partilhas sensíveis e essenciais em tempos pandêmicos [Ou, quando poderemos novamente ir ao teatro sem medo?] Marina Guzzo
“- Ajudou a passar o tempo. - Teria passado igual. - É. Mas menos depressa.” Samuel Beckett (Esperando Godot)
Os rituais são essenciais para nossa existência e não cabem em dispositivos. A morte, o funeral, o parto, o adoecimento, a festa, o teatro, o jogo. Rituais que dependem de encontros e de presença. Partilhas sensíveis e essenciais da vida. Giorgio Agamben (2009, p.48) já anunciava que “não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por um dispositivo” (2009). Talvez não imaginássemos que isso aconteceria tão abruptamente, e sem a nossa possibilidade de escolha. As artes da presença, ou arts vivants, embora também sempre tenham contado com dispositivos arquitetônicos, de iluminação, som e imagem, vinham sendo um resquício de uma experiência de liberdade da percepção. A presença, como experiência cinestésica e sinestésica (movimento e percepção), vinha trazendo uma potência de aproximação que nenhuma tela ainda é capaz de exercer. Sinestesia, cinestesia, toque, suor, pele e movimento - tudo que eleva a chance de contágio. Tornou-se privilégio, poder estarmos juntos sem a tela e sem medo. Se o avanço de governos autoritários já ameaçavam os espaços comuns e sensíveis das artes, com a chegada do novo coronavírus, amplifica-se o avanço da cultura imunitária e de falsa segurança, a partir de regulações e contornos fascistas em nossa vida. Apesar da grande desigualdade social que se apresenta, do genocídio em curso no Brasil e no mundo, estamos todos (os que podemos) solicitados a permanecer em casa. Sem o cinema, sem os teatros, sem as danças, sem os shows de música. Isolados para preservar os que a gente ama, a
própria vida mas principalmente a vida de quem venha a precisar do sistema de saúde funcionando. Também foram fechadas escolas, universidades e comércio. Só os serviços considerados essenciais estão abertos. Ainda assim, muita gente circula nas ruas das cidades, alguns por necessidade, outros por ignorância ou negacionismo. Colocamonos em quarentena, por orientação e políticas de governos e órgãos de regulamentação de profissões, que tentam proteger o sistema de saúde prestes a colapsar, pela velocidade de propagação do vírus. Adiamos tudo que seja considerado “não-essencial” - incluindo um dos nossos mais importantes rituais de partilha: o funeral. Mas e a arte? É um serviço essencial? O momento que vivemos agora, de estado de emergência frente à pandemia do novo coronavírus, pode ser também pensado como um grande laboratório social, de situações de novas configurações para políticas do corpo e para as artes da presença? Como serão as partilhas sensíveis em tempos pandêmicos? As artes da presença podem ser pensadas como partilhas do sensível (Rancière, 2005) ao se apresentarem como promessa de espaço comum, de encontro, de ritual. Isso se dá em função da arte ser algo frágil e não produtivo, e pertencer a um tempo-espaço próprio; e porque define uma experiência sensível desconectada das condições normais da experiência e das hierarquias que a estruturam. Mas o que seriam as condições normais agora, numa pandemia? Um elemento fundamental da reflexão dessa partilha proposta por Rancière (2005) consiste na caracterização da arte como manifestação coletiva, e não como categoria separada da vida. A não separação da arte e da vida é elemento potencializador para a elaboração conceitual do que a gente pode chamar de artes da presença – a que exige estarmos juntos e presentes. Jogando,
criando, imaginando. Esta concepção entende que um sistema de evidências sensíveis revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Isto é, compartilhamos um comum e temos nisso partes exclusivas: estas divisões partem-se ainda em divisões de tempos, espaços e tipos de atividades sensíveis, como numa trama de um tecido (ou de muitas telas em dispositivos eletrônicos). As práticas artísticas são maneiras de fazer que agem nas maneiras de ser e nas formas de visibilidade do ser/fazer. Nesse sentido político, a arte tem a capacidade de criar novas formas cosmopolíticas (Stengers, 2001) de contato entre os seres, por sua presença provisória, efêmera, mutante, como Rancière (2010) caracterizou o “regime estético” das artes. Esse regime opera para além das velhas questões do belo ou do sublime; nele a arte é responsável pela ativação de “partições do sensível, do dizível, do visível e do invisível”, que, por seu lado, ativam “novos modos coletivos de enunciação” e de percepção, que, por sua vez e consequentemente, criam insuspeitados vetores de subjetivação e de novos modos de vida. Novos modos pandêmicos. Grande parte da arte que consumimos confinados vem das plataformas de difusão da internet e dos dispositivos que a transmitem. As denominadas lives que colocam artistas em suas casas, cantando, dançando, pintando e às vezes apenas conversando sobre seus trabalhos e processos. Lives para adultos e crianças. Lives de artistas e professores (já que as aulas podem ser consideradas exercícios e arte de presença). Outras tantas ações acontecem nas janelas ou nas varandas dos prédios, em espaços vazios, e são difundidas pela internet, que apreciamos do lado de dentro do confinamento. É possível ver quantas pessoas estão juntas naquela “sala”, na transmissão sabemos que não estamos sozinhos.
O artista pode ver também o número dos que o assistem. Podemos comentar, aplaudir e interagir com emojis. Tudo limpo, seguro e livre de vírus. Ao encerrar seu tempo de transmissão, o artista se despede e voltamos para o interior da casa da qual nunca saímos. A experiência sensível se deu, mas não há quem abraçar, quem olhar, quem ouvir. Que mundo podemos imaginar separados, no meio de um apocalipse pandêmico? Ou quando poderemos novamente partilhar sensibilidades e imaginações juntos? Circula a imagem de uma planta para uma nova possibilidade de teatro, desenhado pelo cenógrafo Boris Dambly. Nela, uma artista performa e se encontra no meio de um círculo de cadeiras separadas em duplas por paredes protetoras. Uma espécie de panóptico da cena. O palco italiano, como sempre conhecemos, deixará de existir?
É no palco, na arena, no picadeiro ou mesmo em espaços “alternativos”, que os artistas das artes da presença, nos colocam, a partir dos seus próprios corpos em cena, em uma partilha sensível, que é também cinestésica. O termo cinestesia é utilizado e situado em epistemologias distintas
(Bergantini, 2019). Como afirmam Donati e Roble (2013), a referência à cinestesia é “recorrente em pesquisas neuromusculares, referindo-se fundamentalmente a uma percepção do corpo” pela própria pessoa que se move, sendo melhor percebida e observável em estudos de lesões ou deficiências neuromusculares (Simner, 2013) e nos estudos sobre percepção na performance e na dança (Godard, 2002; Suquet, 2008; Foster, 2011). Já o conceito de sinestesia (que é outro) também aparece no campo da Filosofia, mais especificamente nos estudos da estética, e é relacionado aos estudos de percepção (Bachelard, 2001; Deleuze & Guattari, 2010). Os artistas da cena, bailarinos, atores, cantores, acrobatas movem esses dois conceitos: desenvolvem uma atitude singular em relação ao corpo, ao peso e à gravidade mesmo no simples ato de erguer uma mão, direcionar um gesto, falar ou mover-se no espaço. Eles nos contam sobre o que é ser humano, o que é pode um corpo. Nos ajudam a perceber e a imaginar. Contam e cantam nossas dores, nossas belezas e nossas loucuras. Hubert Godard (2002) chamou isso de prémovimento, isto é, a capacidade que está instaurada na memória das musculaturas profundas, tônico-gravitacionais, e que intervêm na configuração da expressividade do gesto. A memória está inscrita “[…] não nos circuitos nervosos, mas na modelagem plástica dos tecidos que geram a organização tensional do corpo” (Godard, 1993 apud Suquet, 2008, p. 529). Na tentativa de analisar a relação do intérprete da cena com seu espectador, Godard (2002) formula a noção de “empatia cinestésica” ou de “contágio gravitacional” (o autor referiu-se especificamente à dança, mas podemos ampliar esse pensamento para o teatro, a música, a performance e o circo). Quando assistimos a uma “arte viva”, somos, de certa forma, transportados àquela maneira de gerir os esforços aplicada pelos intérpretes, suas
relações de organização do movimento em relação à ação da gravidade, em relação ao espaço. Alguns artistas apostam especificamente na evidência dessa manifestação, pretendendo: “[...] rememorar como possibilidade de se tornar presente, interferindo na historicidade do próprio corpo. Reinventar-se na comunhão dos corpos, dialogando por meio do tato, ou, partilhando a gestão gravitacional nas danças de contato. Conceber a criação como ato relacional. Sublinhar a propriocepção manifesta no ato dançante convidando o espectador a sentir o próprio corpo” (Suquet, 2008, p.514). Será que conseguiremos ainda atingir essa historicidade do próprio corpo a partir de uma live? Conseguimos viver a empatia cinestésica (com c) no celular ou no tablet? A cinestesia, pensada a partir do ato-perceptivo, é definida como a forma que percebemos e sentimos nossos corpos e, por consequência, como percebemos e sentimos o seu movimento e o que se move ao nosso redor. A empatia é uma possibilidade de decifrar essa percepção ou, como argumenta Susan Foster (2011), a empatia consiste no ato de proporcionar também para quem assiste as sensações cinestésicas dos artistas, as imagens que sintetizam suas experiências física e emocional. O termo “empatia cinestésica” busca explicar a conexão entre artista e público, que depende da história de quem faz e assiste e também das tecnologias presentes no momento de construir a experiência cênica. A experiência cinestésica vem da intenção, do desejo de compartilhar o sensível. Que sensível podemos partilhar no contexto pandêmico? Para Deleuze e Guattari (2010), apenas um atoperceptivo – um modo não habitual de olhar –
poderia disparar a derrubada do prático-inerte através do reconhecimento de um grupo com as mesmas experiências materiais e subjetivas. A partir dessa experiência perceptiva, mas também e principalmente – cinestésica, far-se-ia a base da liquidação da serialidade e sua substituição pela comunidade. A realidade incluiria, então, projetos compartilhados, como o ato de assistir a um espetáculo ou obra de arte cênica. É crucial entender que a pele, o corpo e seus micromovimentos nos fazem perceber o mundo. Imaginar e conseguir lembrar é diferente da letalidade da acumulação, da financeirização e do desperdício; isso, pensado em termos cênicos, fica evidente. As lives, ou a arte consumida sem a partilha e o ritual, podem nos enviar para esse formato de acúmulo, da ausência e da espetacularização e mercantilização da arte da presença, via dispositivo. Algo como uma nova sociedade do espetáculo da grande rede, em alusão às críticas de Guy Debord (1997) que enfatizava o vínculo entre as palavras comunicação e comunidade. Comunicação aqui é entendida não como a transmissão de mensagens, mas como ethos de compartilhamento (Crary, 2014, p. 129). Sem o corpo, nos resta uma experiência perceptiva homogênea, segundo Bernard Stiegler (apud Crary, 2014). Stiegler trata especificamente dos objetos temporais produzidos em massa, como filmes, propagandas e videoclipes e entende a internet como um ponto de virada decisivo (o marco para ele é 1992) no impacto da difusão e proliferação desses produtos. Com isso, houve uma padronização da experiência perceptiva em larga escala, implicando em perda da identidade e singularidade subjetivas, também conduzindo para um “desaparecimento desastroso da participação e criatividade individuais na construção dos símbolos que trocamos e compartilhamos entre nós” (apud Crary, 2014, p. 59). Essa noção, tira o tom
otimista em relação às revoluções de comunicação dos anos 1990. Os dispositivos tecnológicos que surgiram nos anos 1990, incluindo a internet, abriram caminho para uma era hiperindustrial, na qual a lógica da produção em massa se alinhou às técnicas e se aliou à distribuição e à subjetivação em escala planetária. Agora incluindo as notícias sobre cada morte, cada contaminado, cada dor. Acompanhamos, além das lives e da imensa oferta de produção artística na grande rede, a pandemia se alastrando e paralisando o mundo que conhecíamos. Esse argumento nos leva a pensar também nas experiências estéticas individuais (o que inclui as cinestésicas) como produtos a serem consumidos em larga escala, a partir de situações de isolamento e segregação. O que faz o artista da presença sem seu público? Ou, como cultivar a arte da presença sem a presença? Dessa forma, cabe questionar: o teatro, ou as artes da cena, conteriam a potência do encontro, do movimento, mesmo criando a ilusão do espetáculo em uma experiência mediada por um dispositivo? Ainda conseguiremos fazer as “artes vivas” em meio à tantas mortes? Ou quando poderemos, novamente ir ao teatro sem medo? Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, pp 48-56. CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Luiz B. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. DONATI, Gabriela; ROBLE, Odilon. “O Kung Fu
como experiência cinestésica para bailarinos contemporâneos”. ENGRUPEDança, v.4, 2013, pp. 338343. GODARD, Hubert. “Gesto e percepção”. Tradução de Silvia Soter. In: PEREIRA, R; SOTER, S. (Orgs.). Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2002, pp. 11-35. FOSTER, Susan. “Choreographing Empathy: Kinesthesia”. In: Performance. New York: Routledge, 2011. SIMNER, Julia; HUBARD, Edward (orgs.). Oxford handbook of synesthesia. New York: Oxford University Press, 2013, pp. 609-630. SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção. In: História do corpo. 3. As mutações do olhar. O século XX. Vol. 3. Petrópolis: Vozes, 2008. STENGERS, Isabelle. Cosmopolitiques I. Paris: La Découverte, 2001. Marina Guzzo é professora Adjunta da Unifesp no Campus Baixada Santista, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte e artista-coordenadora do Núcleo Indisciplinar de Dança – N(i)D.