Pandemia Crítica 076 - Entre a asfixia e o transe: a conspiração do vivo

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Entre a asfixia e o transe: a conspira¢ão do vivo Murilo Duarte Costa Corrêa


tudo que respira conspira P. Leminski

1 Asfixiar Em 25 de maio, George Floyd, um ex-segurança negro de 46 anos, foi assasinado por policiais de Minneapolis (Minnesota). As gravações, que percorreram o mundo, mostram um policial branco, Derek Chauvin, ajoelhado serenamente sobre o pescoço de Floyd enquanto um colega oficial lhe dá cobertura. Durante a ação, Floyd tenta gritar I can’t breathe (“Eu não consigo respirar”) repetidas vezes. Quase nove minutos depois, a ação termina com o ex-segurança negro inconsciente e sem vida, na via pública e à luz do dia. Floyd foi abordado em seu carro no centro de Minneapolis por quatro policiais que apuravam a denúncia de que um homem teria tentado usar uma nota falsa no comércio local. Dominado, os policiais jogaram Floyd de bruços contra o chão, e três deles o contiveram exercendo o peso de seus corpos sobre os membros, o tronco e o pescoço de Floyd. No dia 29 de maio, moradores de Minneapolis tomaram o prédio da estação de polícia em que trabalhavam os envolvidos no caso de Floyd. As imagens dispararam protestos que se alastraram de Minneapolis para cidades em 26 estados americanos e a capital, Washington. Sob a bandeira do #BlackLivesMatter (#VidasNegrasImportam), os protestos se insurgiam contra a violência policial praticada majoritariamente contra negros americanos. Mesmo em uma situação pandêmica, milhares de nova-iorquinos saíram às ruas em um imenso levante


negro secundado por manifestações de apoio e solidariedade. Em Washington, o presidente Donald Trump teve de ser levado a um bunker no dia 29 de maio em função dos protestos que ocorriam em frente à Casa Branca. Dias depois, tuitava que o Estado americano trataria a Antifa como uma organização terrorista. Os protestos contra a brutalidade policial se alastraram dos Estados Unidos a mais de 30 países, e continuam a se alastrar. Estados como Minnesota e Nova York impuseram toque de recolher e prenderam centenas de manifestantes. O governador de Minnesota autorizou a intervenção da Guarda Nacional do Estado para conter a revolta. 2 Expirar Mais do que viral, o caso George Floyd se tornou pandêmico. Não apenas fez florescer protestos globais em solidariedade contra a brutalidade policial, mas serviu como catalisador para inflamar questões locais. I can’t breathe é o lema de todos os corpos acumulados do peso de corpos parasitários. É também o lema de todos os corpos precários, tratados como excedentes biológicos pela necropolítica global do capitalismo financeiro e suas próteses governamentais na gestão da pandemia do Covid-19. Quase inaudível, como a voz que Floyd emprestou ao mundo, esse lema tem sido entreouvido como um grito asfixiado por toda parte. Eis o que faz da voz sufocada de Floyd um signo real demais para ser tolerado: o signo de uma asfixia universal em que a questão negra aparece ao mesmo tempo na tangente entre a sua singularidade absoluta (#BlackLivesMatter) e em sua transversalidade perspectiva (devir-negro do mundo).


Os Estados e suas polícias agem como se a vida de algúem não valesse mais do que a moeda falsa com que os Estados inundam os mercados com suas políticas de quantitative easing (injeção de liquidez) desde a crise de 2008. Se as sucessivas crises do capitalismo global deixaram uma lição foi a de que, no fundo, todas as notas são falsas, como são falsas todas as moedas que circulam desprovidas de qualquer vínculo efetivo com a economia biopolítica dos corpos produtivos. O real da moeda, a “nota verdadeira” e o referente forcluído, é o que o caso Floyd faz subir à superfície dos acontecimentos mundiais: a chance de impensáveis trajetos de circulação do vivo no choque produtivo entre a conspiração das lutas e a inspiração das revoltas -- que viajam incendiárias de alma em alma como um sopro. Há doze anos, na crise de 2008, as pessoas perdiam suas casas, a estrutura física de sua vida doméstica, para que o financismo à americana pudesse prosseguir. Em 2020, as pessoas têm perdido suas vidas, gerenciadas como disposable parts (peças descartáveis) da maquinaria do capitaloceno avariada pelo vírus. Mas a revolta é a conspiração do vivo. Por todos os lados, a asfixia parece se impor desigualmente entre os corpos na condição de uma aporia política; isto é, um não-caminho. Seremos asfixiados pelos Estados, os mercados e suas próteses policiais, ou pelo vírus? A única saída da asfixia é, no entanto, conspirar a assunção absurda de uma posição impossível: tornar o grito audível, agenciar os corpos contra os incorporais da morte que os poderes administram para não morrer. Uma demonstração de coragem de centenas de milhares de pessoas mundo afora que desafiam o terror e assumem o risco epidêmico em troca de “um pouco de possível, senão eu sufoco” (DeleuzeKierkegaard).


Uma ação que deixa o receio de Giorgio Agamben sobre “como será a política na era do distanciamento social” vencido em uma prateleira: nossa época talvez não seja a da “nova normalidade”, mas a do pós-anormal, o monstro anticolonial a antifascista que depõe a normalidade e seu novo codificado. Os corpos escalam o Leviatã. A infraestrutura biopolítica real confronta os controles nas ruas. Ela é a emergência viva de um estado de exceção efetivo. Ela é a contra-história dos oprimidos feita ação e carne. Mal podendo respirar, os pulmões do mundo expiram até o fundo -- dois séculos em uma semana. 3 Inspirar A política é a assunção absurda de uma posição impossível. A asfixia está ligada à “respiração universal” de Achille Mbembe. Não como um direito que de nada vale, mas como uma ação instintiva; um arco-reflexo inconsciente de corpos que insistem em viver no matter what. Respirar, como viver, é asfixiar por um instante para ceder ao instinto -inspirar, e não morrer sufocado. A linha transversal da luta contra a asfixia universal encontra, no entanto, uma terra. Um solo de barro muito negro diasporicamente espalhado no mundo pelo colonialismo do capital mercantil há muitos séculos. Eis sua componente antirracista. Essa componente corre múltipla e transversal pelos continentes, especialmente porque um negro já não remete “unicamente à condição atribuída aos povos de origem africana”; antes, ele nomeia um devir mundial, “a sua institucionalização enquanto padrão de vida e [...] sua generalização pelo mundo inteiro”, segundo Achille Mbembe. O devir-negro do mundo dá-se no encontro entre o neoliberalismo (expressão do capital


financeiro ilimitado e global), a militarização e a plataformização da vida. O negro em devir -- especialmente no contexto americano --, porém, dá nome a muitos sujeitos: os desterrados da África e sua descendência (negros para os brancos), os latinos e hispânicos (negros para os supremacistas alt-right), os imigrantes (negros para os cidadãos), as mulheres (negras para os homens), xs lgbtqia+ (negrxs para os héteros), os indígenas (negros para as monoculturas invasivas), os pobres (negros para os ricos e as milícias), os trabalhadores (negros do capital), os desempregados e precários (negros para o assalariamento) etc. A luta contra a asfixia universal é, em parte, um trabalho de deposição das forças em curso. Em 31 de maio, no mesmo dia em que Trump tuitava sobre classificar a Antifa como organização terrorista, ocorria uma das cenas mais reparadoras desse ciclo de protestos: policiais de Miami e Nova York se ajoelharam ao lado dos manifestantes e, uniformizados, marcharam junto com eles pelas vidas negras que suas corporações eliminam. Precisaríamos ver nisso algo além de um ato emocional ou hipócrita. Os policiais são os negros do Estado, os negros dos agentes de colarinho branco. Alguns deles também querem pôr o poder de joelhos, e sabem que, para isso, terão de ajoelhar-se sobre a sua terra, não já sobre os corpos sem vida dos seus irmãos. Esse retrato veloz e incompleto é apenas um índice da composição social múltipla de corpos que se agenciam na transversalidade da luta antirracista. São figuras enésimas de que ela é o princípio de disparo. E é precisamente a multiplicidade de identidades voláteis que não cessam de negociar com o eixo transversal ao qual se integram (em sua diferença) que constitui a sua força e seu potencial de abertura para


novos agenciamentos de composição política capaz de arrastar o campo social inteiro a uma transformação. Ao lado do “devir-negro do mundo”, um “devir-mundo dxs negrxs”. A questão negra e um evento de brutalidade policial catalisam uma forte reação, e integram a presença dos antifascistas americanos nas demonstrações espalhadas por cidades de 26 Estados. O antifascismo é uma chave plural e cosmopolita de ação autônoma local. Sem coincidirem, e sem se sobreporem, antirracismo e antifascismo convergem ao infinito nos antagonismos reais como blocos de lutas autônomas, antiautoritárias, radicalmente igualitárias e anticapitalistas em um agenciamento que atualiza a memória para o porvir legada pelas lutas em favor dos direitos civis. Ela agora desafia o apartheid balístico e o corte étnico da catástrofe sanitária e pandêmica em curso por toda a parte nas Américas. 4 Conspirar A gestão necropolítica da crise do coronavírus pelo governo Bolsonaro que, em 02 de junho, alcançava 31.199 mortos, desencadeou uma queda acentuada de aprovação do governo e assolou as expectativas investidas em seu mandato. Um levantamento realizado pela XP/Ipespe concluído em 19 de maio de 2020 revelou uma queda nos níveis da avaliação positiva do governo (“bom/ ótimo”) para 25%, e registrou um incremento da avaliação negativa do governo (“ruim/péssimo”) para 50% dos entrevistados, bem como um aumento no pessimismo com relação à expectativa para o restante do mandato (48% negativa contra 27% positiva). A percepção da atuação do governo na área econômica também piorou sensivelmente: 57%


avaliam que a economia, sob a gestão de Paulo Guedes, está no caminho errado, enquanto 28% afirmam o contrário. A desestruturação do apoio da base social do governo Bolsonaro, apesar de oscilar na faixa dos 25-30%, e de favorecer interpretações retrospectivas e obsoletas da conjuntura como o #somos57milhões (em referência ao número de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de 2018), começa a abrir espaço para uma recomposição política heterogênea em um campo antibolsonarista. A imagem de composição e negociação contínua entre identidades políticas em torno de um projeto compartilhado e emergencial -- depor o governo Bolsonaro, e pôr outra vez e para sempre de joelhos o bolsonarismo cultural -- é uma linha de contágio político-social composta por linhas menores. Ela começa em manifestos compostos por frentes políticas heterogêneas, como o “somos70porcento” (lançado pelo economista Eduardo Moreira em uma live no You Tube), o movimento #EstamosJuntos (que obteve assinaturas iniciais como as de Caetano Veloso, Felipe Neto, Luciano Huck, Fernando Henrique Cardoso, Flavio Dino, Luiza Erundina, Lobão, José Paulo Capobianco [da ONG SOS Mata Atlântica] e o ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta) ou o movimento Basta!, de uma rede de juristas. Passa pela memerização viral do antifascismo brasileiro, e vai terminar na composição entre torcidas rivais nas ruas, que são como o signo de que o Fla-Flu político acabara de virar mais de 70% do Maracanã lotado contra Bolsonaro. Essa composição entre rivais que se tornam adversários & afins (como tribos incompossíveis em uma aliança tecnoprimitiva guerreira) foi bem formulada por Moysés Pinto Neto que, inspirado em Isaac Asimov, enunciou o que parecem ser as duas leis escalonadas que definem sua lógica. Nas


palavras de Moysés: “(1) colabore e deixe passar tudo que enfraquece Bolsonaro a fim de preservar a democracia e a república; e (2) construa seu campo político com autonomia e liberdade de enfrentar seus adversários, desde que não viole (1)”. São as condições de possibilidade do próprio antagonismo adversarial que estão em jogo; as condições para o que Foucault chamou certa vez de uma vida não-fascista, capaz de interromper a circulação deste vírus político -- mesmo em nós e entre nós. Nessas condições, a política se torna função de uma meta-aliança entre adversários que permanecem adversários, exceto quanto à condição transcendental de seu antagonismo. Essa metaaliança política é a condição sensível do transe brasileiro. 5 Transe brasileiro No dia 31 de maio, o Brasil transformava a paralisia da crise do coronavírus no movimento de ingresso em um novo transe político. Em antagonismo com as manifestações necropolíticas em favor do governo Bolsonaro que têm ocorrido semanalmente, os panelaços pro-lockdown abandonaram as janelas e sacadas, e ingressaram no arriscado corpo a corpo das ruas. Em São Paulo, as manifestações antigoverno foram lideradas por torcidas organizadas de times de futebol rivais dos quatro grandes clubes do Estado (Corinthians, São Paulo, Palmeiras e Santos). A maioria ligada a torcidas organizadas do Corinthians, um dos clubes mais populares entre as camadas pobres, pretas e periféricas do Brasil, e que conserva a memória da experiência da “democracia coritinhiana” liderada por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon em plena ditadura militar, durante a década de 1980.


No Rio de Janeiro, o Copacabana verdeamarelo também era disputado por demonstrações antigoverno, com as organizadas de Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco – os quatro grandes clubes cariocas – entre os protagonistas. Em Belo Horizonte, as manifestações bolsonaristas da Praça da Bandeira foram confrontadas pelas torcidas organizadas antifascistas do Atlético Mineiro, Cruzeiro e América Mineiro – os três clubes mais populares das Minas Gerais. Enquanto isso, em Brasília, Bolsonaro cavalgava ao lado da Polícia Militar em meio a um ato de apoio a seu governo. Em Curitiba, com a República desmoronada, manifestantes antifascistas confrontaram uma passeata bolsonarista no Centro Cívico, e em Manaus, um protesto pró-democracia fechou a Avenida Djalma Batista. Todas essas manifestações se produzem no encontro entre duas linhas transversais heterogêneas, capazes de extrair um potencial de negociação contínua entre as políticas baseadas em identidades de todos os tipos (raça, gênero, classe, partido, clube de futebol etc.), e eixos comuns de luta que objetivam depor a necropolítica em curso que se tornou a identidade oficial do governo brasileiro e dos 25% que ainda o apoiam. Uma delas é o antirracismo como uma luta transversal, que comporta a abertura a um devirnegro mais geral (global, mesmo nas constrições de seu localismo). Sua configuração coincide dupla e paradoxalmente com a descartabilidade das vidas sem valor (assumida como política de Estado) e com a afirmação biopolítica do valor das vidas negras. Esta última é a condição ético-política sem a qual afirmar o valor de todas as vidas (#AllLivesMatter) não passa de um lema hipócrita. O valor biopolítico das vidas negras é o conteúdo que a meta-aliança adversarial deve exigir como


a carne que habita a sua forma abstrata -- sob o risco de seu agenciamento converter-se em uma tranversal vazia. A outra é o antifascimo como campo tático de ação direta e ética de autodefesa coletiva capaz de encampar lutas afins. Duas linhas transversais que tomam o Brasil pelo meio, e que revelam o fundo da guerra civil-colonial que foi domesticada pelas fantasias pouco imaginosas das guerras culturais que marcaram o final dos anos 2010. O que explica que a conspiração democrática e o transe brasileiro sejam a alternativa à asfixia brasileira e à asfixia racista do assassinato de George Loyd não poderia ser mais concreto. Recentemente, o NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, vinculado à PUC-Rio) revelou em sua 11ª Nota Técnica que, entre 30 mil casos confirmados para o Covid-19 no Brasil, mais pessoas pretas e pardas morreram (54,78% dos casos analisados) do que pessoas brancas (37,93%) [Fig. 1]. Essa disparidade se reproduz praticamente em linha em todas as faixas etárias pesquisadas [Fig. 2].

Figura 1. Percentual de óbitos ou recuperados por Raça/Cor.


Figura 2. Proporção de óbitos por faixa de idade em cada grupo Raça/Cor1

No Brasil, a necropolítica é o traço de união entre a asfixia do vírus e a asfixia do racismo como estrutura sociocultural de biopoder que arma o bolsonarismo. Este, por sua vez, tornou a reprodução da estrutura mesma do racismo desigual uma política oficial de Estado e de “segurança” sanitária e policial. Basta recordar que entre os meses de março e abril, durante a quarentena, 290 pessoas foram mortas em operações policiais no Estado do Rio de Janeiro. O caso mais lembrado nos protestos de 31 de maio na cidade do Rio de Janeiro foi o de 1 Ambos os gráficos foram retirados da Nota Técnica nº 11 de NOIS, e estão acessíveis em: <http://drive.google.com/file/d/1tSU7mV4OPnLRFMMY47JIXZg zkklvkydO/view?usp=sharing> Consulta em 03.06.2020.


João Pedro: adolescente negro de 14 anos de idade, morador do complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. João Pedro foi alvejado pelas costas por um dos 70 disparos efetuados pela polícia que invadiu a casa do garoto sob o pretexto de prender um traficante de drogas. É nas casas dos negros que a asfixia do vírus se cruza com a necropolítica do Estado e de suas forças de segurança. A percepção, que atravessa as maiorias já nem tão silenciosas dos manifestos, dos memes e dos protestos democráticos das torcidas rivais (os +70%), parece ser a mesma de um cartaz exibido em Paris, no dia 02 de junho: White supremacy is a pandemic (“A supremacia branca é uma pandemia”). A opção agora é entre a asfixia e o transe. Correr ou não o risco de participar da conspiração do vivo.

Fonte da foto: El País

Murilo Duarte Costa Corrêa é Professor Adjunto no Departamento de Direito de Estado, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG.


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