Pandemia Crítica 063 - Protocolo de descarte do lixo, contra-colonialidade(S) e o dia seguinte.

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protocolo de descarte do lixo, contra-colonialidade(S) e o dia seguinte. Fátima Lima


Assisto indignada — porque incrédula não é possível... há muito crer ou não crer deixou de ser parâmetro — à reportagem que mostra famílias ricas de Belém, no Estado do Pará, escapando do colapso dos hospitais em jatinhos de luxo equipados com Unidades de Tratamento Intensivo. Destino: Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital SírioLibanês, todos em São Paulo. As cenas deixam visíveis protocolos de cuidado em saúde pouco ou quase nunca vistos nas notícias corriqueiras que transbordam por noticiários. Um dos ricos de Belém não perdeu a oportunidade de fazer uma filmagem, postar na rede WhatsApp e justificar: “OI GENTE! ESTAMOS EMBARCANDO AGORA DE BELÉM PARA SÃO PAULO. (...) ESTAMOS ENTRANDO NA UTI AEROMÉDICA”.1 Há dias as notícias que me chegam da região norte desconfortam o corpo. Ligo para uma grande amiga (psicóloga, negra, militante) que reside em Belém. Conversamos sobre como temos enfrentado o cotidiano pandêmico... Aprendemos, e foi com a militância das mulheres negras, que autocuidado é uma prática, antes de tudo, coletiva. No meio de nossas conversas, minha amiga relata, entre tantas coisas, sobre o protocolo para descartar o lixo em um condomínio na região metropolitana de Belém. Falo da tal reportagem dos ricos em fuga... Ela me diz: “um deles é dono do supermercado aqui próximo”. Um condomínio na região metropolitana de Belém, o protocolo de descarte do lixo, o supermercado, o dono do supermercado e sua família deixando (às pressas) Belém em jatinho de luxo equipado com UTIs. Penso: o vírus realmente ultrapassou fronteiras, seu potencial é o de atingir a qualquer uma/um, sua velocidade vai dos grandes 1 Disponível em: https://epoca.globo.com/sociedade/como-os-ricos-debelem-estao-enfrentando-covid-19-24415881. Acesso em 17/05/2020.


aglomerados às pequenas cercanias, dos complexos urbanos às comunidades indígenas, mas, como bem diz Achille Mbembe2, há uma redistribuição desigual da vulnerabilidade. A vulnerabilidade que se produz diante do vírus Sars-Cov2 não se dá de forma igual e as respostas e possibilidades de reagir a ela muito menos. A precariedade da vida se tornou evidente em escala planetária, mas não podemos perder de vista, como tão pertinentemente colocou a filósofa estadunidense Judith Butler3, que nem todas as vidas são dignas de serem lamentadas e, muito mais do que isso, porque mesmo que a Covid19 tenha tornado visível a precariedade da vida em escala planetária “(...) apenas alguns terão esse acesso e outros serão abandonados a uma precariedade continuada e intensificada. A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós, humanos, certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo” (Butler, 2020, s/p)4. A Bio-necropolítica, o necropoder e uma necroeconomia que atravessam agudamente certos corpos-subjetividades têm muito a nos dizer, principalmente a nós que somos atravessados por uma colonialidade atualizada e reatualizada a todo instante. Com sabedoria ancestral, Ailton Krenak5 anuncia: “Nós costumamos debater a colonização numa perspectiva pós-colonial. A colonização é, é aqui e agora. Pensar que nós estamos discutindo práticas coloniais como alguma coisa pretérita, que já foi e agora nós só estamos limpando, é uma brincadeira”. 2 Achille Mbembe. O Direito Universal à Respiração. Disponível em: https://n-1edicoes.org/textos-1. Acesso em 18/05/2020. 3 Judith Butler. O capitalismo tem seus limites. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acesso em18/05/2020. 4 Judith Butler, idem. 5 Ailton Krenak. Do Tempo. Disponível em: https://n-1edicoes.org/ textos-1. Acesso em 18/05/2020.


*** Belém, no estado do Pará, continua a me rondar. Dessa vez, infelizmente, não é pelos seus cheiros e gostos, pela força dos rios que a atravessam, da caudalosa Baía do Guajará numa tarde ensolarada no mercado municipal Ver-o-Peso. Belém estampa a raiva: o prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, anuncia, em 06 de maio de 2020, numa transmissão ao vivo nas redes sociais, que as atividades das empregadas domésticas são essenciais na pandemia do coronavírus. Penso ‘poderia ter sido em qualquer lugar nesses brasis’. Essencial: substantivo masculino, aquilo que é imprescindível, indispensável, necessário. Do que não se pode prescindir quando o trabalho das empregadas domésticas é colocado dentro do rol de serviços essenciais em meio ao enfrentamento de uma pandemia? Em sua maioria esmagadora, trabalhadores domésticos são mulheres, e mulheres pobres e negras, mulheres negras e pobres. Aprendi, e foi com o Movimento Negro e com a intelectualidade negra, a não ficar discutindo se é classe ou raça, se é raça ou classe, ou o que determina o quê. Muitas trabalhadoras domésticas são mães, chefiam famílias, zelam pelas suas casas. O protocolo ‘ficar em casa’, aderir ao isolamento social, só sair realmente para fazer o essencial (principalmente adquirir alimentos), deixar os sapatos do lado de fora ao entrar ou separar logo na entrada de casa uma área demarcada denominada como suja, trocar a roupa assim que chegar da rua, lavar e/ou higienizar tudo que chega do supermercado, das verduras e frutas, passando pelo packet de leite e pela embalagem de papel da farinha de trigo, descartar o lixo. — O protocolo ensina sobre o novo lixo contaminante: as máscaras de proteção, que devem ser descartadas em sacos individuais com um papel grampeado escrito: MATERIAL CONTAMINANTE. Para quem é esse


protocolo? O que dele, que parece ser a nossa responsabilidade frente a um cuidado conosco e com os outros, é atributo das empregadas domésticas quando consideradas serviços essenciais? O vírus veio para mostrar que somos todas/os iguais perante à possibilidade da morte? É isso mesmo? Do que não se pode prescindir quando, de forma natural, alguém anuncia o trabalho das empregadas domésticas como essenciais? Do que não se pode prescindir é da categorização e hierarquização colonial que têm no racial o elemento modelador dos processos classificatórios instituintes de toda uma condição servil, alimentada por séculos pelas veias escravocratas. Há alguém que, inferiorizado e subalternizado, tem sempre que te servir. E, é claro, é impossível não lançar mão de uma lente epistemometodológica interseccional e tomar esse acontecimento também pela perspectiva das relações de gênero e, antes de tudo, das relações entre raça e gênero, um racismo genderizado — como nos diz Grada Kilomba em Memórias da Plantação — episódios de racismo cotidiano6, que colocam as mulheres negras e racializadas em um lugar, a priori, do servir. Temos aprendido de forma dura e dolorosa com as reflexões das intelectuais negras estadunidenses, passando por bell hooks, Angela Davis, Patrícia Hill Collins, Kimberlé Crenshaw, Toni Morrisson, entre tantas outras, temos aprendido com as chicanas Glória Anzaldúa, Chela Sandoval, Cherríe Moraga, temos aprendido com o pensamento de inúmeras militantes afrolatinas e indígenas, essas ameríndias, como nos ensinou Lélia Gonzalez, temos aprendido com Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, com inúmeras intelectuais-militantes em contextos brasileiros, sobre a violência da 6 Grada Kilomba. Memórias da Plantação- Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.


fantasia colonial, que insiste em colocar corpossubjetividades de mulheres negras em lugares de subalternização trazendo a atemporalidade dessas experiências em que passado-presente-futuro só pode ser entendido por uma flecha de violência que atravessa o tempo reatualizada pelos indizíveis racismos estruturais, institucionais e cotidianos. Mas é justamente a tomada de consciência, a experimentação epidérmica racial da possibilidade de subalternização que tem colocado as mulheres negras, racializadas, dos campos, florestas, afrolatinas em respostas ativas através de ações que vão desde tomadas individuais a processos coletivos de acolhimento, de re-organização e de constituição de processos de re-existências viscerais, movimentos de contra-colonialidade(s). Nesse momento, centenas delas se espalham pela América Latina através de inúmeros coletivos e grupos que assumem de uma perspectiva racial e genderizada o enfrentamento à pandemia da Covid-19. Foi Audre Lorde7 que me ensinou que a raiva pode ser pedagógica. *** 18 de maio de 2020. Penso que deve ser mais ou menos o começo da décima semana em que me encontro em isolamento social na cidade do Rio de Janeiro. Acordamos com mais uma operação policial nas favelas e comunidades. Hoje foi no morro do Vidigal, Zona Sul. Sexta-feira foi no Complexo do Alemão, Zona Norte, e treze pessoas foram executadas. Os relatos de moradores só reafirmam o que já sabemos: brutalidade, agressões e violações. Muitos tiros. Gritos. Mães bramem diante dos corpos de seus filhos mortos. A Polícia Militar se recusa a descer os corpos para a parte mais baixa 7 Audre Lorde. Os usos da raiva: as mulheres reagem ao racismo. In: Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.


da comunidade. Os moradores descem os corpos, carregando-os em pedaços de panos pelas ruas da comunidade. Não tem protocolo para esses corpos que figuram como o excedente e supranumerário. Se não fossem os poucos moradores que aparecem na imagem usando máscaras, nada ou quase nada ali lembraria que é tempo pandêmico do Sars-Cov2. Não tardou muito, logo após as primeiras confirmações de contaminação e óbito decorrente da COVID-19, e o Ministério da Saúde lançou um guia de “Manejo de Corpos em Contexto do Novo Coronavírus COVID-19”8 que, entre tantas recomendações, inclui: manipular o corpo o menos possível, embalar no local do óbito, identificar os corpos ao máximo possível (RG, CPF, nome da mãe etc.), assinalar marcas corporais, colocar em saco impermeável próprio, desinfetar com álcool a 70% ou outro saneante regularizado pela agência nacional de vigilância em saúde (ANVISA), etc... e “na chegada ao necrotério, alocar o corpo em compartimento refrigerado e sinalizado como COVID-19, agente biológico classe de risco 3.” Não tardou também para aparecerem nos noticiários uma série de reclamações frente ao protocolo do Ministério da Saúde, que teoricamente deveria ser para todos/as. Não tardou para que aparecessem corpos ao lado de pacientes em UTIs, corpos enterrados em covas coletivas uns sobre os outros ou até em covas fora dos cemitérios9. Entre os (im)protocoláveis que habitam as favelas, as comunidades e os espaços onde prevalece uma população pobre, negra e racializadas e os protocolos fragilizados e negligenciados de manejo 8 Disponível em: https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/marco/25/ manejo-corpos-coronavirus-versao1-25mar20-rev5.pdf . Acesso em 18/05/2020. 9 Ver: https://g1.globo.com/pe/petrolina-regiao/noticia/2020/05/06/ familia-de-jovem-morto-pela-covid-19-em-petrolina-reclama-dascondicoes-do-enterro-realizado-em-santa-maria-da-boa-vista.ghtml. Acesso em 18/05/2020.


e enterro de corpos suspeitos de Covid 19, há muito a dizer: a bio-necropolítica mais uma vez realoca esses corpos em necro-topografias. Mas, ali, nos necro-tópos eivados de colonialidade, as forças das resistências viscerais cotidianas persistem, enfrentando o tempo dos assassinos e as comunidades logo se organizaram, como sempre, para o enfrentamento à COVID-19. Vimos inúmeras ações surgirem rapidamente em diferentes favelas e periferias que, muito mais do que ações informativas e distribuições de cestas básicas, fazem valer uma agência cotidiana que toma em conta as complexidades e singularidades de cada lugar. Na favela de Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo a escola foi transformada em centro de acolhimento para as pessoas que testaram positivo para a Covid-19, cada rua passou a ter um gerente de saúde responsável por monitorar os moradores de sua área ‘adscrita’, capacitou-se moradores em primeiros socorros e foram criadas 60 bases de emergência. Isso é tecnologia que vem da base, do território, de uma consciência de comunidade, é tecnologia presente nos processos de lutas das comunidades negras, de campos e florestas, de lugares marcados pela pobreza e pela ausência dos privilégios de raça, de classe, de território. Não tive como não me lembrar do grande líder jamaicano panafricanista Marcus Garvey (1887-1940), ao criar o movimento Cruz Negra, inspirado no movimento da Cruz Vermelha, formado por centenas de enfermeiras negras (Black Cross Nurses) e voltado para o cuidado às comunidades negras que sofriam com as práticas racistas quando tentavam acessar os dispositivos de cuidados em saúde. A Cruz Negra teve um papel fundamental nas duas grandes guerras mundiais. Isso é contra-colonial, como tão bem nos ensina Antônio Bispo dos Santos – o Nêgo Bispo.


*** Como pensar o dia seguinte? Há um futuro por vir? E que futuro será esse? Há um novo normal? Para quem? Como será o mundo pós-Covid 19? Essas me parecem ser algumas das incertezas que atravessam inúmeras narrativas nesse tempo de agora, do instante, do fragmento de segundo que se esvai na leitura dessas linhas. Tenho aprendido com a militância e a intelectualidade negra que o tempo é marcado, antes de tudo, pela atemporalidade da violência racial que, como uma flecha, atravessa a tudo e a todos. Pensar o dia seguinte, tomada por este aprendizado, nos evoca a necessidade de encarar o passado como presente e de arrancar do futuro aquilo que já está nele depositado. Foi Silvia Cusiquanqui quem me apresentou um aforismo do povo Aimara que diz o seguinte “Quipnayra uñtasis sarnaqapxañani”, “olhando atrás e adiante podemos caminhar no presente futuro”. Cusicanqui nos diz “(...) que o passado está diante de nós. Isto é muito comum a muitas línguas indígenas. Há muitas línguas indígenas que concebem o passado como algo que tu vês pela frente; o futuro, no entanto, não o conheces e por isso está atrás, nas costas (...)10”. Ter o passado à nossa frente nos convoca, ética e politicamente, a perceber a colonialidade persistente marcada por assimetrias profundas que nos exigem pensar as complexidades do que significa atravessar a pandemia do SARSCOV2. Se há um dia seguinte, ele só será possível se conseguirmos re-inventar um outro sentido de comunidade. Precisamos, para isso, arrancar do futuro sob as nossas costas tudo aquilo que nos condena. Isso só será possível com uma política de reparação e de justiça étnico-racial e de gênero. 10 Silvia Cusicanqui. “Tenemos que producir pensamiento a partir de lo cotidiano”(Entrevista). Diario El Salto, 2019. Disponível em: < https://alicenews.ces.uc.pt/?lang=1&id=23864> Acesso em 18/05/2020.


Fátima Lima. Antropóloga. Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ/ Macaé. Professora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística AplicadaPIPGLA. Professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais/PPRER/CEFET/RJ. É colaboradora da ONG Casa das Pretas.


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