2020 e outros poemas Alberto Martins
2020 um morador de Roma vendendo azeitonas em 817 a.u.c. não tinha como saber que séculos mais tarde seria considerado um comerciário do ano 64 depois de Cristo uma garota maia zanzando pelas florestas do iucatã no ano 1 acatl não podia imaginar que para os espanhóis já havia amanhecido 1519 mas nós que chegamos vivos a 2020 não temos desculpa para não tratar este ano com o máximo cuidado >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> anoto essas palavras no verso de uma ordem de serviço de reparos do meu carro na qual estão incluídas a troca das pastilhas a troca do filtro de óleo a troca do óleo do motor a troca da coifa de câmbio a troca das coifas da homocinética totalizando 1.120 reais <<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<
agora estou parado no congestionamento de uma rodovia em Santa Catarina é 3 de janeiro e o governo dos Estados Unidos acaba de acelerar seus drones para assassinar um general iraniano colocando o resto do mundo numa sinuca de bico >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> ai 2020 penso no teu irmão magricela 1010 fazendo coalhada com leite de cabra tentando guardar sobras de gordura para atravessar com alguma folga o último inverno da idade das trevas penso nos teus irmãos desconhecidos 3030 / 4040 / 5050 mas não sei não do jeito que anda essa estrada você e eu não chegaremos nem a Itajaí
a insônia do leitor de ficção na frase Liguei o som risquei a palavra Liguei e sugeri Aumentei porque imaginei que àquela altura do conto o som já estivesse ligado TRUE LOUD MUSIC que agora mentalmente traduzo como MÚSICA ALTA DE VERDADE e me pego pensando na diferença que há em dizer que uma coisa é VERDADEIRA ou que uma coisa é DE VERDADE o parágrafo mais importante do conto para mim é o sexto que tem apenas 8 linhas (o conto inteiro tem 22 parágrafos e 130 linhas) nele o irmão e a irmã estão sozinhos na casa dos pais na véspera da véspera de Natal e começam a beber na cozinha
primeiro colocam a conversa em dia (eles moram em cidades diferentes e se viram poucas vezes ao longo do ano) depois atacam as velhas questões familiares nunca resolvidas e então começam outra conversa nova dessa vez pra valer — a partir desse momento qualquer assunto chato — sério ou fútil — eles deixariam para trás (o texto é narrado na primeira pessoa mas aqui achei melhor mudar para a terceira) aí vem a frase estávamos finalmente bebendo e rindo e chorando no presente — de madrugada no meio da insônia me peguei pensando nessas frases do parágrafo 6 em tudo o que elas dizem em tudo o que elas deixam de dizer se Proust tivesse uma IRMÃ VERDADEIRA se Proust tivesse uma
IRMÃ DE VERDADE com quem pudesse tomar cerveja conversando na cozinha quem sabe nunca teria escrito Em busca do tempo perdido
o poema interrompido era sobre o pôster de um quadro de Franz Marc que por muitos anos ficou pendurado na parede em cima da cama no nosso quarto de casal até que um dia reparei que na borda superior quase fora da tela havia duas faixas escuras que pareciam os óculos de um aviador e soaram como prenúncio de bombas de morte e de guerra na primeira estrofe eu descrevia o quadro na segunda tentava explicar minha surpresa ao encontrar aquelas duas manchas pretas
depois contava o que Evandro Carlos Jardim me disse um dia numa aula de gravura — que se Franz Marc não tivesse morrido na guerra de 14 provavelmente Paul Klee seria um homem menos amargo sempre achei que Franz Marc tinha ido para a guerra contra a vontade e fiquei desapontado quando descobri em sua biografia que ele foi dos primeiros a se alistar mais desapontado ainda quando li suas primeiras cartas do front — numa delas por exemplo (6.09.1914) ele escreve há qualquer coisa de grandioso e de místico nas batalhas de artilharia é claro que pensei em usar um trecho como esse no poema e logo me ocorreu escrever um refrão — que declaração absurda que lirismo idiota — para contrapor a cada uma das citações (a ideia era usar vários trechos de cartas diferentes)
mas depois de um tempo comecei a duvidar da minha honestidade — só porque Franz Marc acreditou que a guerra era um gesto necessário para deixar para trás definitivamente todos os cacarecos do século XIX que direito tenho eu à distância de mais de 100 anos e com quase o dobro da idade que ele tinha na época de chamar de absurda sua frase de jovem soldado de chamar de idiota o lirismo de um artista tão mais devotado a sua arte do que eu — o poema parou nesse ponto x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x parou nesse ponto e ficou semanas meses quase um ano sem ir para a frente nem para trás x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
só consegui voltar a ele quando li um trecho do romance autobiográfico de Camus O primeiro homem em que o narrador visita sua mãe num subúrbio de Argel e sentado na mesa de jantar numa sala praticamente deserta tenta recompor o que foi a vida de seu pai enquanto a mãe olha várias vezes pela janela para a rua ensolarada lá fora onde por um lapso vejo se cruzarem dois homens que não se conhecem — um jovem pintor alemão e um colono pobre francês convocado às pressas para as trincheiras do Marne — como sombras na calçada vão morrer na mesma guerra um de cada lado a cabeça atravessada pelo estilhaço de um obus
no 47o dia da quarentena meus últimos poemas foram sobre artistas dos séculos XX e XIX estou meio que andando para trás como um caranguejo esta noite sonhei que ficava no mar com água pela cintura conversando com dois amigos e sua filha pequena de repente vi o dorso de uma sombra na água em movimento — sem pânico sem pânico todos voltando quando consegui sair da cama deixei vários recados no whatsapp de uma pessoa querida que não vejo há tempos gosto de sentir a areia debaixo dos pés mas acho que nem ela sabe para onde estamos indo
Alberto Martins é escritor e artista plástico; trabalha na Editora 34, em São Paulo.