Pandemia Crítica 060 - Pandemia de desigualdades

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pandemia de desigualdades Pâmela Carvalho


Pandemia: substantivo feminino Enfermidade epidêmica amplamente disseminada. Epidemia: substantivo feminino Doença de caráter transitório que ataca simultaneamente grande número de indivíduos em uma determinada localidade. De acordo com a língua portuguesa falada no Brasil, podemos entender uma pandemia como uma epidemia amplamente disseminada. Os veículos de comunicação versam sobre a pandemia de Covid-19, que assola o mundo todo, de forma não vista antes na contemporaneidade. O medo da morte, o assombro diante da incerteza da “comida na mesa”, a iminência da privação de deslocamentos têm sido sensações recorrentes no último mês e meio no Brasil. Porém, a pandemia de Covid-19 escancara uma outra pandemia. A esta, chamo de pandemia de desigualdades. Diferente da Covid-19, que no Brasil teve seu primeiro caso registrado em 26 de fevereiro de 2020, em São Paulo, a desigualdade adoece nossa sociedade há muito. A primeira pessoa diagnosticada com o novo coronavírus foi um homem de 61, atendido no Hospital Israelita Albert Einstein, que havia voltado de viagem da Lombardia, Itália. No Rio de Janeiro, o primeiro caso diz respeito a uma mulher de 27 anos, residente no município de Barra Mansa, que também retornou da Itália. Já a primeira vítima fatal da doença no Rio de Janeiro foi uma mulher de 63 anos. Diabética e hipertensa. Empregada doméstica. Sua patroa viajou para a Itália e testou positivo para o novo coronavírus. Agora eu faço uma pausa na escrita, me levanto, tomo uma água e penso em minha mãe e em minha avó. Respiro. Ambas foram empregadas domésticas


e que depois de dias intensos de trabalho nas regiões com as maiores concentrações de renda da cidade, subiam o Morro do Juramento. Trago este dado porque um dos alertas que esta pandemia nos traz – com relação a populações negras, indígenas, pobres e faveladas é: não somos apenas números. Somos indivíduos com nome, sobrenome, famílias e histórias. E a minha história também é essa. A intelectual que é filha da atual merendeira e exempregada doméstica, e que hoje vos escreve aqui. Retorno à escrita e à pandemia. Mais especialmente ao que chamo de pandemia de desigualdades. O primeiro óbito no Rio nos ajuda a entender este termo. A enfermidade que inicialmente foi vista como “doença importada” tem em sua primeira vítima uma mulher das classes trabalhadoras. De uma categoria que só passa a ser reconhecida por lei em 2015, com a Lei 105 que assegura direitos como FGTS, adicional noturno, seguro-desemprego, salário-família, entre outros. Esse caso não expõe uma questão pontual. Em periferias de São Paulo – estado onde foi registrado o primeiro caso –, a letalidade da Covid-19 é cinco vezes maior do que a média nacional. (Dados da Agência Mural/SP em 23/04/2020). Segundo a Redes de Desenvolvimento da Maré, no dia 30/04/2020 havia 27 casos confirmados na Maré. Constando seis óbitos. Porém a suspeita é que o número real de casos e óbitos seja o dobro disso. Isso nos alerta para a ínfima quantidade de testes, para a subnotificação de casos e para a dificuldade de atendimentos em favelas e periferias. O vírus não é democrático. A pandemia não veio para nos “aproximar de nós mesmos”. Não há romantismo no que vivemos. A pandemia talvez tenha vindo como forma de expor esta tão antiga pandemia de desigualdades. A pandemia de desigualdades mostra que em territórios de favelas e periferias


muitas vezes não é possível cumprir com o isolamento por falta de espaço físico. A pandemia de desigualdades mostra que é impossível lavar as mãos com frequência se não “cai água” todos os dias. A pandemia de desigualdades nos faz ver que muitas vezes as recomendações ditas globais não dão conta da realidade de favelas e periferias. A pandemia de desigualdades nos força a ver que morte e vida têm valores diferentes de acordo com a origem e raça de quem vive e morre. Levantamento da CNN feito com dados compilados da prefeitura do Rio aponta que em cada quatro mortes no município, três ocorreram nas zonas norte e oeste. Em 1° de maio de 2020, os bairros que lideravam o ranking de óbitos eram Campo Grande e Copacabana (ambos com trinta casos, porém Copacabana com uma grande população idosa segundo dados do IBGE). Em seguida, Bangu e Realengo. Já a Barra da Tijuca concentra a maioria dos casos: 301 confirmados. Em contrapartida, há dezessete mortes. A resposta dessa equação é: desigualdade. Não somos iguais. E essa desigualdade se manifesta inclusive na hora de morrer. Encerro esta breve reflexão assumindo sua densidade. Historicamente as favelas sofrem com descaso do poder público, o que faz com que moradores e instituições da sociedade civil tenham de se colocar na luta pela garantia de direitos básicos e tenham também de disputar as narrativas sobre favelas. Hoje – e sempre – é das favelas que emergem as mais potentes práticas de solidariedade e impacto territorial. A escuta a estes territórios se apresenta para mim como alternativa de cura para a velha pandemia de desigualdades. Mas, isto fica para uma próxima reflexão. Maré, Rio de Janeiro. 04 de maio de 2020.


Pâmela Carvalho é educadora, historiadora, gestora cultural, comunicadora, pesquisadora ativista das relações raciais e de gênero e dos direitos de populações de favelas. É Mestra em Educação pela UFRJ. É coordenadora na Redes de Desenvolvimento da Maré, a partir do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades”. É moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré. Mais em: @apamelacarvalho (Instagram).


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