quarentena solidária Manuela Samir Maciel Salman Amirah Adnan Salman
Porque se chamavam homens também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem Milton Nascimento e Lô Borges
“Dia comum da Quarentena Solidária no Hospital Premier. No café da manhã, ao som de uma peça de Mozart, um médico e uma fisioterapeuta atrás do balcão, de máscara, touca, luvas e roupa informal, servem os funcionários no térreo, enquanto um diretor percorre as mesas da ampla lanchonete, com vista para uma pracinha de cidade do interior, conferindo o serviço. Um piano está ali. De repente o próprio médico se habilita a tocá-lo, antes de ir cuidar dos pacientes em seus quartos nos andares superiores. Mas ele prefere Bach. Aliás, de superior, no clima que se formou após a decisão tomada entre a direção e os funcionários, só os pacientes nos três andares. Saíram os jalecos de médicos, fisioterapeutas, psicólogos, terapeutas ocupacionais, os uniformes que distinguem os enfermeiros dos técnicos de enfermagem, os uniformes da hotelaria, do casal de mestres-cucas e dos agentes de limpeza. Entraram conjuntos de calça e camisetas, adquiridos em consonância com a inédita situação. Com isso, os sinais ostensivos de hierarquia se dissolveram. Adeus aos uniformes. A mesma operação observada neste café da manhã vai se repetir durante o almoço com trilha de Gardel e o jantar regado a Chitãozinho e Xororó, com um revezamento natural entre os atos de servir e ser servido, além do ato de lavar a louça, liberando da faina os profissionais que precisam encarar suas tarefas nos três turnos de praxe. Por essa e outras tantas, acordei com espírito renovado esta manhã, apesar da tragédia que se abate sobre o planeta. Todo dia é dia de ver e participar deste salto vital. Vamos à luta sem
pestanejar: hoje estou escalado para servir o café junto com os profissionais acima citados. Coisas assim nos dão a certeza de que não existe volta e podemos ficar acima do sistema rígido e desumano que nos foi imposto. Enfim, mudando a atitude dá pra mudar a realidade. E a palavra solidariedade ganha o mais perfeito sentido”. Depoimento de Samir Salman, superintendente do Hospital Premier, a Palmério Dória, jornalista e paciente
O Hospital Premier é uma instituição hospitalar de nível secundário especializada no atendimento a portadores de múltiplas doenças crônicas, em sua maioria idosos com alta dependência, elegíveis para Cuidados Paliativos e notavelmente susceptíveis à letalidade pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Atualmente o Hospital Premier cuida de 45 internos, com média de idade de 74 anos. Inaugurado em 2004 já com a ciência do que não queríamos fazer: durante a visita a serviços geriátricos, deparamonos com a descontinuidade do cuidado, a negligência e a baixa qualidade do atendimento. O ensino de escolas médicas e da saúde voltado apenas para a cura e com modelos de tratamentos médicocêntricos pautados na tecnologia não se adequava às necessidades das pessoas atendidas. Assim, optamos pela prática contra-hegemônica, para uma mudança do paradigma da atenção à saúde e permanente autocrítica e reflexão. Os Cuidados Paliativos são norteadores do nosso trabalho. Trata-se de abordagem multidisciplinar com objetivo de promoção da qualidade de vida a portadores de doenças ameaçadoras da vida (e seus familiares) por qualquer diagnóstico, com qualquer prognóstico, e a qualquer momento da doença em que tenham expectativas ou necessidades não atendidas. Centram-se no conhecimento da biografia e no respeito à autonomia da pessoa. Além da gestão da doença e dos aspectos físicos, psicológicos,
sociais e espirituais da unidade paciente-família, a equipe multiprofissional atua no auxílio a questões práticas, nos cuidados ao fim da vida, na autodeterminação no manejo do processo de morrer e na lida com as perdas e o luto de familiares e de pessoas significativas para o paciente. Ainda, atenta-se ao adoecimento do cuidador, formal ou informal, em busca da prevenção e manejo de possível sobrecarga. “Ao cuidar de você no momento final da vida, quero que você sinta que me importo pelo fato de você ser você, que me importo até o último momento de sua vida e faremos tudo que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudálo a morrer em paz, mas também para você viver até o dia de sua morte” – disse Cicely Saunders (19182015), fundadora do movimento hospice moderno e do St. Christopher’s Hospice, em Londres. Inaugurado em 1967, é considerado o berço dos Cuidados Paliativos no mundo. Em 2008 define-se missão, visão e valores do Hospital Premier. Incluída em sua missão está a valorização da atuação em equipe de profissionais comprometidos com a sociedade e o meio ambiente. Entre os valores incluem-se a ousadia de ser um contraponto ao modelo hegemônico de atenção à saúde e a corresponsabilidade com a elaboração de programas socioculturais e de políticas de interesse público. É preciso entender que esta empresa, apesar de inserida num contexto capitalista, tem um forte componente social e tem um ideal. Evidente que não se pode menosprezar a sustentabilidade financeira, mas não são os valores capitalistas que a dirigem. Considerando nossa inserção em uma sociedade onde o ser humano está a serviço de uma lógica capitalista que o incentiva cada vez mais a uma cultura individualista e consumista, temperados com uma divulgação permanente do medo, era preciso agir diferente. Importante informar que se trata de empresa familiar, o que facilita a quebra de rigidez
normativa, a ausência de hierarquia de saberes e a diretriz de uma medicina não baseada em protocolos, mas em valores. As tomadas de decisões levam em conta as opiniões dos funcionários e as circunstâncias políticas e psicossociais, contribuindo para um bom clima organizacional. Através da prática do cuidar incondicional, não só o cuidar do paciente mas o cuidar do companheiro do lado, o cuidar da faxineira, vivencia-se um exercício contínuo para desenvolvimento deste olhar atento. Estímulo para que as pessoas se olhem no olho e se reconheçam diante das dificuldades psicossociais estruturais que nossa sociedade impõe, através do resgate biográfico não só dos pacientes, mas também entre os colegas de trabalho. Com isso, sinaliza-se para a comunidade os valores que regem a nossa convivência. O Hospital Premier, através do Instituto Premier de Educação e Cultura e em parceria com o St. Christopher’s Hospice, ao reafirmar seu compromisso em oferecer educação e treinamento para que a morte seja gerenciada com habilidade e compaixão, tornou-se o primeiro satélite do Programa QELCA© Quality End Of Life Care for All (Qualidade no cuidado de fim da vida para todos) na América Latina. Trata-se de uma inovação educacional na área para empoderar equipes de saúde e assistência social em ambientes de cuidados agudos, comunitários ou domiciliares para liderar a prestação de cuidados de alta qualidade a pacientes e famílias no final de vida. Há evidências de que o QELCA© também motiva os participantes a introduzir cuidados a si mesmos e às suas equipes e a promover mudanças na cultura institucional. Abordagens de aprendizagem ativa centradas no profissional são adotadas para facilitar o aprendizado compartilhado e estimular a reflexão sobre a morte e o morrer. Como na natureza, as transformações não se fazem de maneira instantânea. Os processos
obedecem inexoravelmente ao encadeamento de eventos cronológicos: não haverá frutos se não houver flores. Esta introdução fez-se necessária para contextualização e compreensão do terreno organizacional que entendemos que sustentou, até o momento, a estratégia adotada pela instituição diante da ameaça da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19). A pandemia pelo SARS-CoV-2 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, indicando a circulação do vírus em todos os continentes. Registrou-se a alta transmissibilidade da Covid-19, inclusive por indivíduos sem ou com poucos sintomas, dificultando sua identificação e prevenção. Emergências de saúde pública de proporções internacionais como essa impõem novos desafios aos serviços de Cuidados Paliativos. Em 18 de março de 2020, diante do estado de atenção mundial à gravidade da pandemia e seus piores desfechos em indivíduos idosos com doenças crônicas, formaliza-se a criação do Comitê de Crise Covid-19 do Hospital Premier para formulação e implementação de planos de ação. Medidas de isolamento social e o cancelamento de eventos e de atividades educativas com aglomerações foram tomadas de forma gradual conforme a evolução da doença. Visitas de familiares foram suspensas, assim como a dos voluntários religiosos que semanalmente acolhiam os pacientes daquela crença. Músicos não mais preenchiam os corredores do hospital com sua arte. Estudantes de graduação e pós-graduação de diversas instituições de ensino parceiras interromperam suas atividades com foco nas singularidades do indivíduo, na importância da multidisciplinaridade e do redirecionamento da atenção da doença para a pessoa. Eventos regulares para promoção da qualidade de vida a pacientes e acompanhantes deram lugar ao isolamento. Os idosos do bairro deixaram de realizar suas atividades de
promoção da saúde e de estímulo ao envelhecimento saudável duas vezes na semana dentro das instalações do hospital. Em uma instituição cujo mote é a celebração da vida, aparentemente paradoxal diante de quem está próximo da morte, tratava-se da proibição de seus valores alicerces. A experiência de países como a China, Itália e Espanha alertava-nos o tamanho de nossa responsabilidade com as medidas de prevenção. Com a hospitalização de todos os casos (não apenas aqueles que necessitaram de cuidados hospitalares), a China iniciou uma forma efetiva de isolamento, reduzindo a transmissão comunitária subsequente. O distanciamento social em toda a população foi a estratégia de maior impacto para reduzir rapidamente a incidência da doença, com reforço para o isolamento social dos idosos. Já na Itália e na Espanha, onde as medidas de isolamento social foram mais comedidas, as consequências foram mais dramáticas. Na ausência de armas e munições para combater a doença, ou seja, medicamentos, vacinas, ventiladores ou testes suficientes, o cenário provável de manter as portas abertas poderia corresponder ao de instituições de longa permanência para idosos (ILPI) em Portugal, onde as portas abertas levaram a ausência de profissionais – infectados – para cuidar dos pacientes. Cientes de que no Brasil, diante das desigualdades sociais e de acesso aos serviços de saúde, o cenário poderia ser ainda mais grave. Ao considerar a transmissão comunitária na cidade de São Paulo; o alto risco de complicações de pacientes em Cuidados Paliativos com múltiplas comorbidades em caso de infecção pelo SARS-CoV-2; a falta de respiradores disponíveis em diversos fornecedores para assistência de casos graves; a falta de leitos de unidades de terapia intensiva (UTI) nos hospitais de referência das operadoras de saúde; o risco de contaminação no transporte
de pacientes com suspeita de COVID-19; os locais de moradia dos funcionários com alta taxa de aglomerações; a redução da frota municipal de transporte público, gerando aglomerações com alto risco de contaminação dos funcionários no ir e vir ao trabalho; e o consequente risco de infecção de seus familiares e dos pacientes internados, o Hospital Premier optou pela estratégia de autoisolamento / Quarentena Solidária. Ofereceu-se aos funcionários a possibilidade voluntária de permanência contínua dentro das instalações hospitalares de 25 de março até a data prevista de 10 de maio de 2020, possível período de pico de transmissibilidade à época da Covid-19 no Brasil. Tivemos a adesão de 40% de nossos profissionais. Todos os funcionários que aceitaram participar da quarentena assinaram o termo de adesão voluntária e estão cientes de que podem sair a qualquer momento. Sem medir esforços, o Hospital Premier disponibilizou equipamentos de proteção individual (EPIs), camas, roupas de cama e banho, roupas de trabalho, lavagem das roupas, produtos de higiene pessoal e alimentação para todos os funcionários que aceitaram voluntariamente participar da quarentena. Salas administrativas foram transformadas em alojamento, com uso dos vestiários. As escalas de trabalho foram readequadas, garantindo horários de descanso. Todas as horas trabalhadas são devidamente registradas e os funcionários estão cientes de que a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, será remunerado no prazo de até dezoito meses após o encerramento do estado de calamidade pública, de acordo com a Medida Provisória 927 de 23 de março de 2020. Mais da metade dos funcionários não tiveram a possibilidade ou o interesse em aderir ao autoisolamento da instituição. Muitos possuem
dois empregos ou falta-lhes o suporte social necessário. Foram aconselhados a seguir as recomendações do Ministério da Saúde e permanecer em isolamento domiciliar e, se necessária a saída de casa, realizar as medidas de precaução preconizadas e orientadas em treinamento prévio à quarentena. Aos funcionários cujo trabalho permitia essa possibilidade, foi oferecida a modalidade de teletrabalho. Para os funcionários inseridos na Quarentena Solidária a tarefa não é fácil. O impedimento, mesmo que voluntário, do ir e vir, associado à distância da família e de seu ambiente e rotina próprios, unem-se à mudança de comportamento necessária pela ameaça constante de infecção. Preocupações com a família, ansiedade e dificuldade em iniciar o sono foram queixas presentes. O cansaço ao passar dos dias foi aparente. A partir das necessidades dos profissionais, organizou-se rotina de atividades físicas, de relaxamento e lúdicas, e estrutura para videoconferências familiares e acolhimentos psicológicos online. Além da psicóloga do Hospital Premier, os acolhimentos são realizados por psicanalistas voluntários que disponibilizaram horários especificamente para atender os funcionários da instituição. Os próprios profissionais se dispuseram voluntariamente a oferecer atividades físicas em grupo e massoterapia. Agenda com alongamento, ioga, pilates e ginástica faz parte da rotina da quarentena. Sessões de cinema ocorrem diariamente às 22 horas no auditório: a escolha do filme é feita pelo público presente. Todos os domingos são transmitidas missas católicas às 8h e cultos evangélicos às 9h30. Ocorrem com regularidade reuniões com dinâmicas e reflexões filosóficas para acolhimento, espaço para compartilhamento, fortalecimento de recursos internos e construção coletiva de sentido para
o trabalho. O treinamento da equipe de saúde e apoio sobre a Covid-19 foi realizado por meio do ensino tradicional e de roda de conversa através do aprendizado ativo, mantendo-se a metodologia interna de educação participativa centrada no indivíduo. Materiais e insumos hospitalares são devidamente higienizados antes de adentrarem o hospital. Todos os trabalhadores que entram na quarentena após o dia 25 de março permanecem em isolamento por pelo menos 10 dias para observação de desenvolvimento de sintomas respiratórios, e têm reforço de EPIs até o 14° dia da entrada. Os profissionais de saúde e de apoio em quarentena passam por triagem médica para vigilância de infecções respiratórias e recebem orientações sobre autocuidado. As famílias dos pacientes foram informadas previamente sobre a instalação do regime de quarentena. Destes, 80% formalizou por escrito o apoio à estratégia institucional. Instituíram-se canais de comunicação com os familiares, com envio de informações sobre o plano de contingência do Hospital Premier frente a emergência da Covid-19, assim como orientações sobre estratégias de precaução e autocuidado. Videoconferências entre pacientes e suas famílias são promovidas pela equipe cotidianamente. Todo o processo está sendo registrado e documentado diariamente da melhor forma possível. Prezando pela transparência de nossas ações, fornecemos informações sobre a quarentena a todos os veículos de imprensa que solicitaram. Após veiculação da Quarentena Solidária em programas de tv, ocorreram doações como chocolates, bolos, lanches e almoço para as mães. Datas comemorativas como o dia das mães intensificam a saudade e outros sentimentos. Neste dia, o Premier fez uma homenagem com fotos das 51 mães na quarentena e seus filhos em forma de vídeo. À noite, outra homenagem foi transmitida em telão durante o
jantar nos Jardins de Soraya, área externa para eventos, com vídeos das mães com seus filhos. Inúmeras mensagens externas de apoio são transmitidas à equipe. A participação das famílias e da sociedade é um pilar central na motivação e construção de sentido para as ações. Segue texto público divulgado em mídias sobre a Quarentena Solidária: “Em tempos de pandemia planetária pelo novo coronavírus existem poucas certezas. Mas algumas coisas continuam claras: cuidar das pessoas, não deixar a verdade ser uma vítima como em outras épocas e que não existem manuais de instruções para crises como esta. O mundo discute caminhos e existem muitas divergências e poucas convergências. O Hospital Premier sabe que o tempo não pode ser desperdiçado, a vida é mais importante. Tomamos medidas iniciais transparentes, conversadas e documentadas entre todas as partes, buscando a segurança de nossos pacientes e a de nossos colaboradores e seus familiares. Em nenhum momento criamos regras ou vaticinamos valores. Apresentamos apenas garantias mínimas, dentro da nossa realidade financeira, para dar tranquilidade a quem preferiu ficar em casa com a família. Independente de qualquer discussão ou norma que venha a ser adotada, cumpriremos sempre o que nos cabe em termos humanos (vocação) e no aspecto empresarial. Vale salientar que nenhum direito trabalhista será desrespeitado.” Ao mesmo tempo que reconhecemos que estratégias como a Quarentena Solidária são medidas drásticas e de difícil implementação para a maioria das instituições de saúde do país, testemunhamos com pesar o aumento no número de mortes de idosos em ILPIs no Brasil e no mundo. São alarmantes os crescentes relatos de que instituições responsáveis pelo cuidado prolongado de idosos
enfrentam uma crise silenciosa em meio a pandemia. Há registros de falta de disponibilidade de EPIs e de profissionais habilitados para o manejo de pacientes com multicomorbidades e inadequação do ambiente físico para isolamento de pacientes suspeitos de estarem com o vírus. No contexto da pandemia, desnuda-se a vulnerabilidade dessa população e revela-se a necessidade de organizações estruturadas e sustentadas pelo Estado e iniciativas privadas com respeito a realidade local e fortalecendo o papel da comunidade nas soluções, para evitar um gerontocídio iminente. A maior parte dos Sistemas de Saúde no mundo não estava preparada para enfrentar as demandas de uma crise dessa proporção. Situação agravada em Sistemas de Saúde movidos pelo lucro onde a saúde é considerada mercadoria ao invés de ser vista como um direito básico. O Brasil conta hoje com mais de 210 milhões de habitantes, dos quais 160 milhões dependem do Sistema Único de Saúde (SUS). Já o Sistema de Saúde Suplementar recebe mais da metade dos investimentos totais em saúde e atende aproximadamente 47 milhões de brasileiros, muitos dos quais acessam concomitantemente o SUS em circunstâncias em que o sistema privado apresenta limites de cobertura. O SUS constituiu a maior política de inclusão social da história de nosso país. Apesar da extensa abrangência, mantém-se subfinanciado. Evidências apontam para maior acesso e melhores resultados na saúde dos brasileiros com a Estratégia de Saúde da Família, com redução da mortalidade infantil, impacto na morbidade, aumento da satisfação das pessoas com a atenção recebida e influência positiva em outras políticas públicas como educação e trabalho. Apesar disso, o desmanche do Programa Mais Médicos e o congelamento do financiamento com a Emenda Constitucional 95 por vinte anos foram na contramão do fortalecimento do SUS. Os efeitos da
pandemia pelo SARS-CoV-2 no Brasil ainda não podem ser totalmente mensurados, mas a crise já revela a negligência de longa data aos serviços públicos. Como todas as pessoas, gostaríamos que a pandemia tivesse um fim rápido. Pautados em predições da OMS e outros órgãos e referências, ainda há uma tendência crescente da Covid-19 no Brasil, com previsão do pico de transmissão no mês de maio. Na melhor das previsões, o término das infecções pelo SARS-CoV-2 no Brasil se dará no mês de agosto de 2020. Programamos a extensão da quarentena do Hospital Premier até junho e início gradual de visitas – quarentena flexibilizada mas não finalizada, com normas e condições graduais de abertura. No entanto, todas as nossas ações acompanharão a evolução da curva epidêmica da Covid-19 no Brasil. O comportamento da pandemia no contexto brasileiro ainda é carregado de incertezas e soma-se ao nosso desafio os efeitos sociais e psicológicos do isolamento. Continuaremos investindo no treinamento da equipe para que desenvolvam as habilidades técnicas necessárias para o manejo de casos de Covid-19, prevenção do contágio dentro e fora da instituição e para que possam prover o mesmo cuidado compassivo e humano que marcam a nossa trajetória até aqui. É nosso papel garantir que a morte ocorra com dignidade ao prevenir o sofrimento evitável. A pandemia traz a possibilidade de morte sem despedidas e de falta de acolhimento às famílias no pós-óbito, o que nos remete à quebra de direitos humanos e indignidade. Até o momento, conseguimos evitar a Covid-19 nos pacientes internados e nenhum funcionário na quarentena evoluiu com quadro suspeito. Menos de dez por cento dos trabalhadores deixaram a quarentena. Espelhados nas experiências internacionais e seguindo as recomendações da OMS mantemos nossa estratégia com a máxima humanização possível, convictos de que evitamos também a
infecção dos profissionais de saúde e das famílias. Com a esperança de que esses momentos difíceis nos farão pessoas melhores, compartilhamos com a comunidade nossa nova rotina, prezando pela saúde dos pacientes e profissionais e com o potencial de estimular um pensamento mais amplo sobre dinâmicas de serviços de saúde, solidariedade e resposta a crises. “Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo o mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.” Nise da Silveira Manuela Samir Maciel Salman é médica membro do Conselho Executivo. Amirah Adnan Salman é médica consultora educacional. Mestranda em Saúde Pública na Universidade da Cidade do Cabo.