção à abstração, que é o principal fio condutor da evolução capitalista. Em uma pandemia, a conjunção é proibida – fique em casa, não visite amigos, mantenha distância, não toque em ninguém. Uma enorme expansão do tempo gasto online está em andamento, inevitavelmente; e todas as relações sociais – trabalho, produção, educação – foram deslocadas para essa esfera que proíbe a conjunção. O intercâmbio social offline não é mais possível. O que acontecerá depois de semanas e meses disso?


Talvez, como prevê Agamben, entraremos no inferno totalitário de um estilo de vida totalmente conectado. Mas um cenário diferente é possível. E se a sobrecarga de conexão quebrar o feitiço? Quando a pandemia finalmente se dissipar (supondo que sim), é possível que uma nova identificação psicológica se imponha: online é igual a doença. Também precisamos imaginar e criar um movimento de carinho que obrigará os jovens a desligar suas telas conectivas, lembranças de um momento solitário e assustador. Isso não significa que devemos voltar à fadiga física do capitalismo industrial; significa, ao contrário, que devemos tirar proveito da riqueza de tempo que a automação emancipa do trabalho físico, e dedicar nosso tempo ao prazer físico e mental. A propagação massiva da morte que estamos testemunhando nesta pandemia poderá reativar o nosso sentido de tempo como fruição, e não como adiamento da alegria. Quando a pandemia acabar, no final deste longo período de isolamento, as pessoas poderão simplesmente continuar afundando no eterno nada da conexão virtual, do distanciamento e da integração tecno-totalitária. Isso é possível, até provável. Mas não devemos nos deixar confinar pelo provável. Devemos descobrir a possibilidade oculta no presente. Pode ser que, após meses de constante conectividade online, as pessoas saiam de suas casas e apartamentos em busca de conjunção. Um movimento de solidariedade e ternura poderá surgir, levando as pessoas a uma emancipação da ditadura conectiva. A morte está de volta ao centro do cenário: a mortalidade, há muito negada, que torna os humanos vivos. Franco Berardi, também conhecido como “Bifo”, fundador da famosa Radio Alice em Bolonha e importante figura no movimento Autonomia Italiana, é escritor, teórico de mídia e ativista social.


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