o que está acontecendo no Brasil é um genocídio Eduardo Viveiros de Castro Tradução Francisco Freitas
Entrevista publicada em Philosophie Magazine, em 19/05/2020.
Enquanto o Brasil está se tornando um dos principais focos da pandemia de Covid-19, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro dá o sinal de alerta sobre os efeitos devastadores da política do presidente Jair Bolsonaro. Ele também nos explica como a pandemia faz de nós todos “índios”, expropriados de nossas terras e de nossos corpos. Você está confinado há dois meses no interior do Rio de Janeiro, onde costuma lecionar na Universidade Federal. Qual é a situação no Brasil? Eduardo Viveiros de Castro: A situação é catastrófica e piora a cada dia. Atingido mais tardiamente que os outros países, o Brasil está prestes a se tornar o epicentro da pandemia. Oficialmente, haveria até o momento 250.000 infectados e 17.000 mortos1. Mas, de acordo com vários estudos independentes, haveria de 2 a 3,5 milhões de infectados, uma das taxas de contágio mais elevadas do mundo, e o número de vítimas poderia se elevar a quase 200.000 daqui a alguns meses. E, apesar disso, o presidente da República persiste em sua atitude de negação, opondo-se às medidas de distanciamento físico e de confinamento adotadas por prefeitos e governadores, e incitando seus partidários a questioná-las. Tudo isso enquanto os profissionais de saúde se esforçam de maneira heroica para lutar contra a epidemia. A situação é então realmente assustadora. O que está acontecendo no Brasil, 1 As cifras atualizadas no dia 27 de maio são: 411.821 infectados e 25.598 mortos [NE]
e eu peso minhas palavras, é um genocídio: um genocídio por negligência ou incompetência no caso de alguns dirigentes, mas um genocídio absolutamente deliberado no caso de outros, entre os quais incluo o presidente, vários de seus ministros e certos setores do grande empresariado agroindustrial. O governo de Bolsonaro ficaria muito contente de poder se livrar não apenas dos povos indígenas – que resistem aos seus projetos de exploração da Amazônia – mas também de uma parte da população pobre – aquela que não terá mais acesso aos cuidados quando o sistema de saúde saturar. A epidemia terá o mesmo efeito que uma limpeza étnica entre aqueles que dependem de assistência pública. É terrível dizer, mas, no Brasil, o Estado é o principal aliado da pandemia. Sem contar a crise econômica, com nossa moeda, o Real, que vai afundando. Estamos numa “tempestade perfeita”: uma pandemia, uma crise econômica mundial, dirigentes políticos monstruosos. Os ministros da saúde foram demitidos ou renunciaram. E o presidente Jair Bolsonaro chegou até a falar de uma “conspiração internacional para usar a pandemia e instaurar o comunismo” ... Se ao menos pudéssemos rir disso, mas não temos nem essa possibilidade, de tão trágica que é a situação. Bolsonaro é um homem à beira da psicopatia, um perigo público. Veja seu mentor, o ideólogo Olavo de Carvalho, um personagem fétido, misto de astrólogo, “filósofo”, guru terraplanista e pregador anticomunista alucinado, que vive nos Estados Unidos, em Virgínia, de onde faz comentários delirantes, cheios de obscenidades, para milhões de seguidores no YouTube. É uma espécie de sub-Rasputin brasileiro.
Você mencionou a resistência de prefeitos e governadores de Estado. Como isso se manifesta? As escolas primárias municipais, as escolas secundárias e universidades estaduais foram fechadas. Até as universidades federais fecharam por decisão de seus reitores, em oposição à sua autoridade tutora. O Brasil tem um sistema político federativo. Mas é a primeira vez que surge um conflito dessa intensidade entre o governo central e os outros níveis de poder, em particular sobre o confinamento. Dado o desmonte do sistema público de saúde brasileiro (o SUS, uma gigantesca conquista popular) e a falta de testes e equipamentos, esta é a única maneira de retardar a expansão da epidemia. E o que vemos? Um governo central que se volta contra toda a população — inclusive contra a minoria de fanáticos que o apoiam (nominalmente, cerca de 25% dos cidadãos) —, e que tenta forçar as pessoas a retornar ao trabalho, mediante informações falsas sobre medicamentos milagrosos, ameaças, decretos (ainda em elaboração)... E nas ruas do Rio, de São Paulo e de outras capitais, seguidores de Bolsonaro desfilam em carros de luxo para dissuadir as pessoas (sobretudo, é claro, aquelas que não possuem carros de luxo) e incentivá-las a voltar ao trabalho... Estamos em uma atmosfera de guerra civil em gestação, com discursos racistas cada vez mais assumidos. E tudo isso é feito com o apoio do grande capital – sem o qual nada é feito no Brasil. Qual é a posição das forças armadas? Esse é o terceiro elemento da equação. Elas gozam de um grande prestígio aqui e sustentam Bolsonaro. Este ex-capitão medíocre e ressentido lhes deu um lugar de honra em seu governo, que conta com mais militares do que jamais contou nenhum governo, inclusive durante a ditadura. Os militares
apoiam as instituições mais do que o personagem imprevisível de Bolsonaro, mas elas apreciam quando ele celebra o período negro da ditadura militar e quando homenageia torturadores notórios. O Brasil não acertou suas contas com o passado, através de grandes processos “nuremberguianos”, como, por exemplo, ocorreu na Argentina. Estamos sofrendo as consequências dessa profunda covardia política, que nos impediu de acertar nossas contas com o passado. E os índios da Amazônia que você visitou várias vezes? Dizem que estão particularmente expostos à epidemia por causa de um sistema imunológico menos acostumado a epidemias? Historicamente, os índios são “especialistas” em epidemia, já que têm sido dizimados desde a chegada dos colonizadores europeus. Hoje, é preciso distinguir os grupos indígenas isolados daqueles que têm contato regular com a sociedade circundante. Estes últimos têm quase a mesma resistência imunológica que os não-indígenas, ou seja, são tão vulneráveis quanto nós ao Covid-19. Por outro lado, as populações isoladas são muito mais vulneráveis, por não terem resistência a várias doenças de origem “branca”. Oficialmente, dos 300 povos oficialmente reconhecidos como indígenas, 71, um pouco menos de 25%, já foram afetados. E haveria 1.350 casos de indivíduos indígenas já contaminados (isso para os indígenas residentes em áreas não urbanas), incluindo 147 mortos. Mas aqui também os números são certamente subestimados. O Amazonas é o terceiro Estado mais afetado pela pandemia, ainda que possua apenas um décimo da população de São Paulo, o Estado mais afetado – os outros mais afetados são Rio de Janeiro e Ceará, este último no nordeste do país. O Amazonas está sendo devastado. E não apenas as cidades da Amazônia. A doença se espalha também na
floresta. Com o confinamento, as ONGs que protegiam esses territórios foram impedidas. Regiões inteiras estão sendo invadidas por garimpeiros, madeireiros... e pelos missionários evangélicos, a quem Bolsonaro deu carta branca para se infiltrarem nas terras indígenas. Esse presidente pavoroso está tentando aprovar decretos para legalizar a apropriação ilegal de terras. Um ditado brasileiro diz que o dono da terra na Amazônia é quem a desmata. Até agora, essa é uma prática corrente mas ilegal – o que não significava muito em termos práticos, mas ainda assim... O governo está em vias de legalizar um processo de autodeclaração no qual bastaria aos invasores se declararem proprietários das terras. O Brasil está caindo na anomia, na desintegração social. Uma campanha de extermínio cultural contra os indígenas está em curso já há muito tempo. Tudo se passa como se o Covid-19 tivesse aberto agora a perspectiva de um extermínio físico definitivo. No mundo inteiro, esperamos que o Estado proteja as populações, mas ao mesmo tempo criticamos o controle que exerce sobre elas. Essa dificuldade parece redobrada no caso dos índios. Por seus costumes políticos, são sociedades “contra o Estado”, para retomar a fórmula do antropólogo Pierre Clastres. Mas elas são forçadas hoje a apelar ao Estado para proteger suas terras e seus corpos contra o Covid... Eu diria que a contradição está no próprio Estado, e não nos índios. Façamos uma analogia. Imaginese em uma situação em que você deve reclamar, junto à instância que você paga para protegê-lo, dizendo que é ela mesma que o está atacando. Seria como enfrentar a máfia, não? Bem, é exatamente isso que está acontecendo hoje com o Estado brasileiro em relação não apenas aos povos indígenas, mas a todos nós. Como cidadãos, devemos nos proteger
contra essa máquina de poder cuja “política sanitária” é ela própria uma ameaça sanitária, que coloca em perigo real nossa sobrevivência. E para os povos indígenas é ainda pior. O Estado se esforça há muito tempo para separá-los de suas terras e de seus corpos. E agora não faz nada para protegê-los da epidemia; ao contrário, incentiva aqueles que são uma ameaça direta para eles, como os garimpeiros. Então, a contradição pode ser superada? Talvez só por fora desse governo assassino. Hoje, no Brasil, face à negligência do Estado, alguns coletivos se organizam para se encarregar das tarefas sanitárias, do cumprimento das regras de confinamento, etc. Em vez de esperarem ser protegidos, protegem-se a si mesmos. Para responder à questão de fundo, acredito que é preciso fazer uma óbvia distinção entre o aparelho de Estado, que pode ser (que sempre é, sejamos honestos) captado por interesses e facções particulares, e a coisa pública, aquilo que alguns chamam de “o comum”, e que os indivíduos podem e devem se reapropriar. Você escreveu um ensaio com a filósofa Déborah Danowski, “Do universo fechado ao mundo infinito” (Éditions Dehors), sobre a transformação de nossas categorias de pensamento na época da crise ecológica e do Antropoceno. Você diria que a epidemia de Covid-19 é um evento do Antropoceno? Todos os eventos que ocorrem em nosso mundo pertencem doravante ao Antropoceno, já que ele é a era na qual vivemos. Mas você me pergunta se a epidemia está causalmente vinculada aos eventos que desencadearam o Antropoceno. E, de meu ponto de vista, a resposta é igualmente positiva. Porque o desmatamento, o aumento das trocas transcontinentais, a circulação de homens no globo, a disseminação de monoculturas (vegetais e animais), a intensificação das relações
entre a espécie humana e as outras espécies, sobretudo selvagens, cujo habitat é invadido pelos humanos... tudo isso cria, com efeito, novas gerações de pandemia. Aos meus olhos, a crise do Covid-19 é uma amostra da grande catástrofe climática que nos espera, um breve resumo do risco do que pode acontecer nas próximas décadas. Ela nos deixa entrever os efeitos múltiplos do Antropoceno sobre a vida. O Antropoceno é um fato social e ecológico “total”, como diria Marcel Mauss. Ele produz eventos “totais”. Você propôs com o “perspectivismo” um exercício mental inédito que consiste em tentar adotar a perspectiva de outras culturas, especialmente a indígena, sobre a nossa. Qual seria uma abordagem perspectivista dessa pandemia? Não faz sentido perguntar se existe uma “abordagem perspectivista” da Covid-19. Mas o que é certo é que ela põe em questão as grandes divisões entre humano/não-humano, natureza/cultura, vida/nãovida, que são as nossas. O vírus está na interface da vida e da não-vida. E, ao seu contato, percebemos que nós mesmos somos atravessados por interações essenciais com outros seres que nos compõem e nos decompõem, que fazem e desfazem nossos corpos. No passado, os índios do Brasil quase desapareceram sob o impacto das pandemias que os colonizadores europeus lhes transmitiram. Existe uma lição a ser aprendida com essa experiência trágica do passado, para eles e para nós hoje? Em Saudades do Brasil, Claude Lévi-Strauss afirmava que estávamos nos tornando índios: “Expropriados de nossa cultura, despojados dos valores que prezávamos – pureza da água e do ar, graças da natureza, diversidade de espécies animais
e vegetais –, todos nós índios agora, estamos fazendo conosco o que fizemos com eles.” É mais verdade do que nunca. Estamos experimentando, sob os efeitos de nossa própria ação, o que os índios viveram. Não vamos perder, como eles, 90% de nossa população, mas os efeitos serão profundos e duradouros. Eduardo Viveiros de Castro é antropólogo, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.