nós nos tornamos um vírus para o planeta Philippe Descola
Tradução Anderson Santos
Segundo Philippe Descola, essa pandemia deve conduzir a uma verdadeira “política da Terra”. Em que medida essa pandemia mundial é um “fato social total”, como disse Marcel Mauss, um dos fundadores da Antropologia? Um fato social total é uma instituição ou um conjunto de eventos que colocam em movimento uma sociedade, que revelam seus componentes e valores, que trazem à luz sua natureza profunda. Neste sentido, a pandemia é um reagente que condensa, não as singularidades de uma sociedade específica, visto que é mundial, mas alguns traços do sistema que governa o mundo atual, o capitalismo pós-industrial. Quais são eles? Primeiro, a degradação e o estreitamento sem precedentes dos meios pouco antropizados, devido à sua exploração pela pecuária em regime extensivo, a agricultura industrial, a colonização interna e a extração de minerais e combustíveis fosseis. Essa situação fez com que espécies selvagens, que são reservatórios de patógenos, entrassem em contato muito mais intenso com os humanos que vivem em habitats bem mais densos. Ora, as grandes pandemias são zoonoses, doenças que se propagam de espécie para espécie e cuja difusão, portanto, depende em grande parte das perturbações ecológicas. Segunda característica: a persistência gritante das desigualdades revelada pela situação de crise, no interior de cada país e entre os países, o que torna suas consequências muito diferentes, conforme a situação social e econômica em que se encontram. A pandemia permite verificar a observação feita pelo
antropólogo David Graeber de que quanto mais um trabalho é útil à sociedade, menos é remunerado e considerado. Subitamente, descobrimos a importância crucial das pessoas de que dependemos para cuidar de nós, alimentar-nos, livrar-nos do nosso lixo, e que são os primeiros expostos à doença. Terceira característica: a velocidade de propagação da pandemia. Que as doenças infecciosas dão a volta ao mundo, não há nisso nada de novo; o que chama a atenção é que elas o façam tão rapidamente na forma atual da globalização, que parece inteiramente regida pela mão invisível do mercado, isto é, a regra do lucro o mais imediato possível. O que salta aos olhos, especialmente com a escassez das máscaras, testes ou recursos terapêuticos, é uma divisão internacional da produção fundada em duas omissões: a do custo ecológico do transporte de mercadorias e a da necessidade, para se fazer sociedade, de uma divisão local de trabalho na qual todo o savoir-faire [know-how] está representado. Esta crise se deve à devastação do planeta ou, ao contrário, devemos considerar que as pandemias, desde a idade que precedeu o Antropoceno, fizeram parte da História, e que o homem deve fazer prova de humildade? Como americanista, estou dolorosamente consciente do preço que as populações ameríndias pagaram pelo seu encontro com as doenças infecciosas introduzidas pelos colonizadores europeus: entre os séculos XVI e XVIII, em algumas regiões, 90% da população desapareceu. As epidemias nos acompanham desde o início da hominização. Simplesmente, ao que parece, o desenvolvimento
do estado de bem-estar social da Europa desde o final do século XIX contribuiu para que aqueles que dele se beneficiam esquecessem que o perigo e a incerteza continuam a ser componentes fundamentais de nossos destinos coletivos. Por que o capitalismo moderno se tornou uma espécie de “vírus do mundo”? Embora esta pandemia pareça ter relação com os mercados de animais vivos e a medicina tradicional chinesa, será que o capitalismo é o culpado de tudo? Um vírus é um parasita que se replica às custas de seu hospedeiro, às vezes matando-o. É isso que o capitalismo tem feito com a Terra desde o início da revolução industrial, durante muito tempo sem sabê-lo. Agora sabemos, mas parece que temos medo da cura, que também conhecemos, ou seja, uma reviravolta em nossos modos de vida. Sem dúvida os mercados tradicionais chineses contribuem para o desaparecimento do pangolim ou do rinoceronte. Mas as redes de contrabando de espécies protegidas que os alimentam funcionam segundo uma lógica perfeitamente capitalista. Para não falar do capitalismo selvagem das empresas florestais chinesas ou malaias funcionando na Indonésia, de mãos dadas com as plantações de palmeiras de óleo e as indústrias agroalimentares. Quem não funciona segundo este modelo são as populações indígenas de Bornéu (e muitas outras regiões do mundo), que defendem seus territórios contra o desmatamento. O capitalismo nasceu na Europa, mas não é etnicamente definível. E continua a se propagar como uma epidemia. Embora não mate diretamente quem o pratica, destrói as condições de vida a longo prazo de todos os habitantes da Terra. Nós nos tornamos um vírus para o planeta.
Essa crise não é uma oportunidade para conceber de outra forma as relações entre a cultura e a natureza, entre os humanos e os não-humanos? Ou, ao contrario, deveríamos aumentar a distância entre “eles” e “nós”, dadas as zoonoses? Na virada do século XVII começou a surgir na Europa uma visão das coisas que chamo de “naturalista”, baseada na ideia de que os humanos vivem em um mundo separado dos não-humanos. Sob o nome de natureza, esse mundo separado poderia se tornar um objeto de investigação científica, recursos ilimitados, reservatório de símbolos. Esta revolução mental é uma das fontes da exploração desenfreada da natureza pelo capitalismo industrial, juntamente com o desenvolvimento sem precedentes dos conhecimentos científicos. Mas ela nos fez esquecer que a linha da vida é formada por elos interdependentes, dos quais alguns não são vivos, e que não podemos nos abstrair do mundo como quisermos. O “nós”, portanto, faz pouco sentido se pensarmos que a microbiota de cada um de “nós” é composta por milhares de milhões de “eles” ou que o CO2 que emito hoje irá afetar o clima daqui mil anos. Vírus, microrganismos, espécies de animais e vegetais que modificamos ao longo dos milênios são nossos parasitas no banquete às vezes trágico da vida. É um absurdo pensar que podemos livrar-nos deles e viver numa bolha. Os povos indígenas da Amazônia se fecham, se dispersam e recuam para enfrentar a epidemia. Nós também deveríamos nos refugiar atrás de nossas fronteiras e nações? É esse o fim não apenas da globalização, mas também de um certo cosmopolitismo?
Quando se fala de uma cosmopolítica no sentido do sociólogo Ulrich Beck, ou seja, a consciência adquirida por uma grande parte da humanidade de que compartilha um destino comum porque está exposta aos mesmos riscos, então claro está que é ilusório fechar as fronteiras. Podemos reduzir a propagação do Covid-19, mas não impediremos o surgimento de outra zoonose em algum outro lugar. Sobretudo, não conseguiremos parar a nuvem de Chernobyl ou a elevação do nível dos mares. E se alguns ameríndios da Amazônia conseguirem impedir que humanos entrem em seus territórios, já que são portadores da doença ou exploradores de ouro, são eles muito mais acolhedores em relação aos não-humanos, com quem têm familiaridade. É nesse sentido que a palavra “cosmopolítica” pode ganhar todo seu significado. Não como uma extensão do projeto kantiano de formular as regras universais através das quais os seres humanos, onde quer que estejam, possam levar uma vida civilizada e pacífica. Mas literalmente, como uma política do cosmos. Uma política da Terra entendida como uma casa comum, cujo uso não é mais reservado apenas aos humanos. Isto implica uma revolução do pensamento político de amplitude equivalente àquela realizada pela filosofia do Iluminismo e depois pelos pensadores do socialismo. São visíveis seus sinais precursores. Em diversos países foi dada uma personalidade jurídica aos ambientes de vida (montanhas, bacias hidrográficas, terras), capazes de fazer valer seus próprios interesses através de mandatários cujo bem-estar depende daqueles que eles defendem. Também em vários países, inclusive na França, pequenos coletivos se separaram do movimento contínuo de apropriação da natureza
e dos bens comuns que caracteriza, desde o fim do século XVI, o desenvolvimento da Europa e do mundo. Eles enfatizam a solidariedade entre as espécies, a identificação com o meio ambiente, a preocupação com os outros e o equilíbrio entre os ritmos da vida, em vez da competição, da apropriação privada e da máxima exploração das promessas da Terra. É um verdadeiro cosmopolitismo, de pleno exercício. Com o surgimento de uma geração formada por Bruno Latour e pelo senhor, assistimos a uma virada antropológica do pensamento francês, que já não separa radicalmente humanos e não-humanos? Podemos chamar isso de uma virada antropológica, com a condição de acrescentar que, paradoxalmente, é uma antropologia que se tornou menos antropocêntrica, porque deixou de engolir os nãohumanos numa função de entourage e de reduzir suas propriedades às aspirações e códigos que os humanos projetam sobre eles. Um meio de o fazer foi introduzir os não-humanos como atores de pleno direito no cenário das análises sociológicas, fazendo-os sair do seu habitual papel de bonecos manipulados por um hábil ventríloquo. É um exercício que vai contra séculos de excepcionalismo humanista, ao longo dos quais nossos modos de pensar tornaram incongruente que as máquinas, montanhas ou micróbios pudessem tornar-se autorreferenciais. Para isso foi necessário tratar o não-humano como um “fato social total”, ou seja, transformá-lo em uma espécie de planeta em torno do qual gravitam múltiplos satélites. Chamei-o de antropologia da natureza. Falamos muito do “mundo pós”, com o risco de não pensar no presente. O que seria possível e importante mudar o mais rapidamente?
Podemos sempre sonhar. Então, grosso modo: instauração de uma renda básica; desenvolvimento de convenções de cidadãos por sorteio; imposto ecológico e universal proporcional à emissão de carbono; tributação dos custos ecológicos de produção e de transportes de bens e serviços; atribuição de personalidade jurídica a ambientes de vida, etc. Entrevista realizada por Nicolas Truong, e publicada em Mediascitoyens em 22 de maio de 2020.
Phillipe Descola é antropólogo, autor entre outros de As Lanças do Crepúsculo (Ed. Cosac & Naify, 2006 [1994]). Descola é professor do Collège de France e titular da cadeira de Antropologia da natureza.