vigiar o passado e o futuro através do vírus Eyal Weizman
Tradução André Arias e Clara Barzaghi
A pandemia do coronavírus faz um diagrama visual da nossa interação social - o contato físico e as relações que temos uns com os outros, nossas proximidades, nossos movimentos, nosso uso de equipamentos e infraestruturas. A fim de mapear e modelar a propagação do vírus, nós precisamos primeiro compreender o padrão da vida ao nível do indivíduo e da população. É por isso que, além da coleta de informações - a vigilância de dispositivos pessoais -, os algoritmos “reconhecedores de padrões” são uma das ferramentas mais eficientes agora. Essa forma de processamento de dados é orientada tanto em direção ao passado como ao futuro. O aparato de controle, portanto, combina vigilância - de ações que fizemos e lugares que visitamos - com modelagem - uma descrição matemática de futuros possíveis. É uma cartografia não apenas de onde nós estivemos e de quem nós estivemos próximos, mas de onde nós podemos ir no futuro e com quem, expandindo-a a cada conjunção. A computação de nossos hábitos passados combinada com previsões de nossa resposta ao desenvolvimento de uma situação constitui a paisagem de risco pessoal e coletivo. Essa forma de vigilância mira o entendimento e a prevenção do contágio que terá acontecido no futuro. A modelagem que está sendo aplicada na propagação do vírus não é baseada apenas no comportamento das formas de vida virais (em relação a condições climáticas e certas drogas por exemplo), mas também no comportamento humano - a circulação de populações no espaço e suas respostas a instruções, restrições, alertas, obrigações, e como essas intervenções modulam o comportamento. O vírus torna visível um contexto viral-humano-algorítmico. Ou nós podemos dizer que a pandemia é, até certo ponto, um sistema de informação simultaneamente físico e algorítmico. Esses modos de análises de padrão foram
pioneiros no contexto de busca de alvos militares, nomeadamente, os ataques de drone “por assinatura”. Tais ataques se baseiam em um padrão preventivo de reconhecimento de pessoas que a CIA considera suspeitas de oferecer um “risco iminente” na fronteira entre o Afganistão e o Paquistão, ou pela Força Aérea de Israel em Gaza. As análises dependiam de padrões associativos entre as pessoas entre si e entre as pessoas e os locais - virtuais ou físicos ou as estradas. De modo que se alguém dirigiu ao longo de uma estrada específica numa direção específica com uma pessoa específica depois de ter visitado uma madraça específica, essas pessoas poderiam ser computadas como uma ameaça iminente e alvejadas. Essas pessoas não foram executadas (extrajudicialmente) pelo que fizeram, mas pelo que poderiam fazer ou terão feito no futuro. Não é de espantar que algumas dessas empresas de segurança e vigilância militar estejam capitalizando em cima da crise do vírus atual. Estas ferramentas estão sendo legitimadas por um público ansioso, que as autoriza a se inserirem no nosso cotidiano de formas inimagináveis há poucos meses atrás. Portanto, o que já tinha sido experimentado nas fronteiras da guerra ao terror, nessas “zonas de excepcionalidade”, emerge agora no contexto de exceção trazido pela pandemia. As áreas de fronteira chegaram em casa, embora de maneira enviesada. Tal processo faz lembrar do que Hannah Arendt chamou de “bumerangue colonial”, no qual as condições e os experimentos realizados nas áreas de fronteira são trazidos para casa. Em larga medida, os sistemas de policiamento e controle foram, historicamente, uma tarefa deixada a cargo de arquitetos e outros projetistas e construtores de espaços, residências, estradas, cidades-Estado. Eles supervisionaram o desenvolvimento de site-lines, a promoção
(ou o bloqueio) da circulação, a construção de cruzamentos e muros, seja em ruas individuais ou em vastas paisagens urbanas. Na história do urbanismo, pestes, pandemias e epidemias quase sempre levaram a uma fase de transição no desenvolvimento das formas urbanas, desde a invenção do gueto na Veneza do início do século XVI, construído para conter a disseminação da peste negra supostamente proveniente dos judeus, até o surgimento do Estado moderno e da ideia de um regime totalizante de distribuição e segregação na estrutura da vida humana. O imaginário racista sempre tende a associar contágio viral com controle migratório. A preocupação com as infecções tropicais nos séculos XIX e XX quase empurraram os limites dessa associação, conduzindo ao advento do modernismo e à produção de edifícios cada vez mais isolados dentro das paisagens urbanas. Grande parte da história da arquitetura é uma tentativa de controle da contaminação e suas mais ou menos sutis codificações raciais. Sempre que uma nova epidemia se instaurou, as ferramentas espaciais desenvolvidas para contê-la tenderam a permanecer, a se consolidar, condicionando o controle do Estado que se seguiria. Quando uma emergência como essa se torna menos intensa, seu espectro ou o medo de seu retorno governam as mutações nas formações do tempo-espaço e nos sistemas de controle. Nunca houve um retorno completo à “normalidade anterior” e aos seus marcos normativos. Lembremos também que a longa história do policiamento urbano não vem do crime, mas do controle de epidemias e de suas associações com as interações sociais. O que vemos agora, no entanto, são novas formas de governar no espaço, que foram assumidas por uma relação entre algoritmos e dispositivos de fronteira, que agora existem na escala de Estados, ruas e casas. Nossa tarefa como cartógrafos críticos é compreender os modos pelos quais esse diagrama
é mapeado, compreender o que está em operação nessa lógica espacial mutante, e confrontar os protocolos que estão sendo executados agora com pouca ou nenhuma resistência ou escrutínio. Nossa tarefa é expor suas linhas de segmentação e propor como seria uma movimentação livre depois do vírus. Este texto foi baseado na transcrição de uma conversa telefônica com Eyal Weizman realizada em 30 de março de 2020. Eyal Weizman é arquiteto, e dirige o Centro de pesquisas arquitetônicas do Goldsmith College, em Londres. É autor, entre outros, de Através das paredes, a sair no Brasil pela n-1ediçoes.