Moquecar (n)a pandemia Rafael Guimarães
Não houve aquele churrasco, mas poderia ter havido. Porque trata-se sempre de “assar uma carne”, o banquete do corpo do morto, dos mortos, a ambivalência, dizia Freud1 – entre a nostalgia e a culpabilidade – quando se trata de um humano, um ser de horda. Ninguém come gente, é primitivo, “coisa de índio”, mas se come animais não-humanos, para celebrar algo. Só em Wuhan, de onde saiu o “vírus chinês”, “lá se come de tudo, até morcego”. Xenofobia, racismo e machismo andam juntos. Sim, o churrasco aconteceu, porque domingo é dia de churrasco. Do jet sky, no lago Paranoá, sem máscara, o macho dono do churrasco encontra outros espécimes sobre uma lancha fazendo churrasco. Indignação de todos com essa “loucura” de vírus que acaba com a economia! Uma voz feminina diz que ele é “muito gente boa” ou algo assim, não tive estômago para rever o vídeo. Para estes humanos que ultrapassaram a primitividade de “viver como em zoológicos”, como outrora disse o macho líder, vivem os povos originários. Os humanos hegemônicos controlam a natureza, boiam sobre um lago, com máquinas. Na sua já reconhecida obra, Carol Adams2 faz um exame aprofundado, revisitando pesquisas anteriores, de como há uma relação presente entre especismo e machismo, em muitas sociedades, e denota como a atitude carnívora é compreendida como viril e acaba por naturalizar-se, utilizando, para isso, diversos argumentos, desde os 1 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 2 ADAMS, Carol. A política sexual da carne: uma teoria crítica feminista vegetariana. São Paulo: Alaúde, 2012.
nutricionais até os culturais. Em se tratando do momento atual, no Brasil de um macho onipotente no poder, nada mais adequado que convidar outros machos para “assar uma carne”. O churrasqueiro, viril, servindo a outros homens viris, afinal o que é melhor um macho reserva a outros machos, está aí a História da Política, da Ciência, das Artes para confirmar. Mas celebrar o que? Estamos em meio a uma pandemia de um vírus novo, o Covid-19, cujos resultados em termos de fatalidade não se conhece muito bem, uma tragédia anunciada em todo o mundo. O macho precisa reafirmar sua onipotência frente a uma ameaça e, ao celebrar o seu privilégio, nega os perigos da doença que se avizinha. Nada tem de preocupação efetivamente coletiva com a pluralidade do país, em seus diversos recortes de classe, raça, etnia, gênero, geração, orientação sexual, mas, ao contrário, a celebração é uma celebração do privilégio, o privilégio da hegemonia. A onipotência da hegemonia do cis-macho-brancoheterossexual é um ideal, um espelho. Tenho observado, nas minhas poucas saídas à rua para fazer o que é absolutamente essencial, famílias reunidas nas ruas. Não fiz um estudo estatístico, mas é evidente como os homens das famílias cisheteronormadas, em sua maioria, estão sem máscaras, ou com elas colocadas inadequadamente, enquanto mulheres e crianças as estão usando. O macho onipresente no poder repete comportamentos de enfrentamento ao fato de estarmos passando por este momento, e isso se vê no uso inadequado ou
não uso de máscara por parte do presidente: para ele (s), há muito que celebrar, tudo está como deveria estar, a hegemonia vence o jogo. O jogo é colonial, e a história de colonização das Américas vem demonstrando que a hegemonia pode (e deve), porque é dotada de uma inteligência muito superior ao sujeito dos povos originários de Abya Yala. Tal qual observa Karina Ochoa Muñoz3, ao analisar os postulados do Frei Francisco de Vitória, no século XVI, os direitos humanos modernos baseiam-se numa proposição colonial sobre quem é mais humano: a saber, homens brancos, europeus, pois índios/as, mulheres e crianças estariam no mesmo patamar de inteligência. A racionalidade é branca e masculina, nela não cabem diferenças. O genocídio sempre esteve em curso e os lugares democráticos do poder, ainda que nas antigas colônias, ocupando um lugar no sistema-mundo colonial moderno, nas palavras de Aníbal Quíjano4, seguiram, desde o momento efetivo da existência hegemônica das colônias até o desdobramento da colonialidade do poder, na institucionalização de Estados independentes, com operações genocidas, em alguma medida. O genocídio colonialista, como bem observa Ramón Grossfoguel5 teve os seus momentos de destruição de bibliotecas árabes na Andalucía, a queima das
3 MUÑOZ, Karina Ochoa. (Re)pensar el Derecho y la noción del sujeto indio(a) desde una mirada descolonial. Revista Internacional De Comunicación Y Desarrollo (RICD), 1(4). 4 QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. 5 GROSSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v.1 n. 1 Janeiro/Abril 2016.
bruxas na Ásia, a escravização de pessoas negras africanas para trabalho forçado nas Américas e o genocídio indígena. Este processo efetivamente elimina a vida das pessoas distintas do modelo hegemônico europeu branco, masculino (e eu adicionaria heterossexual, cisgênero, enquadrado em um corpo padrão e dentro de uma determinada faixa etária, produtiva ao trabalho) e também apaga seus saberes, tratando-se de epistemicídio. Isso envolve também especismo, já que o modo de criar animais e comê-los são transmitidos durante o processo colonizatório. Galinhas domésticas e bois foram trazidos às Américas pelos colonizadores europeus a partir de 1493, e foram introduzidas, assim como o cristianismo, a cisheteronormatividade, os vírus e o patriarcado colonial (como chama Julieta Paredes6, ao diferenciá-lo do patriarcado ancestral de Abya Yala) com a colonização. Isso não quer dizer que povos originários não se alimentavam de carne ou que animais não-humanos não fossem parte de rituais, mas a maneira de considerar a vida dos povos originários, o respeito à vida das plantas, dos animais não-humanos, em suma de toda a natureza, é da mesma ordem que a vida de animais humanos, como observa Ailton Krenak7 e Davi Kopenawa8, por exemplo. Me lembro muito bem quando, numa das aulas da saudosa professora Silvia Schmuziger de Carvalho, em 2004, em Araraquara, lideranças guaranis enfatizavam que não era possível, desde seu modo de existência, aprisionar 6 PAREDES, Julieta. Hilando fino desde el feminismo comunitário. La Paz: Mujeres Creando, 2010. 7 KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo. Sñao Paulo: Companhia das Letras, 2019. 8 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
galinhas para depois comê-las, corroborando com os achados históricos de Felipe Ferreira Valder Velden9 sobre a economia de trocas desde a introdução das galinhas domésticas na costa brasileira. ONGs, com “as melhores intenções”, permaneciam anos insistindo em ensiná-los a construir galinheiros! Jogo colonial que segue em todos os aspectos de nossa vida. Esta faceta do jogo colonial, de onipotência frente a uma doença, se recoloca, desde o modo de compreensão sobre a domesticação dos corpos de animais não-humanos. O racismo, o sexismo e o especismo andam juntos nessa direção: ao atribuir à Covid-19 uma nacionalidade se está racializando o vírus, desde um lugar geográfico racializado – amarelo, não branco – e atribuindo às suas práticas culturais – o consumo de animais silvestres, comportamento primitivo, segundo a hierarquia colonial-moderna, que introduziu animais domesticados para que fossem comidos – a responsabilidade pela disseminação do mal. Já é conhecida a história colonial que provoca epistemicídios e cria subjetividades coloniais correspondentes a regimes de verdade iniciados no século XV, o que, ao se repetir/se modificar geracionalmente, como observa Suely Rolnik10, constróe-se como uma versão “financeirizada, neoliberal e globalitária” nos dias atuais, de um inconsciente colonial-capitalístico. Este modo de produção atribui a práticas culturais nãoeuropeias a primitividade, e esta foi exatamente 9 VELDEN, Felipe Ferreira Vander. As galinhas incontáveis. Tupis, europeus e aves domésticas na conquista no Brasil. Journal de la Societé des Americanistes. 98-2, 2012. 10 ROLNIK; Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: N-1, 2018, p. 29.
uma das armas do colonizador para conquistar as Américas, e que adentrou, juntamente com as hierarquizações de gênero, raça e sexualidades, para a formação desta estrutura inconsciente. A hierarquização colonial é tão terrivelmente forte que, ao organizar uma publicação crítica sobre a pandemia da Covid-19, Pablo Amadeo e a ASPO Editorial, na Espanha, a intitularam “Sopa de Wuhan”, o que levou, em 01 de abril, um grupo de instituições, grupos de pesquisa e coletivos a publicarem um manifesto crítico à perspectiva racista do título e da arte da capa da publicação, tendo inclusive assinatura de Paul Preciado e Maria Galindo, que possuem textos na coletânea. Eu adicionaria que, além de racista, a capa é também especista, já que enfoca morcegos, que teriam transmitido a animais humanos o vírus. A sopa é, portanto, de morcegos, que pessoas amarelas, primitivas, insistem em comer. Em diferentes matizes, pelas nossas formações subjetivas coloniais, podemos fazer parte desta captura, sem a lembrança do confinamento a que são expostos todos os animais que aprendemos a domesticar para nos alimentarmos, como galinhas, bois e porcos, cujas doenças, igualmente transmitidas a animais humanos, também são ameaças pandêmicas. Causamos sofrimento a animais sencientes e, num modelo cada vez mais financeirizado, comemos seus corpos mortos, reproduzimos a prática cultural imposta pela colonização de compreensão de que nós animais humanos somos superiores a animais não-humanos e, seguindo a mesma lógica, animais humanos brancos são superiores a animais humanos não-brancos.
Como enfrentar a onipresença do macho viril churrasqueiro que vive nos recônditos de nossos inconscientes coloniais? Como chamam atenção as artistas Bruna Kury e Walla Capelobo11, os reiterados pedidos de volta ao normal, no contexto da pandemia da Covid-19, referem-se exatamente a um retorno às velhas estratégias coloniais que coisificaram corpos dissidentes da hegemonia: pessoas que não têm casas, pessoas gênero e sexodissidentes, pessoas não-brancas, pessoas trabalhadoras precarizadas, pessoas sexoservidoras. Multidões de diferenças, como assevera Paul Preciado12. A volta ao normal é a normalização da figura do macho viril churrasqueiro no poder, que tem licença para apologias ao estupro, domesticação de pessoas indígenas, conexões com manipulação discursiva como a ideologia de gênero, diminuição dos impactos ambientais do desmatamento de florestas inteiras. É a normalidade do churrasco de domingo.
Num churrasco à brasileira, costumeiramente machos viris se reúnem para fazer piada do colega de trabalho afeminado, combinar traições de esposas, organizar idas a prostíbulos àa escondidas, externar todo o seu racismo, cisexismo e capacitismo. Enquanto comem carne, muita carne. A carne os torna fortes, onipotentes, cheios de poder. Um poder corporativista, típico dos machos. Nesse momento, nada mais terrível para estes espécimes que serem podados de seus direitos de hegemonia, por não
11 KURY, Bruna; CAPELOBO, Walla. Desejo que sobrevivamos pois já sobrevivemos. São Paulo: GLAC Edições, 2020. Disponível em: https://www.glacedicoes.com/post/desejo-que-sobrevivamos-poisja-sobrevivemos-bruna-kury-e-walla-capelobo 12 PRECIADO Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos anormais. Rev. Estuduso Feministas, v19 n.1 Florianópolis Jan./ Apr. 2011.
poderem celebrar adequadamente, aos seus moldes, a sua hegemonia. Todas as opressões se reúnem num churrasco de machos: especismo, cisexismo, machismo, capacitismo, racismo. Em momento de pandemia, para que estar vivo se não se pode bradar a sua hegemonia, não é mesmo? Colombo, Hernandez, Cabral, Rondon, Geisel, tantos outros. Mas por que então o título deste texto, se venho falando em churrasco por tanto tempo? A moqueca é a antítese do churrasco. Do quinbundu mu´keka (caldeirada de peixe) e do tupi pokeka (fazer embrulho), referenciando nos estudos de Câmara Cascudo13, a moqueca tem, pelo menos, estas duas origens. Origens na África e na Costa Brasileira. Tradicionalmente feita com peixe, mas também desdobrada em muitos vegetais e frutos: banana, jaca, caju, mamão verde, chuchu, abóbora. Possibilidades muitas. Com ou sem dendê. Com ou sem leite de coco. Com ou sem coentro. Pimentão, salsinha, alho, cebola, tomates, vários tipos de combinações. Apimentadas ou não. Em dia de trabalho, em fim de semana, em qualquer hora do dia. Em todas as horas do dia. Com qualquer fogo, desde que aqueça. Em folhas de bananeira, direto na panela, em pratos. Uma celebração mutante, em si não-hegemônica, desde suas origens até suas multiplicidades criativas. A moqueca permite borrar o patriarcado carnista ocidentalizado, que é branco, racista, cisexista, é uma espécie de pedagogia, como proponho14 já que aprendeensina sobre encontros, sobre diferença, sobre a 13 CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Global, 2011. 14 GUIMARÃES, Rafael Siqueira de. Esta moqueca (me) descoloniza. In: Patrícia Lessa, Roberta Stubs e Marta Bellini (Orgs.). Relações interseccionais em rede: feminismos, veganismos, animalismos. Salvador: Devires, 2019.
invisibilização, pela branquitude colonial, de tantas cores, sabores, desejos e modos de vida. Vidas de povos originários e das pessoas negras que foram escravizadas neste país. Como metáfora para a pandemia, a moqueca, no encontro com o outro, pode conectar-se com a perspectiva dos grupelhos de Félix Guattari15, já que ele propõe que poderíamos ser muitos grupelhos, diferentes entre si, aliando-se frente ao poder hegemônico. Sindicatos, coletivos, grupos, comunidades, agremiações muitas. Aldeias, terreiros, quilombos, vales, redes. Muitas e muitas moquecas, algumas contemplariam algumas pautas, outras se dedicariam a outras. Nem mais, nem menos. Só muitas moquecas, compartilhadas, frente ao poder colonial vigente. Porque moqueca é, em si, anti-hegemônica. É ruído, gaguejo, mistura, cruzo. Gozo, pulsão de vida, potência, devir. Não tem idioma oficial. Não tem receita certa. Não precisa de corporativismo nem se presta a isso. É singularização, porque muda, porque está em movimento dinâmico. Moquecar a pandemia é (re) conhecer-se na diferença. Entrecruzar as nossas lutas. As companheiras e os companheiros zapatistas, por meio do comunicado assinado pelo Comandante Insurgente Moisés16, nos chamam para que não abandonemos o que nos une: as lutas contra o sistema que nos assola. Esse chamado nos toca a enfrentar o projeto colonial em curso, que 15 GUATARRI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1977. 16 MOISÉS. Subcomandante Insurgente. POR CORONAVIRUS EL EZLN CIERRA CARACOLES Y LLAMA A NO ABANDONAR LAS LUCHAS ACTUALES. Disponível em: http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2020/03/16/ por-coronavirus-el-ezln-cierra-caracoles-y-llama-a-no-abandonarlas-luchas-actuales/
captura nossas subjetividades, processo pelo qual muitos movimentos revolucionários, em algumas de suas frentes, acabam por responderem mais ao CIStema que à motivação pela qual nasceram. Veganismos de mercado, políticas de visibilidade individual, feminismos que não se conectam com as demandas de classe ou de pessoas com deficiência, lutas sexodissidentes que invisibilizam pessoas transvestigêneres, intersexo, lésbicas, bissexuais e gordas, lutas de classe que desconsideram recortes de gênero, ambientalismos preocupados com árvores e não com pessoas, e assim por diante. Em carta à sociedade e ao Movimento Teia dos Povos, da Bahia, Joelson Ferreira17 lembra que há que se retomar a guerra que ainda não fomos capazes de enfrentar, a da propriedade privada da terra: conecta-se com povos originários, de terreiro, das periferias do campo e da cidade. Cada movimento, como grupelho, conectando-se contra o projeto que Joelson chama de imperialista e podemos chamar também de projeto colonial, cada moqueca a seu modo, com seus modelos de interpretação, numa conexão fraterna, como propõe Ailton Krenak, já citado. Ailton, como se também moquecasse, não propõe um apartamento da luta entre indígenas e não-indígenas, mas, ao contrário, chama à responsabilidade global pelo futuro do planeta. Um planeta que não é só árvore, mas também é povoado de animais humanos e não-humanos. Nesta guerra, como aponta Acácio Augusto18,
muitas mortes serão necessárias para que se
17 OLIVEIRA, Joelson Ferreira. Cartas de Mestre Joelson em quarentena para a Teia dos Povos. Mensagem digital recebida pelo Whatsapp. Março de 2020. 18 Augusto, Acácio. Guerra pandêmica?. Apocalypse Neoliberal, Quarentena Times, abril-maio-junho, 2020.
retorne à normalidade, a normalidade do poder do Estado. Como bem lembra Bruna Kury e Walla Capelobo, já citadas, a normalidade da guerra que só fortalece este mesmo Estado, aquele que mata pessoas dissidentes, que vivem da/na rua, não é uma guerra para manter vidas. Diríamos que é uma guerra para manter churrascos. Churrascos viris, de corporativismo hegemônico, de racismos institucionalizados, de cisexismos, projeto colonial que se aproveita da pandemia para seguir atuando, em diversos matizes, desde a ação de aparelhamento securitário armado em comunidades urbanas, rurais, tradicionais, como as ações de genocídio que operam na “necessidade” de manter os mais saudáveis com vida, escolhendo pessoas mais jovens e sem doenças pré-existentes para os leitos de UTI. A pandemia é uma oportunidade de limpeza racial, étnica, sexual, de gênero,de classe. Uma máquina capacitista de guerra contra quem insurge e por isso moquecar neste momento é tão importante. Mais que reconhecer-se em alguma luta, que é também muito importante, reconhecer cada grupelho como foco de resistência. Nesta guerra financeirizada e globalizada, em que o neoliberalismo nos colocou a todos contra todos, moquecar é fortalecer a luta (des) organizada, promover juntamentos de potências múltiplas que fazem o esforço de desconectarem-se do projeto colonial, considerar que, neste processo também podemos sim fazer parte de capturas e que é importante a comunicação efetiva entre-grupelhos, entre-moquecagens. Conectar o Parlamento de Mujeres com a Kasa Invisível, a Resistência Curda com a Teia dos Povos, a Plataforma Kuceta com as Mães de Maio. E há tantos outros grupelhos, que
conhecemos, de perto e de longe, e também aos quais ainda não fomos apresentados. Descolonizar é tarefa árdua, porque integra nossos corpos, nossas mentalidades, nossos cotidianos e nossos inconscientes tão marcados pelo projeto colonial. Não acontece de uma hora para outra, aliás a descolonização está em curso desde o momento em que se iniciou a colonização, esta sim é a verdadeira batalha. Nesses tempos de crise, muita, mas muita gente tem se conectado, se reconhecido e criado movimentos anti-cistêmicos, coletivos, múltiplos, de encontros para pensar os (im) possíveis. Moquecam, pois.
A moqueca começou há muito tempo e não pode parar.
Rafael Guimarães é artista, psicólogo, professor, produtor cultural e ativista. Docente dos Programas de Pós Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais/UFSB, Educação/UFBA e Psicologia/ UNESP.