de pé na mão Nina DeLudemann
sobre desafios pendentes do não-fazer e encontros analogicamente virtuais Esse pequeno ensaio em contradições é também a tentativa de sair da linha reta online que, nos últimos dias, me mostrou tantas pessoas despedaçadas, que até agora nem as mesas haviam conseguido fazer de maneira tão eficaz: Enquanto o padrão de sentar-se com os pés embaixo da tábua sempre permitiu o relance de uma pessoa inteira, os encontros hoje me mostram cabeças e troncos flutuantes, aparentemente independentes da parte de baixo do corpo. Esses dias até sonhei estar andando na Av. Independência e acordei quando senti as solas dos meus pés, me deixando com a enorme vontade de estendê-los em frente à câmera durante uma reunião – como prova que ainda quero andar, mesmo em espaços isolados, onde não há muita opção para onde ir – mostrando as plantas dos meus pés. Que sincero encontro aqui o Português!: dizendo que é preciso plantar, para poder ir a outro lugar. A necessidade concreta de fixar os (sonhos) viajantes. Já faz uns dias que soube que meu voo para o Brasil, agendado para o dia 1° de abril, seria cancelado. Estou impedida de me encontrar com pessoas que amo e das quais sinto falta. Mas enquanto não posso me encontrar com elas em espaços comuns, busco caminhos para voltar para lá. E acabo me encontrando em passados presentes. Um ano atrás (quando fez 55 anos que os militares tomaram o poder do governo brasileiro instituindo a ditadura que de certa forma perdura até hoje) criei uma pequena intervenção; documentando:
Não é um dia que deveria ser festejado. Por isso decidi começar o dia à meia noite (em Berlim às 5 horas GMT+2), trabalhando. Como o “chefão”, limpando os corredores hospitalares em O estranho no ninho: “Enfiam um esfregão na minha mão e mostram o lugar que eles querem que eu limpe hoje, e eu vou.” Ontem o sangue derramado, hoje varremos a poeira. “É um fato estranho que o horrível perde seu horror quando se repete”, comentou Michael Ende. Mas a limpeza amnésica é feita pelas mesmas ferramentas que podem ser usadas para subvertê-la, levantando a poeira. Em Orfeu extático na metrópole, se lê as vozes de cronistas escrevendo sobre o carnaval de 1919 em São Paulo: “Os outros divertem-se ainda e elas já vêm à colheita do lixo [...] Num instante uma outra coluna de invasores se precipita sobre a avenida e a cena se transfigura numa batalha a campo aberto [...] Substituindo a comunhão anterior da festa, três grupos interdependentes, mas também antagonísticos, se projetam em circuitos contraditórios: os mascarados exultantes nos carros em disparada, as catadeiras com o rosto esquálido de aflição, as caras empoeiradas dos lixeiros apressados.” Imagino que são muito parecidos com o varredor na história de Momo: “Ele pensou por um tempo. Então ele continuou: ‘Nunca se deve pensar em toda a estrada de uma só vez, você entende, você apenas tem que pensar no próximo passo, na próxima respiração, na próxima pincelada, e de novo e de novo na próxima’”, diz Beppo. E esse é o problema: perder a noção da relação entre as coisas. As reportagens da época entre
as duas guerras mundiais lembram que cada feriado, cada festa eram seguidos pelas pessoas que não podiam participar. Porque o feriado dependia da exclusão delas, que estavam pavimentando o caminho – e dos já mortos, varridos ao esquecimento – feito de suas costas, sobre as quais acontecia a festa. Contra o empreendimento de fazer dessa data um dia de festa, diante desse absurdo de elogiar violências – quero protestar, resgatar memórias que não são as minhas, mas que fazem parte da minha vida. Fiz isso em um gesto simples, e solitário, porém necessário para nosso convívio, que é esse de limpar a rua. O que mais me comoveu foram os encontros ao longo do caminho, as pessoas e as pequenas conversas que eu tive. Com essa data se aproximando, já umas semanas atrás pensei em adaptar a performance para realçar a importância do nosso convívio. (Como era mesmo? Ninguém solta a mão de ninguém?) Hoje não é o dia 31.3. Mas, com essa data recém passada, se aproxima seu novo des-aniversário. E nos tempos em que vivemos, não sou eu que posso dizer que hoje não será o dia em que esse 31.3., com suas ressonâncias, se repita. Me refiro a essa data então como “hoje”. Pensei em passar o dia de hoje oferecendo-me para lavar as mãos de quem eu encontrasse na rua. Rapidamente se revelou que ninguém concordaria que eu lhe tocasse – mesmo com desinfetante. O que eu não esperava era que fosse considerado até criminoso tocar-se na rua. Dar-se a mão.
Já nem posso repetir a performance na forma do ano passado, já que a necrofilia governamental chega a se apropriar das pessoas que assassina de forma que abertamente pedem para continuarem morrendo. Como escreve Vladimir Safatle: o fascismo “(…) sempre soube transformar a festa da revolução em um ritual inexorável de auto-imolação sacrificial”. Só que agora transforma a exclusão em objeto de desejo, e convida até as pessoas excluídas da festa para que participem desse baile infernal. Varrer a rua se tornou um ato inadmissível. Quando na Alemanha hoje se fala de pessoas na rua, é para dizer que tem que ser quem tenha “importância sistemática”. E parece que é assim mesmo: trata-se das pessoas que estão indo para o trabalho, quem sai para fazer compras, e as pessoas que não têm onde ir. Que em todos sentidos estão fora. São essas as funções relevantes do nosso sistema, que depende tanto de uma grande parte que vive na rua para que outras possam ganhar dinheiro e fazer compras. Há pouco tempo fez dois anos que Marielle Franco foi assassinada. Por tudo o que aconteceu, no entanto, todas as notícias que circularam desde então, essa lembrança, entre outras, me parece já muito distante – essa notícia, essa memória parece já ter sido enterrada nos sedimentos logarítmicos. Mas o apelo de um artigo em particular me chamou a atenção: “é preciso lembrar que a morte de Marielle Franco não foi em vão.” Diante de ruas vazias e olhares desconfiados, nos raros casos em que ainda se encontra alguém em menor proximidade que 1,5 metros, penso se talvez não foi “em” – com certeza a morte de Marielle possa ser – continua sendo “um” vão. Uma ruptura. Lembrar agora mais do que nunca que a morte pode ser um vão; e que seu contrário, nem a superação de sua dor será preenchimento.
Uma amiga me falou em um telefonema que, quando os teatros reabrirem, não deveríamos nos esquecer de que são espaços de abundância, de divertimento e também de tédio. Uma interrupção. Espaços que guardam tanta memória que nos permite até esquecer – permite que não nos enganemos ao confundir lembrança com exigência de registrar, gravar, preservar. Podemos passar esse tempo em casa, escrevendo, desenhando, aprendendo novas línguas, fazendo ligações pela internet e fisioterapia à distância – mas isso não tampará o enorme e crescente abismo social. Nessa madrugada de hoje, com o raiar do sol anunciando o final do dia passado, levei uma planta para a floresta. Passei um momento com ela lá, paradas nós duas, para que ela conhecesse a floresta antes de ser levada para o jardim. Assim ela poderá contar para as outras plantas como é esse outro lugar. Sujando minhas mãos que – admito – nunca foram estéreis, vou escavar um buraco que acolherá a planta que levarei para a floresta. Pedi para os amigos me mandarem um desejo, uma palavra, um pensamento – que plantaria nesse mesmo buraco, mesclando-se ao adubo. O que não consigo tapar é minha própria ansiedade em saber que esse texto está disseminado pela internet. Algo que eu tinha criado para ser uma intimidade entre amigos; um texto escrito para ser virtual, no sentido de uma imaginação expandida além das conexões – mesmo nesses tempos que tudo parece ser abertamente compartilhado desde um mundo englobado. Me consolo com o pensamento de que também a intimidade não seja algo coberto, mas que potencialmente possa ser vista, até iluminada na lucidez de uma tela, mas alcançável só para quem a quiser ver, embrenhada entre as linhas.
Compartilho aqui então, na mesma esperança de chamar a atenção à importância do(s) vazio(s). Por mais que consigamos superar esses tempos de isolamento com substituições, o vazio é algo que não tem equivalente virtual. E é algo que precisa ser permitido, por mais doloroso que seja, porque é também o vazio que cria espaço. Por isso, rego os desejos de meus amigos que se dissolvem na terra, contados em silêncio, em vão. Ninguém que não seja uma das outras plantas jamais escutará. Um momento à toa. E estendo o conselho a quem tiver a oportunidade de plantar um sonho em um buraco, ou seja, cavar o espaço onde o sonho venha a caber. Me apropriando de palavras, por sua serenidade, imortais: “o verdadeiro amor é vão” (“Drão”, Gilberto Gil). Amanhã terei andado ao longo de uma estrada e encontrado uma sacola cheia de conservas que alguém terá largado lá. Primeiro pensando que era uma doação: aqui surgiu um movimento de deixar comida empacotada em sacolas para os moradores de rua pegarem. E, assim, poder ajudar as pessoas que precisam, sem necessidade de contato ou risco de contágio. Só que onde estou morando não tem morador de rua. Nem tem pedestres nessa rua bastante movimentada. Eu pararei então para olhar, curiosa com os objetos encontrados. As latas estarão todas fechadas ainda, mas com data de validade vencida. Abrindo espaço para os novos estoques, alguém resolveu se livrar das reservas que tinha guardado no último isolamento iminente. E eu, achando-as boas demais para deixá-las abandonadas ao lado da rua, levarei as latas para casa. As etiquetas prometerão boa companhia: cabeças de aspargos, como se chamam em alemão, e corações de alcachofra.
Queridos amigos, parentes, almas próximas, espero que estejam podendo enfrentar esses tempos com confiança e que possam cuidar não só de si, mas também dos sonhos. Quero aqui mandar um recado de longe, mas com pensamentos sempre presentes. Enquanto espero a primavera, o tempo novo chegar e o pior passar, me alimento dos medos conservados de uma crise passada e aguardo uma planta florescer.
Nina DeLudemann faz propostas artísticas. Nasceu e foi criada nos seus primeiros 10 anos de vida em São Paulo, antes de se mudar para a Alemanha. Estudou economia e cenografia em Berlim, onde se formou na Universidade das Artes (UdK). Entre Brasil e Alemanha, realiza seus trabalhos circulando entre mundos multicronológicos.