Pandemia Crítica 067 - I'm alive ou I'm a live?

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I'm alive ou I'm a live? Renan Marcondes


Em um breve vídeo do Instagram, vemos Caetano Veloso sendo convidado por sua esposa a fazer uma live. Tentando convencê-lo, ela cantarola sua conhecida música Nine out of ten: And I know that one day I must die/I’m alive (e eu sei que algum dia eu deverei morrer/estou vivo). Nitidamente preferindo não participar, o músico apenas repete sem cantar a frase: I’m alive, dando a impressão de que afirma que “é uma Live” (I’m a live). Sem querer, e devido ao amplo uso do termo em inglês mesmo aqui no Brasil, a afirmação de vida da música de 1972 é agora assombrada por seu oposto, revelando que há um espaço entre vidas e lives. Se as lives fornecem novas possibilidades de comunicação, também assombram nossos entendimentos prévios do mundo. No filme Ghost dance, onde o filósofo Jacques Derrida faz sua única aparição como ator ao interpretar um professor de filosofia, há uma cena na qual diz para uma aluna que os desenvolvimentos modernos na tecnologia e na comunicação, ao invés de diminuírem o reino dos fantasmas, acabam por aumentar seu poder de assombração. Para o filósofo há uma “estrutura fantasmática” inerente a técnicas de reprodução como o cinema e o telefone, que criam uma experiência na qual a presentificação de algo do corpo diante de nós (sua imagem, sua voz) se dá justamente a partir da ausência ou distância física. Falecido no ano de surgimento do Facebook e anos antes do Instagram aparecer, o filósofo não pôde acompanhar a emergência das lives: transmissões ao vivo que têm sido ferramenta central nessa época de pandemia, dando continuidade ao funcionamento de determinado circuito artístico e colaborando para a manutenção de artistas que fizeram da construção e exibição pública da imagem de si próprios parte de seu capital simbólico. Palestras, debates, exposições virtuais,


performances, visitas virtuais a ateliês ou danças na sala de casa estão mais presentes e acessíveis do que nunca, saltando continuamente aos olhos de qualquer um que possa pagar por um celular e um plano de internet (recurso aparentemente indispensável para a cadeia de recepção e produção da arte contemporânea). Nesse momento em que lemos por todo o lado sobre o peso da decisão “entre quem vive e quem morre”, parece-me urgente que quem produz e pensa imagens reflita sobre como lidar com esse regime algorítmico de imagens no qual um mesmo feed sobrepõe a divulgação de um talk live e a foto das covas abertas em Manaus, chamadas de trincheiras pela administração local. O que podemos, portanto, pensar sobre essa emergência das lives, de uma suposta vida artística que se prova em continuidade e funcionamento, quando a iminência da morte ronda nossos pensamentos, dividindo espaço imagético com esse mesmo tipo de conteúdo? Assim, se já tem sido levantada a importante questão sobre a real necessidade de produção artística nesse período, pergunto-me também sobre que tipo de conteúdo está sendo (inevitavelmente) produzido. A arte da performance, linguagem que me é especialmente cara e cuja dimensão do corpo ressurge nesse tempo de distanciamento social, sempre foi obcecada com a presença viva do corpo (seu “aqui e agora”, como diz Thierry de Duve)1. Essa que é solicitada ao mesmo tempo em que é desafiada, ao passo que teatros do mundo todo divulgam suas peças on-line e performances são vistas por streaming. Philip Auslander, um dos mais instigantes teóricos da performance, escreveu em 20022 sobre como nosso conceito de ao vivo 1 DE DUVE, Thierry. Performance here and now: Minimal art, a plea for a new genre of theatre. Open Letter, v. 5, p. 5-6, 1983. 2 AUSLANDER, Philip. Live from cyberspace: or, I was sitting at my computer this guy appeared he thought I was a bot. PAJ: A Journal of Performance and Art, v. 24, n. 1, p. 16-21, 2002.


sempre foi diretamente moldável pelas tecnologias de reprodução que nos circundam. Segundo ele, na língua inglesa o termo live (ao vivo) só aparece registado pelo livro anual da BBC em 1934, para tentar diferenciar o que era conteúdo sonoro previamente gravado e o que estava sendo transmitido ao vivo nas rádios. O surgimento do rádio, por não revelar a origem da emissão sonora, tornou necessário um termo que diferenciasse o momento de produção daquilo que era reproduzido. O argumento do autor, centrado nos atuais chatbots (programas de inteligência artificial que simulam conversas humanas) sustenta que, na simultaneidade temporal entre atividade e recepção pressuposta no “ao vivo”, essas inteligências artificiais performariam de forma tão vivaz quanto nós, pois desempenham sempre no presente, alterando a realidade de forma tão direta quanto nós (basta pensarmos, por exemplo, no papel dos bots nas últimas eleições presidenciais). O que a nova dimensão de vivacidade do bots não consegue ainda fazer, mesmo simulando um humano, é morrer diante de nós. Não que isso tenha de fato acontecido em alguma obra de performance. Mesmo que tematizada, a morte sempre pareceu uma fronteira intransponível, testada ou imaginada, mas apenas cruzada por falha ou erro. Porém, é justamente essa virtualidade da morte que as artes performativas sempre revelaram: ao assumir um compromisso mais radical com o momento presente, elas atestam que todo processo de documentação de nós mesmos é necessariamente um processo de objetificação de nossos corpos, da perda da única coisa que faz de um ser vivo um ser vivo: “seu tempo de vida único e irrepetível no tempo”, como coloca Boris Groys3 em um texto no qual o autor arrisca ser essa a definição da vida: ela pode ser documentada, mas não mostrada. 3 GROYS, Boris. Art in the Age of Biopolitics: From artwork to art documentation. Art Power, v. 2008, p. 53-65, 2002.


Nesse sentido, penso que nosso hábito crescente com esse tipo de vida reproduzível precisa significar também se habituar à morte. Se Andy Warhol parecia profetizar a possibilidade atual dos nossos quinze minutos de fama auto-promovidos era apenas porque, como Thierry de Duve coloca, ele equalizava essa fama às notícias jornalísticas que espetacularizavam desastres americanos diários. Sobre o artista, de Duve afirma que “não se torna uma câmera ou um gravador, sem levar em conta a existência de todas as máquinas, sobretudo as que matam: a cadeira elétrica e os túmulos em volantes dos acidentes de carro”4. Warhol, ao afirmar que uma imagem horrenda vista muitas vezes acaba por produzir nenhum efeito, parecia saber que o grande perigo da espetacularização da morte era justamente a impressão de que ela não faz parte da vida, só nos comovendo diretamente quando morrem quem foi considerado passível de luto. Como Judith Butler coloca, a produção de imagens da morte produzida e mantida por “poderosas formas de mídia” determina “aqueles por quem sentimos um apego urgente e irracional e aqueles cuja vida e morte simplesmente não nos afetam, ou que não consideramos vida”5. No segundo caso, ela se passa por algo distante, que podemos recusar ou ignorar como um produto indesejado. Frente a isso, o procedimento de Warhol era colocar em todas as imagens que pareciam vivas pela força do capital a violência “das máquinas que matam” e que era necessária para a produção das primeiras: o rosto de Jackie Kennedy, por exemplo, estava submetido ou mesmo processo serial que a lata de sopa. A vida humana em Warhol, com as ferramentas de produção que o artista tinha na época, era sempre enamorada da morte. Essa, por 4 DE DUVE, Thierry. Andy Warhol, or The Machine Perfected. Revista October, vol. 48 (primavera 1989). pp. 3-14. 5 BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015. Pp. 80-81.


sua vez, estava sempre colocada como potencialmente virtual dentro da vida, assombrando-a sem ser feita espetáculo (como fica especialmente evidente em um vídeo como Sleep, no qual John Giorno dorme, praticamente imóvel, durante cinco horas, fazendo do registro tanto uma vigília quanto um velamento do corpo). Reproduzir a si mesmo, coisificando-se, não seria também um modo de trabalhar (com) a morte sem a espetacularização que ronda suas imagens recorrentes nas mídias em geral? Não é essa uma das tônicas principais de artistas como a estadunidense Francesca Woodman ao se amalgamar na arquitetura da casa, o japonês On Kawara ao mandar para curadores telegramas escritos “eu ainda estou vivo”, a cubana Ana Mendieta ao fazer do solo suas covas, a brasileira Flávia Pinheiro colocando-se em meio aos detritos ou a tailandesa Araya Rasdjarmrearnsook a ministrar aulas para cadáveres? É fato que ser visível e ter autonomia sobre sua própria visibilidade tornou-se imperativo para artistas e agentes do campo cultural. Mas há, além disso, nas lives, a possibilidade de ser lembrado mais um pouco, de superar a morte quando ela se avizinha sem pudores, provando para os outros não apenas que ainda estamos vivos, mas que seguimos criativos, produtores e pensantes porque fazemos da arte nosso “respiro”, como sugeriu um recente edital. Gostaria de imaginar, porém, como essas plataformas podem não apenas ser alimentadas por essa vida comprovada enquanto autônoma e dona de si (talvez enfim independente das galerias, dirão alguns!), mas podem também sem povoadas por algum tipo de assombro ou ruptura nesse mesmo circuito. Ao se transformarem do dia para a noite em ateliês e home-offices, os espaços domésticos e privados não precisam se revestir da pura positividade do mindfulness e do trabalho eficaz, mas podem também se deixar habitar por fantasmas, por ausências e espaços vazios, fazendo de sua momentânea dimensão


pública sintoma de que algo não vai bem e de que há um espaço contraditório entre lives que se acumulam e vidas que desaparecem. Pode estar aqui aberto um espaço para entender a morte como parte constituinte da vida e não como seu oposto, vendo na arte mais uma forma de se conciliar do que a morte do que de superá-la. Nessa perspectiva, talvez uma oposição central a se debater, no campo das imagens, não seja entre vida e morte, mas entre vida e sua reprodução (mesmo que live). Intuo que essa oposição não é um antagonismo, e sim uma assombração na qual toda transmissão live, quando atenta a esse problema, atesta ao mesmo tempo o desejo e a impossibilidade de sobreviver à morte, tornando-se imagem. Nessa história, a live diz à vida: “veja como eu sou parecida contigo”, ao passo que a segunda responde: “tudo o que me é próprio você esconde, principalmente a morte”. Lembro que de Duve afirmou, sobre a obra de Warhol, que “talvez, para que o trabalho perdurasse, o homem tivesse que morrer”6. Se estivermos de fato reconsiderando o que significa viver nesses tempos, seria possível alterar os termos: talvez para que o humano perdure, o trabalho precise morrer. Ou ao menos pensar o trabalho artístico não como prova de eficácia e progresso, e sim como um habituar-se aos possíveis fins do corpo ao som de Caetano: And I know that one day I must die... Renan Marcondes é artista e pesquisador. Doutorando em Artes Cênicas pela ECA USP, com pesquisa sobre procedimentos de desparecimento nas artes performativas. + infos: renanmarcondes.com

6 Op. cit. p. 14


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